O Sexo dos Anjos: os cuidados às pessoas idosas dependentes como uma esfera de
acção preferencialmente feminina
1. Nota introdutória: objectivos e estratégias metodológicas da pesquisa
Através deste artigo pretendemos apresentar algumas das conclusões de um estudo
que teve como principal objectivo compreender a complexidade das interacções
que se estabelecem no contexto das famílias que cuidam dos seus elementos mais
idosos, em situação de dependência, dando particular relevo aos processos de
regulação e ao delineamento de estratégias de cuidar no interior das fratrias.
O estudo realizado enquadra-se numa lógica interpretativa dos factos sociais,
centrada na análise das singularidades e na valorização dos pormenores da vida
quotidiana dos actores sociais.
A população-alvo é constituída por prestadores de cuidados (filhos/as ou
genros/noras dos/as idosos/as) integrados em fratrias, o que permitiu analisar
as relações que se estabelecem no processo de construção e de manutenção da
rede de apoio. Esta opção não invalidou a possibilidade de contemplar casos em
que o/a prestador/a de cuidados, apesar de pertencer a uma fratria, está
isolado/a no desempenho das suas tarefas; casos em que haja, como complemento,
uma contratação de serviços externos à família (públicos ou privados); ou casos
em que outros/as parentes ou amigos/as dêem um apoio pontual e gratuito.
Optámos por uma técnica de amostragem não probabilística, mais especificamente
a «amostragem útil». Face à reduzida visibilidade social das famílias que
cuidam, partimos de indicações dadas por informantes privilegiados/as,
conhecedores/as da realidade local. Depois de realizados os primeiros
contactos, solicitámos aos/às entrevistados/as que nos indicassem outras
situações por eles/elas conhecidas, desenvolvendo, assim, o «efeito bola de
neve». Efectuamos entrevistas semidirectivas a 34 cuidadores/as (2 homens e 32
mulheres, residentes nos concelhos de Soure, contexto rural, e Coimbra,
contexto urbano).
2. Fundamentos teóricos: as diferenças de género na esfera das actividades
reprodutivas
Por motivos que se prendem, grosso modo, com o reconhecimento da importância
dos cuidados familiares para a promoção do bem-estar das pessoas que deles
carecem e com a deficiente cobertura das redes de apoio social de carácter
formal, tem-se vindo a consolidar um discurso de revalorização das
solidariedades informais e, em particular, do envolvimento da família na
prestação de cuidados aos seus elementos mais dependentes.
Este discurso negligencia, contudo, o impacto que essa revalorização pode ter
nas trajectórias femininas, desconsiderando o esforço que as mulheres têm feito
para se demarcarem dos papéis que tradicionalmente lhe eram atribuídos,
especialmente quando o seu desempenho implica dedicação exclusiva, sem mérito
reconhecido.
Na perspectiva de Gunhild Hagestad (1995), as representações sociais em relação
aos que desempenham tarefas reprodutivas, não pagas, mas igualmente exigentes,
são injustas. As responsabilidades masculinas concentram-se nos aspectos
materiais e inscrevem-se no domínio económico, enquanto as mulheres são
responsáveis por um conjunto difuso de necessidades e de problemas humanos no
seio da família, fazendo com que grande parte do trabalho que realizam no
espaço doméstico e no domínio dos cuidados seja desvalorizado ou mesmo
ignorado. A invisibilidade das tarefas que realizam e que não estão associadas
à esfera produtiva nem à conquista de um salário, reforça essa desvalorização.
As pesquisas revelam que cuidar dos elementos mais velhos da família pode ser
altamente compensador do ponto de vista emocional e estar associado a um
sentido de dever cumprido, mas que também tem implicações negativas na saúde
(física e psíquica), na organização do quotidiano, na vida social e relacional,
assim como na vida profissional (Brito, 2002; Figueiredo, 2007; Pimentel e
Albuquerque, 2010), onde as mulheres fazem um investimento cada vez mais
significativo.
De facto, nas últimas décadas, as mulheres ganharam protagonismo em contextos
sociais e económicos que lhes estavam habitualmente vedados. O homem deixou de
ser o único provedor do sustento da família, afirmando-se o modelo conjugal de
dupla carreira ou duplo emprego (Aboim, 2010, Wall e Guerreiro, 2005). Contudo,
apesar destas mudanças, os padrões de afectação do tempo às actividades
profissionais e às actividades domésticas continuam a variar em função do sexo,
particularmente o tempo dedicado às actividades domésticas. Os homens dedicam o
seu tempo preferencialmente às actividades laborais e as mulheres dividem-se
entre umas e outras (Amâncio, 2004; Perista, 2002).
