Sugestionabilidade Interrogativa em Mulheres Vítimas de Violência Conjugal
Introdução
As dinâmicas relacionais subjacentes às situações de violência na intimidade
constituem, para muitos dos profissionais que operam no sistema de justiça
português, uma área pouco conhecida. Para além deste facto, alguns preconceitos
(e.g., tolerância perante a violência, culpabilização da vítima) e práticas
judiciais (e.g., sucessivas idas a tribunal, confrontos com o agressor e
respectivo advogado, exames e perícias médicas, interrogatórios e delongas
processuais) constituem uma forma de vitimação secundária das mulheres vítimas
de violência conjugal, podendo desmotivar a denúncia e comprometer o
desenvolvimento do procedimento criminal (Bravo, 2009).
Perante o crescente número de casos de violência conjugal que chega ao sistema
de justiça português (e.g., entre o ano de 2003 e o ano de 2007, o número de
queixas registadas, apenas pela Polícia de Segurança Pública (PSP), subiu de
8436 para 10880) e a inexistência de investigações publicadas sobre a
sugestionabilidade interrogativa em mulheres vítimas deste tipo de crime, no
presente estudo procurou-se averiguar se estas mulheres apresentam maior
vulnerabilidade para construir relatos enviesados, quando submetidas a
interrogatórios sugestivos. Neste âmbito, a violência conjugal foi considerada
como um conjunto de condutas abusivas e intencionais (Matos, 2005) perpetradas
pelo homem contra a mulher, dado que esta forma de agressão constitui cerca de
86% dos casos de violência conjugal registados pela PSP, no período de 2000-
2007 (http://www.psp.pt/Pages/programasespeciais/
violenciadomestica.aspx?menu=2).
Neste trabalho, iremos abordar a questão da sugestionabilidade interrogativa,
considerando alguns dos seus aspectos conceptuais e como é que esta pode ser
avaliada através das Escalas de Sugestionabilidade de Gisli Gudjonsson (1984,
1987) e, seguidamente, debruçar-nos-emos sobre a questão da violência conjugal,
enquanto agressão exercida pelo homem contra a mulher, considerando a sua
delimitação conceptual, consequências desta forma de violência para as vítimas
mulheres e a relação com a sugestionabilidade. Posteriormente, será apresentado
o estudo empírico realizado.
1. Sugestionabilidade interrogativa
A sugestionabilidade interrogativa apresenta um conjunto de características que
a distinguem de outros tipos de sugestionabilidade (e.g., sugestionabilidade
hipnótica): (i) colocação de questões num contexto de interacção social
fechada; (ii) essas questões focarem experiências passadas, eventos e
recordações, contrariamente a outros tipos de sugestionabilidade centrados nas
experiências motoras e sensoriais da situação imediata; (iii) inclusão de um
componente de incerteza, relacionado com a capacidade de processar
cognitivamente informação; e, por último, (iv) existir uma sobrecarga de stress
nos interrogatórios, em contexto judicial, com importantes consequências para o
relato feito por testemunhas, vítimas e suspeitos (Gudjonsson, 1997). Tem sido
definida como «o grau em que, num contexto de interacção próxima, um indivíduo
aceita mensagens comunicadas por outrem, alterando, consequentemente, as suas
respostas» (Gudjonsson, 1997:1).
Existem duas formas distintas e independentes de sugestionabilidade
interrogativa (Gudjonsson e Clark, 1986): uma diz respeito ao impacto das
perguntas sugestivas nas respostas das testemunhas e a outra refere-se ao grau
em que os/as entrevistados/as são capazes de alterar respostas através do
desafio e do feedback negativo (indicação de que as respostas dadas são
incorrectas), ou seja, em que medida são susceptíveis à influência da pressão
interrogativa (Gudjonsson cit. in Howard e Hong, 2001). Visando medir estas
duas formas de sugestionabilidade, Gudjonsson, em 1984 e em 1997, criou duas
versões paralelas da Escala de Sugestionabilidade (GSS ' Gudjonsson
Suggestibility Scales).