A reflexão sobre esta realidade deve ainda contemplar o facto de que, em
Portugal, contrariamente ao que acontece em outros países europeus, são poucas
as mulheres que trabalham em regime de part-time e muitas as que têm de cumprir
um horário completo, semelhante ao dos homens (Torres, 2006). Um estudo
realizado no âmbito do Soccare Project ' Comissão Europeia corrobora isso
mesmo, ao concluir que é muito raro as mulheres portuguesas (assim como as
Finlandesas) trabalharem em part-time. Pelo contrário, essa é uma realidade
muito comum em outros países da Europa, com particular destaque para a
Inglaterra (Kroger, 2003: 43).
A distribuição do tempo das mulheres é, assim, mais complexa e fragmentada, uma
vez que têm de conjugar trabalho pago e não pago, desempenhar um maior número
de actividades e dividir a sua atenção por mais tarefas, ficando com menos
tempo disponível para o lazer e para si próprias.
Chiara Saraceno (2004), a propósito da realidade italiana, dá-nos conta de
tendências muito semelhantes.
Uma maior carga de trabalho familiar para as mulheres reduz, por um lado, o
tempo que as mesmas podem dedicar não só ao repouso, mas também ao trabalho
remunerado, bem como o tipo de emprego que possam aceitar ' em termos de
distância, horários de trabalho, entre outros. Por outro lado, coloca-as no
risco de serem encaradas pelas entidades laborais como profissionais pouco
fiáveis e/ou mais dispendiosas. No quadro das responsabilidades familiares, é
sobretudo o trabalho de prestação de cuidados que se apresenta exigente em
temos de tempo e não facilmente delegável pela falta de serviços adequados, em
particular no que concerne à primeira infância e à fragilidade e dependência na
velhice (Saraceno, 2004: 30-31).
Esta perpetuação das diferenças de género na esfera reprodutiva reflecte-se
também no domínio dos cuidados familiares aos mais dependentes. É inegável a
evidência de que os encargos decorrentes da prestação de cuidados a uma pessoa
dependente recaem sobre um número reduzido de elementos das redes de
parentesco, muito particularmente sobre as mulheres (Vasconcelos, 2002 e 2005;
Portugal, 2008; Torres, 2006). Os homens, de um modo geral, assumem uma posição
secundária ou mesmo ausente.
Pedro Vasconcelos (2002) afirma que a participação dos homens nas redes de
entreajuda familiar se faz em ocasiões muito específicas e habitualmente em
articulação com as mulheres. Quando estão em jogo grandes quantidades de
dinheiro (enquanto dádiva ou empréstimo) ou bens materiais de elevado valor, os
homens têm uma participação de relevo na decisão final. Contudo, as ajudas
quotidianas são um domínio predominantemente feminino, sendo elas as «grandes
fazedoras da solidariedade familiar».
Também Luísa Brito (2002), destacando que os familiares se encontram na
primeira linha da prestação de cuidados a pessoas idosas, refere que maior
parte dos cuidados a idosos/as dependentes são prestados pelas filhas. Seguem-
se as noras (em substituição dos filhos), as esposas, e outros tipos de
parentesco, predominando sempre as mulheres, que representam cerca de 80% do
total das/os prestadoras/es de cuidados.
Ainda assim, começa a despertar uma nova curiosidade científica sobre o papel
dos homens no domínio dos cuidados. Óscar Ribeiro (2005) alerta para a pouca
atenção que tem sido dada aos homens cuidadores e para a perpetuação de alguns
estereótipos sobre a sua fraca intervenção neste domínio. Os estudos que tem
desenvolvido, dão conta do aumento da colaboração dos homens nos cuidados aos
dependentes, realçando, em particular, o crescimento de um sub-grupo de
cuidadores: os cônjuges idosos.
Como iremos constatar, os resultados do nosso estudo demonstram que estamos
longe de um cenário de partilha igualitária das responsabilidades no domínio
dos cuidados aos dependentes. Entender a realização das tarefas reprodutivas
pelas mulheres como algo natural, conduz a uma desvalorização dessas tarefas
pelas próprias, que as assumem como uma consequência inerente à sua condição de
género.
3. As/Os cuidadoras/es na primeira pessoa: a análise do discurso
3.1. Entre as representações e as práticas: os papéis de género como um campo
de ambivalências
As representações dominantes entre as/os entrevistadas/os vão no sentido de
que, na esfera dos cuidados, homens e mulheres deveriam assumir
responsabilidades idênticas. Não obstante, na prática, os homens são afastados
das tarefas de cuidar por motivos difíceis de objectivar. Por vezes alegam-se
factores socioculturais, outras vezes razões de índole mais prática,
relacionadas com a falta de disponibilidade ou de habilidade. É comum as/os
cuidadoras/es entrevistadas/os considerarem os homens da sua família pouco
capazes, ainda que, em termos gerais, atribuam competências aos homens neste
domínio, lembrando o profissionalismo dos enfermeiros ou dos médicos.
As linhas metodológicas que orientaram a selecção da população-alvo do nosso
estudo não nos permitem ter uma perspectiva consistente sobre o papel dos
cônjuges enquanto cuidadores, uma vez que em todos os casos seleccionados os
principais cuidadores são as/os filhas/os. Contudo, sempre que existia um
cônjuge masculino com alguma autonomia, foi possível perceber que o seu
contributo se limitava a fazer companhia à idosa na ausência das/os filhas/os,
podendo, apesar de tudo, ter uma função importante no caso de acontecer algum
imprevisto ou alguma situação de emergência.
Se nos reportarmos aos homens da geração intermédia, e salvaguardando raras
excepções (como as dos dois cuidadores que entrevistámos), a sua intervenção é
subsidiária e reservada a ocasiões em que a mulher fica impossibilitada de
cumprir as tarefas que lhe estão atribuídas. Não podemos, todavia, ignorar que
o seu contributo pode ser precioso, mesmo quando não se traduz no desempenho
das tarefas rotineiras e desgastantes do quotidiano. O apoio ocasional em
situações imprevistas, a ajuda em tarefas pesadas, o suporte emocional e o
reforço positivo proporcionado ao cuidador, podem ser elementos essenciais para
atenuar a sobrecarga e viabilizar os cuidados.
Nesta matéria, o discurso de algumas entrevistadas é contraditório. Começam por
defender a paridade entre homens e mulheres, mas acabam por admitir que há
tarefas que não faz sentido atribuir aos homens. Aceitam e reproduzem a norma
da diferenciação, defendendo que, enquanto as mulheres puderem e/ou estiverem
disponíveis, não se justifica reclamar o envolvimento dos homens.
«Eu acho que é igual, mas elas cuidam mais, porque elas estão em
casa, e os homens vão para o trabalho, vão para as terras. ( ) as
mulheres que têm mais jeito. Têm mais jeito para estas coisas. Pois!
Porque mesmo para dar o banho à minha mãe, já não é os meus irmãos, é
as minhas cunhadas. Prontos, é as minhas cunhadas é que vão dar o
banho à minha mãe, e vesti-la, e calçá-la os homens já não têm esse
jeito. Os homens é mais para fora» (Madalena, viúva, 68 anos,
trabalhadora agrícola ' reformada).
«Não até porque eu acho que a obrigação é deles, que são filhos, é
certo! Mas não há como as mulheres, é evidente, não é?! Tem um
cabelinho, a gente tira, a gente dá um jeitinho ao cabelo. Não é os
homens que vão fazer isso, é evidente!» (Leonor, casada, 59 anos,
empregada doméstica).
O papel das noras também é realçado. Na perspectiva de algumas entrevistadas, a
repartição do encargo de cuidar no interior das fratrias deve obedecer ao
princípio de igualdade (que estipula que todos/as os/as irmãos/ãs devem assumir
iguais responsabilidades), e sempre que estas sejam constituídas por homens,
compete às suas mulheres assumir o desempenho das respectivas tarefas.
«E ' E acha que as filhas mulheres têm mais obrigação que os filhos
homens ou é igual? Filomena ' Não, é igual. Simplesmente, não faz o
marido tem que fazer a nora, porque foi o meu caso. A minha sogra O
meu marido não o fazia, mas fazia-o eu à minha sogra. Porque o meu
marido não ia lá lavar a coisa à mãe! Se fosse necessário era
obrigado, não é?!» (Filomena, casada, 47 anos, desempregada).