As duas medidas principais, retiradas das GSS, são as respeitantes aos
resultados cedência 1 e mudança. A primeira refere-se ao número de questões
sugestivas a que o sujeito respondeu afirmativamente, antes da introdução de
feedback negativo, e a segunda ao número de respostas alteradas pelo sujeito,
após a introdução de feedback negativo. Podem, ainda, obter-se as seguintes
medidas: evocação imediata, evocação diferida (cinquenta minutos após a
evocação imediata), cedência 2 (número de questões sugestionáveis a que o
sujeito responde afirmativamente após a introdução de feedback negativo),
sugestionabilidade total (soma dos resultados cedência 1 e mudança) e
confabulação (aspectos imaginários, tidos pelo próprio sujeito como
verdadeiros, preenchem lacunas da memória) (Gudjonsson, 1997: 4).
Para que um indivíduo aceite a informação sugestiva, numa determinada situação
de interrogatório, é fundamental a presença dos seguintes requisitos: a
incerteza acerca do conteúdo da entrevista ' o sujeito desconhece a resposta
correcta à questão colocada; a confiança interpessoal ' o sujeito não desconfia
das intenções do entrevistador, julgando-as genuínas, honestas, acreditando num
questionamento sem truques; e as expectativas do seu desempenho ' os sujeitos
crêem que devem dar uma resposta concreta (em vez de não sei, por exemplo) ou
saber a resposta correcta para a questão colocada (Gudjonsson, 1997).
2. Violência conjugal enquanto agressão exercida pelo homem contra a mulher
A violência conjugal apresentou-se, até ao início do século XX, como uma
dinâmica familiar aceite, alimentada, silenciada e transmitida,
geracionalmente, por raízes culturais muito assentes no patriarcado (Neves,
2008; Silva, 1995). Segundo Carla Machado (2005), a violência conjugal é com
frequência associada à representação da mulher como inferior, submissa e
dependente do homem. Assim, a repartição do poder entre homens e mulheres é
desigual, culminando na subordinação destas ao poder masculino nos planos
familiar, sexual, económico, social e político (Coimbra, 2007). Madalena
Alarcão (2006) refere que, em geral, o poder se estrutura em função do sexo e
da idade, sendo que o sexo masculino é o dominante na nossa sociedade. Assim,
espera-se da mulher uma atitude de submissão, afectividade e dependência
económica, por oposição à autoridade, virilidade e responsabilidade pelo
sustento da família, atribuídas, neste contexto, ao homem (Silva, 1995). Desta
forma, os homens são socializados para afirmar a sua masculinidade, praticando
acções de poder nesse sentido e as mulheres, perante uma socialização orientada
para a referida feminilidade, sub-metem-se, muitas vezes, ao poder dos homens
(Neves, 2008).
Neste contexto patriarcal, a violência pode ser perpetrada em locais diversos,
na comunidade ou na intimidade, e segundo modalidades distintas: simbólica,
cultural, económica e institucional (Coimbra, 2007). Esta última refere-se a um
tipo de violência praticado pelos diferentes agentes estatais (e.g., polícia,
guardas prisionais), discriminando e maltratando as mulheres (e os homens)
através de costumes antigos, de leis políticas e religiosas, da tolerância
perante a violência e culpabilização da mulher, entre outros (idem).
Frequentemente, a carência de conhecimentos sobre as dinâmicas relacionais
subjacentes às situações de violência na intimidade e os preconceitos
existentes, por parte dos profissionais que operam no sistema de justiça
português, bem como a própria estrutura, organização e procedimentos deste
sistema, contribuem para a vitimação secundária destas mulheres e, ainda que de
forma inconsciente, para a sua submissão a formas sugestivas de interrogatório.
A definição de violência conjugal está longe de ser consensual e, desde os
primeiros estudos até à actualidade, foi sofrendo evoluções significativas
(Matos, 2002; Neves, 2008; Pais, 2010; Rosen, et al., 2005). Apesar da
diversidade de definições existentes, é possível destacar alguns pontos comuns,
tais como: o carácter abusivo e intencional das condutas perpetradas sobre o
parceiro; a obtenção de poder e controlo na relação como factor inerente a este
tipo de comportamentos agressivos; a variedade de comportamentos que podem
constituir formas de violência conjugal (desde os mais camuflados aos mais
evidentes ou dos mais psicológicos aos mais físicos) e que, não raras vezes,
surgem conjuntamente; a tendência destas condutas para escalar em termos de
gravidade e frequência (Almeida, 2001; Matos, 2005).