É frequente o sentido das respostas divergir consoante as pessoas são
questionadas sobre a responsabilidade de ambos os sexos ou sobre a habilidade e
a preparação para estes desempenharem as tarefas domésticas ou as tarefas
relacionadas com os cuidados às crianças ou aos idosos. Frederica considera não
só que os homens que cuidam ou que desempenham tarefas domésticas são uma
excepção motivada por questões culturais e sociais, mas também que as mulheres
são muito mais capazes e competentes no desempenho de qualquer actividade (não
só de âmbito reprodutivo).
«Olhe, eu isso devo dizer-lhe que não, porque eu acho que as mulheres
são muito mais habilidosas e têm muito mais capacidade, são muito
mais inteligentes que os homens. Porque uma mulher desde que queira
fazer alguma coisa, aponta e faz. ( ) E nós conseguimos fazer quase
tudo e os homens não» (Frederica, casada, 60 anos, doméstica).
Irene é da mesma opinião em relação à habilidade das mulheres para cuidar.
Considera mesmo que têm um dom especial que está relacionado com a maternidade
e que não pode ser igualado pelos homens.
«Mas mas eu acho que as mulheres têm mais jeito, acho que têm mais
um dom, não sei, têm outro dom, não sei, eu penso isso» (Irene,
casada, 55 anos, costureira).
Existem, apesar de tudo, as excepções. Alguns/mas entrevistados/as afirmam que
as diferenças não são significativas, outros/as entendem que são os homens que
têm mais competências e que conseguem executar as tarefas de forma mais
diligente.
«Acho que o homem tem mais habilidade que as mulheres. ( ) Por geral,
até mesmo em Hospitais e tudo, vejo a maneira Têm mais habilidade.
Até Enfermeiros e tudo. Eu acho» (Ângela, solteira, 44 anos,
desempregada).
O entendimento dos cuidados como uma esfera preferencialmente feminina e a
consequente demissão dos homens nesta área, podem ser interpretados como uma
injustiça e vistos com alguma indignação, especialmente se o homem em causa é
filho do idoso cuidado e se a cuidadora é a nora, como acontece no caso de
Júlia. Se bem que a sua atitude perante as responsabilidades domésticas e a
prestação de cuidados sustente os estereótipos dominantes, nem por isso deixa
de sentir alguma revolta pela forma como o marido se descarta deste dever.
«Também é responsabilidade deles. Por exemplo, aqui em relação ao Sr.
J., vamos a ver uma coisa, eu é que me privo de sair e ele não é meu
pai! O C. não se priva de sair, o C. não se priva de ir ao futebol e
deixar aqui o pai, uma tarde inteira sozinho. E, no entanto, ele é
pai dele, não é meu! E se fosse ao contrário? ( ) O C. não fazia aos
meus pais aquilo que eu estou a fazer ao pai dele» (Júlia, casada, 40
anos, empregada administrativa).
De realçar, pela sua especificidade, a opinião dos dois homens que tivemos
oportunidade de entrevistar. Ambos rejeitam a exclusividade feminina neste
domínio e defendem a partilha de responsabilidades como a solução ideal.
Contudo, reconhecem que este continua a ser um universo preferencialmente
feminino e que culturalmente se estimula e se legitima um maior envolvimento
das mulheres. Reconhecem ainda que a sua posição não é partilhada por muitos
dos homens que conhecem, que adoptam uma postura crítica, ou mesmo sarcástica,
perante as suas opções, considerando confortável e conveniente que se perpetue
a regra social que os liberta dessa esfera de responsabilidade.
«Eu acho que são ambos. ( ) Agora, evidentemente, há aí, e conheço
muito homem que não é capaz de fritar um ovo, que é mesmo assim.
Então, vai-se pedir a uma pessoa dessas, que aqueça uma refeição? Só
o simples aquecer, ele não sabe, porque não sabe! ( ) Tenho muita
pessoa amiga, muito colega de serviço, antigos colegas de serviço,
que: "' O quê? Eu, não. Chegar a casa, sentar-me, ver televisão, ler
o jornal, a comida está pronta, vai-se comer"» (António, casado, 57
anos, empregado administrativo ' reformado).
«Eu acho que a obrigação é igual. ( ) Agora, nós, evidentemente,
apesar de todos os progressos que se fizeram, as mulheres continuam a
ser sobrecarregadas com isso, não é?! ( ) Eu conheço muito boa gente
que se estivesse na minha situação já teria casado para ter uma
mulher para cuidar do sogro. É! Porque, às vezes, há amigos que me
conhecem: "'Então, ainda vives sozinho? Não arranjas uma gaja?
[aquela conversa assim passo o termo, não é?!] Então, como é que tu
cuidas da tua mãe? Então e para te lavar a roupa?" ( ) Naturalmente
sou contra essa visão, mas o que nós sabemos é que é assim. Quer
dizer, por exemplo, os meus irmãos, apesar de também acompanharem a
minha mãe, mas, dar-lhe o banho e tudo o mais, é as minhas cunhadas
que o fazem, não é?!» (Lúcio, divorciado, 46 anos, empresário).
Lúcio acredita que homens e mulheres têm competências e aptidões diferentes e
que estas têm uma maior sensibilidade para cuidar. Contudo, sabe que este é um
argumento utilizado por muitos homens para escapar às tarefas que menos lhe
agradam e para assim perpetuar um sistema de discriminação em função do género.
«Evidentemente que há aptidões que podem ser inerentes ao próprio
sexo, agora estas coisas de digamos, o instinto de sobrevivência
também se treina. Quer dizer, eu, se não sei cozinhar, hei-de
aprender, ou se não sei passar a ferro, hei-de aprender. ( )
Portanto, eu acho que isso é mais uma tradição que se vai passando, e
claro que os homens, por comodismo, acham que essa tradição não vale
a pena estar a romper com ela» (Lúcio, divorciado, 46 anos,
empresário).
3.2. O estado civil como factor de influência na definição dos papéis de género
As diferenças de género são particularmente acentuadas quando nos reportamos às
expectativas criadas em torno do papel das filhas e dos filhos solteiras/os.
Enquanto as primeiras assumem os encargos de cuidar, por vezes de forma tácita,
sem que os restantes elementos da fratria se questionem sobre as suas
competências ou sobre os constrangimentos que podem enfrentar, os segundos são
afastados dessas tarefas, estando subjacente a ideia de que não são capazes de
assumir o papel de principais cuidadores.
A representação negativa sobre as competências masculinas para cuidar é
particularmente visível no caso dos filhos solteiros que viviam com as mães e
que eram «cuidados» por estas. A representação que duas das entrevistadas
constroem acerca do papel dos seus irmãos solteiros é a de homens que
beneficiavam da ajuda das progenitoras para o desempenho das tarefas domésticas
e que são incapazes de lidar com a progressiva dependência das mesmas. Por
vezes, estes homens deixam de estar dependentes do apoio das mães e passam a
estar dependentes do apoio das irmãs.
O irmão de Celeste vivia com a mãe, mas com o agravamento do estado de saúde da
idosa, as mulheres da fratria começaram a perceber que ele não tinha capacidade
para garantir os cuidados de que a mãe necessitava. Encontraram então um modo
de cuidar que o afasta das tarefas práticas, mas que o mantém envolvido na
rede, através de um contributo financeiro. Celeste, como irmã mais velha,
sente-se responsável pelo bem-estar do irmão, garantindo o tratamento da roupa
e da casa.
«O meu irmão, como é solteiro, não tem bem prontos não tem bem
aquela coisa de tratar dela e nós então falámos os quatro: "' Olha,
para não sobrecarregar nem muito a mim, nem muito a ti, fazemos
semana e meia cada uma. Fazemos a nossa e a do nosso irmão"»
(Celeste, casada, 60 anos, trabalhadora agrícola).
Manuela apresenta-nos o exemplo do seu irmão, sem, no entanto, o culpabilizar
ou diminuir pela sua inabilidade nesta esfera. O irmão vivia com a mãe e, logo
que esta começou a ter problemas de saúde, houve necessidade de encontrar uma
solução de apoio, na qual só participa de forma esporádica.
«Manuela ' Ele vem ajudar, mas quando surge qualquer coisa ele fica
desorientado, não sabe o que lhe há-de fazer, portanto, é limitado
nesse aspecto. ( )
E ' Em termos funcionais não tem grandes competências?
Manuela ' Não, não é capaz. ( ) E várias vezes veio com a minha mãe
em pantufas e robe, porque ele nem era capaz de a vestir» (Manuela,
divorciada, 52 anos, explicadora).
Estes homens surgem no pólo oposto ao das mulheres solteiras, que são
entendidas como cuidadoras por excelência e a quem é reconhecida aptidão
«natural» para o desempenho das tarefas em causa. Nos casos estudados, o facto
de estas mulheres nunca terem saído de casa dos pais, poderá ajudar a
compreender, por um lado, o seu envolvimento e, por outro, o desprendimento dos
irmãos que constituíram núcleos domésticos autónomos. Das cinco mulheres
solteiras que entrevistámos, só uma saiu de casa dos pais no início da vida
adulta (tendo, no entanto, mantido uma ligação muito estreita com os mesmos).
As restantes permaneceram no núcleo doméstico de orientação.
Não podemos afirmar que o celibato resulte de uma pressão dos/as progenitores/
as ou das circunstâncias em causa, mas, por vezes, a assunção da
responsabilidade de cuidar dos/as progenitores/as leva a um adiamento da
concretização de projectos pessoais, transparecendo a ideia de que estas
mulheres se sentem penalizadas pela situação em que estão envolvidas.
Conceição fala-nos da força dos laços que a unem ao pai e à irmã e do prazer
que retira do desempenho do seu papel de cuidadora, em torno do qual toda a sua
vida gira. Mas esta abnegação tem os seus custos. A falta de tempo para si
própria, para sair de casa ou para investir numa relação amorosa, são algumas
das implicações que aparecem, ora de forma clara, ora de forma velada, no seu
discurso. De todo o seu testemunho destacamos uma frase dirigida à irmã que nos
parece exemplar para ilustrar a forma como representa a sua condição de mulher
solteira: «Deixa lá, tu tens vida e eu não tenho vida. Tu tens vida."
«O que é que eu penso assim: quem se sacrifica sou eu. Nunca mais fui
a um passeio, às vezes ia assim a uma excursãozita, a um passeio. ( )
Nestes dois anos tenho-me privado de muita coisa. ( ) A minha irmã é
mais velha três anos. Eu faço 42, ela faz 45. Mas damo-nos muito bem
e eu procuro sacrificar-me sempre mais e deixá-la a ela mais
aliviada, porque é o que eu digo: "' Deixa lá, tu tens vida e eu não
tenho vida. Tu tens vida"( )» (Conceição, solteira, 41 anos,
motorista).
Joana também está envolvida num esquema de cuidados egocentrado, de relativo
isolamento, com um apoio esporádico de dois irmãos. Assumiu a responsabilidade
de cuidar depois de um período a viver sozinha. A saída de casa dos pais, aos
40 anos, foi interpretada por alguns irmãos como uma atitude irresponsável e
despropositada. A tranquilidade que a sua presença representava para os
restantes elementos da fratria ficou comprometida e o seu afastamento
temporário deu origem a alguma tensão.
« para eles, vir para Coimbra também sabiam que o paizinho e a mamã
estavam lá com a menina, em Loriga, que eles estavam livres para
resolver O mais velho, na altura em que eu comuniquei que vinha para
Coimbra, foi quando ele reagiu: "' Vens para Coimbra aos 40 anos, não
estás lá bem? Ainda queres melhor? Aí é que estás bem!" Quer dizer,
não se estava a preocupar que eu tinha aspirações de futuro» (Joana,
solteira, 48 anos, empregada administrativa).
3.3. Mulheres cuidadoras versus homens decisores
Ainda que o papel dos homens nas redes de solidariedade seja significativamente
diferente do das mulheres, aqueles não estão completamente ausentes, havendo
mesmo alguns tipos de trocas em que o seu papel é primordial, nomeadamente na
mobilização de influências para arranjar emprego, na construção de habitação ou
na dádiva/empréstimo de elevadas quantias de dinheiro ou de bens muito
dispendiosos. No que concerne à prestação de cuidados aos/às dependentes, em
algumas ocasiões, ainda que excepcionais, os homens têm um papel activo na
prestação directa dos cuidados; em outras, contribuem com pequenas ajudas que
facilitam o trabalho das cuidadoras principais.
Mas os dados empíricos que recolhemos revelaram-nos uma outra realidade que,
apesar de singular, consideramos de interesse relevante. Deixando vislumbrar
alguns resquícios de um modelo patriarcal, em que aos homens compete tomar as
decisões sobre os destinos da família, encontrámos um caso em que o esquema de
apoio é decidido pelo homem, ainda que quem o vá pôr em prática seja a sua
mulher. Este papel masculino evidencia-se em outras fratrias, se bem que não de
uma forma tão acentuada, pois os processos de regulação em causa tiveram também
a colaboração das mulheres.
Claro que não podemos procurar a justificação para este comportamento somente
nos modelos normativos que diferenciam os papéis masculinos dos papéis
femininos, legitimando as assimetrias; igualmente relevante será a valorização
do estatuto de filho e de filha em detrimento do estatuto de nora e de genro.
Se, na maioria dos casos estudados, sempre que um processo de negociação tem
lugar no interior da fratria, todos se envolvem na tomada de decisões, numa
minoria, são somente os filhos ' homens ou mulheres ' que se reúnem para
desenhar o esquema de apoio a prosseguir.
Florinda aceitou a decisão do marido e das cunhadas em relação aos cuida-dos a
prestar à sua sogra. O facto de trabalhar impõe alguns limites ao desempenho
das tarefas, mas não a levam a declinar esta responsabilidade.
«E ' Portanto, foi o seu marido que tomou a iniciativa de ir falar
com as irmãs?
Florinda ' Sim, sim, sim. Foi.
E ' A Sr.ª não foi nesse dia, não foi conversar com eles?
Florinda ' Não, nesse dia não fui, não. Não.
E' E não conversou com o seu marido em casa acerca disso, antes de
ele ir, para ver qual seria a melhor solução, o que é que seria
melhor?
Florinda' A melhor solução para mim, como eu estava empregada e as
duas filhas não estavam empregadas, a minha situação, era melhor para
um Lar, porque eu não tinha tanto trabalho. Porque, assim, tenho que
ter o dobro do trabalho, mas: "' Ah não, ela agora não dá trabalho.
Ela não dá trabalho" ( ) Depois o meu marido resolveu que andava aos
quinze em quinze dias e pronto, e foi assim» (Florinda, casada, 38
anos, ajudante familiar)».
A gestão dos rendimentos dos idosos é mais um dos domínios em que se destaca a
intervenção dos homens. Este é outro indicador da diferenciação baseada na
reprodução dos papéis tradicionais, uma vez que, à semelhança do que acontece
com o poder decisório, também a gestão financeira tem sido um campo de actuação
preferencialmente masculino. «O Z. é que normalmente gere o dinheiro. Portanto
mas cada uma das cinco que acha que lhe falta qualquer coisa, compra e depois
ele dá o dinheiro» (Graça, casada, 50 anos, auxiliar de acção médica). é o meu
irmão que trabalha na Caixa. Como ele está na Caixa movimenta as contas. Nós
chegamos ao fim do mês por exemplo, eu o mês passado pedi-lhe: «' Olha,
deposita na minha conta 1450"» (Ema, casada, 67 anos, professora ' reformada).
3.4. A influência do meio geográfico e social na definição dos papéis de género
São as mulheres com estatutos socioeconómicos mais desvalorizados e de meio
rural que mais facilmente aceitam, ou chegam mesmo a defender, a segregação
entre os sexos em matéria de prestação de cuidados. Como se pôde perceber pelos
excertos que apresentámos, são as trabalhadoras agrícolas e as trabalhadoras
desqualificadas dos serviços que argumentam a favor de uma maior
responsabilização das mulheres, associada à demissão dos homens. Pelo
contrário, as mulheres de meio urbano, independentemente da sua condição
social, e mesmo que assumam a prestação dos cuidados sem a colaboração dos
homens da família, defendem valores de paridade entre os sexos.
A influência do meio social e geográfico é também relevante no que toca à
colaboração real dos homens nas redes efectivas de apoio. Os homens que se
envolvem mais directamente nos cuidados vivem preferencialmente em meio urbano
e têm níveis de escolaridade médios ou elevados. Tanto no caso dos filhos como
no dos netos cuidadores, estamos a falar de pessoas que residem em meio urbano
e que concluíram o ensino secundário (António) ou que frequenta-ram/frequentam
o ensino superior (Lúcio e os filhos de Lucinda e de Graça).
O caso de Lucinda é um exemplo deste envolvimento dos homens (filhos e marido)
do agregado doméstico da cuidadora. Podemos realçar o papel de um dos netos da
idosa, que dá uma ajuda substancial em todas as esferas dos cuidados,
substituindo a entrevistada em muitas tarefas.
«Sem a ajuda deles, sobretudo de um, que é aquele que lhe está a
prestar mais apoio, eu também não estava coisa porque também não
estava bem ( ) Leva-a ao colo sentamo-la então nessa na banheira,
damos-lhe banho, ela gosta de tomar, fica muito fresquinha, muito
bem-disposta. Tratamos, secamos-lhe o cabelo, corta-mos-lhe o cabelo,
cortamos-lhe as unhas, pronto. ( ) E à noite, também é ele que me
que de uma maneira geral, que lhe dá o jantar, dá-lhe sempre o
jantar, gosta de lá ir, é ele que lá vai e tem esse compromisso»
(Lucinda, casada, 52 anos, assistente social).
Também no caso de Graça se destaca o apoio do marido e do filho. Contudo, este
decorre essencialmente de constrangimentos de cariz profissional e não de uma
vontade explícita de cuidar, uma vez que, de acordo com a própria, os «homens
da casa» só colaboram se ela não está. Aliás, o desinteresse e o desprendimento
do seu filho são realçados pela entrevistada, que os interpreta como um sinal
da desresponsabilização da geração mais jovem.
«Graça ' Quando eu faço tarde, ele vê-se na necessidade de ajudar o
pai. Ambos a lavam e a deitam. Mas se eu cá estiver, não. ( ) Ai,
quando eu estou de tarde, eles têm que a lavar e deitar, e pôr a
fralda, e dar comer, e deitá-la.
E ' O seu marido faz essas tarefas?
Graça ' Faz mais o filho. Sim, sim, sim. ( ) O meu filho tem e já
não é nenhuma criança, tem vinte e nove anos, e só cuida da avó se,
por exemplo, eu lhe pedir» (Graça, casada, 50 anos, auxiliar de acção
médica).
4. Análise conclusiva
Apesar das profundas e inelutáveis mudanças que se fizeram sentir nas últimas
décadas, assistimos à continuidade de padrões de comportamento que perpetuam
iniquidades e alimentam a segregação de género em diversos domínios da vida em
sociedade. Os resultados da nossa pesquisa permitiram-nos perceber que, quer do
ponto de vista das práticas quotidianas, quer do ponto de vista das
representações, os cuidados às pessoas idosas dependentes continuam a ser uma
esfera em que os papéis de género são claramente diferenciados, com uma forte
penalização das mulheres.
Se pensarmos que a inserção laboral, em igualdade de circunstâncias, tem sido
uma das principais reivindicações das mulheres e um dos factores que mais
contribui para a diminuição das desigualdades de género, rapidamente percebemos
que qualquer entrave ao bom desempenho profissional ou ao acesso ao mercado de
trabalho, compromete os progressos alcançados nas últimas décadas. Philipp
Hessel e Wolfgang Keck (2009), a partir dos resultados de um estudo comparativo
da realidade dos países da União Europeia, revelam que é em Portugal e na
Alemanha que a dedicação aos cuidados informais tem um impacto mais negativo na
esfera profissional, nomeadamente nas oportunidades para encontrar trabalho. Na
globalidade dos países, são particularmente as mulheres de meia-idade e as
solteiras que diminuem o tempo que dedicam ao trabalho pago.
Assim, ao considerarmos que os cuidados às pessoas idosas continuam a ser
prestados preferencialmente em casa (Daatland, 2009; Gil, 2009; Moody, 2009;
Torres, 2006), contrariamente à ideia instalada de que a maioria das famílias
opta pela institucionalização, e que essa tarefa continua a ser assegurada
essencialmente pelas mulheres, impõe-se que deixemos algumas pistas de reflexão
(e de inquietação):
' face ao aumento dos índices de morbilidade e de dependência das
pessoas idosas (e, em particular, das muito idosas), terão as
mulheres condições para suportar o potencial aumento de
responsabilidades daí decorrentes?
' como lidarão com as crescentes solicitações e exigências neste
domínio?
' como as compatibilizarão com as suas ambições pessoais e com a sua
luta pela paridade?
' em que medida a própria noção de cuidar tenderá a mudar, no sentido
de libertar as mulheres das tarefas quotidianas e de lhes permitir
concentrar-se nas tarefas de organização/gestão desses mesmos
cuidados, assim como nas tarefas expressivas?
Ainda assim, não obstante nos casos que estudámos se manter o modelo
diferenciado e assimétrico, é expectável que as mudanças que se têm registado
nas dinâmicas familiares venham a reflectir-se também nesta área. A actual
geração de cuidadores/as, constituída preferencialmente por quinquagenários/as,
foi educada de acordo com padrões valorativos tradicionais, dando-lhes
continuidade. Pelo contrário, as gerações mais jovens estão já a caminhar no
sentido da aceitação de uma maior indiferenciação de papéis e de uma maior
afirmação da igualdade de género (Pereira, 2010). Os homens das novas gerações
estão cada vez mais envolvidos nos cuidados aos filhos e às filhas e nas
tarefas domésticas, podendo vir a assumir uma repartição mais equitativa das
tarefas do cuidar das pessoas mais velhas.