O risco das vítimas de violência conjugal desenvolverem perturbações psi-
cológicas é mediado por um conjunto de factores, tais como frequência de maus-
tratos, grau de violência envolvida e tipo de actos levados a cabo (Browne cit.
in Matos e Machado, 1999), relação existente com o agressor, condições em que
se verificaram os maus-tratos, história prévia, gravidade dos ferimentos
infligidos, sistema de apoio e recursos disponíveis (Hoff cit. inMatos e
Machado, 1999). Alguns autores sugerem, ainda, que a rede de apoio social e as
estratégias de coping, utilizadas pelas vítimas de violência conjugal
constituem meios de diferenciação dos níveis de impacto psicológico face à
experiência deste tipo de violência (Lee, Pomeroy, e Bohman, 2007).
Porém, independentemente dos factores de protecção disponíveis, esta população
apresenta, com alguma frequência, um conjunto de sinais físicos e também
psicológicos (Almeida, 2001; Machado, Matos, e Gonçalves, 2006; Matos, 2002;
Matos e Machado, 1999) como, por exemplo, perturbações cognitivas (e.g.,
flashbacks, pesadelos, dificuldades de atenção e concentração, confusão mental)
e, em particular, de memória que comprometem competências de tomada de decisão.
A este propósito interessa salientar que foi demonstrado, em alguns estudos,
que a sugestionabilidade se correlaciona, significativamente, com a memória
(Gudjonsson, 2003). Assim, pessoas com capacidade mnésica mais baixa tendem a
apresentar níveis mais elevados de sugestionabilidade. Com vítimas de violência
conjugal que obedeçam ao padrão cognitivo supracitado, designadamente, no que
respeita a défices mnésicos que podem resultar num reforço da incerteza durante
o interrogatório, criam-se condições favoráveis à ocorrência de respostas
sugestionáveis (Polczyk, et al., 2004). Dada a frequência de confusão mental,
presente na população em análise, são de esperar algumas dificuldades ao nível
da monitorização da fonte ou da capacidade de diferenciação entre várias fontes
da informação armazenada na memória. Por seu turno, parece existir uma
correlação negativa entre a sugestionabilidade e a capacidade de memória da
fonte (Lieberman, 2002), em vítimas de violência conjugal.
Importa conhecer que a auto-estima, segundo vários estudos, parece estar
negativamente correlacionada com a sugestionabilidade interrogativa
(Gudjonsson, 2003). Este resultado apoia a ideia de que o feedback negativo,
quando aceite pelo sujeito, pode provocar uma forte reacção emocional e
fisiológica que, por sua vez, poderá resultar num incremento da incerteza e num
decréscimo da auto-estima. Uma vez diminuída, esta pode resultar em pensamentos
e estratégias de coping debilitantes, favoráveis à aceitação da sugestão
(Gudjonsson, 2003).
Ainda neste âmbito, pode inferir-se a possibilidade das mulheres vítimas de
violência conjugal manifestarem um padrão comunicacional pouco assertivo,
sobretudo em contextos de relacionamento conjugal. Este padrão seria devido à
própria dinâmica/jogo de poder, experienciado na relação amorosa, na qual o
companheiro ocupa uma posição one-up, em detrimento da posição one-down1
da mulher. A verificar-se, esta situação também pode contribuir para maior
vulnerabilidade à sugestão por parte destas mulheres, até porque se supõe que,
segundo o modelo de Gudjonsson-Clark (1986), pessoas pouco assertivas tenham
dificuldade em implementar estratégias de coping favoráveis à resistência à
sugestão, perante a incerteza e as expectativas da situação de interrogatório
(Gudjonsson e Clark, 1986). De facto, Gudjonsson e Clark (1986) encontraram uma
correlação negativa entre estes dois conceitos (assertividade e
sugestionabilidade). Uma possível explicação prende-se com a possibilidade dos
sujeitos terem medo elevado de uma avaliação negativa que iniba os
comportamentos assertivos (Dunbar, et al. cit. in Gudjonsson, 2003), bem como a
mobilização de estratégias de coping que possam favorecer a resistência à
sugestão, durante a situação de interrogatório (Gudjonsson, 2001).
Outras características observadas nas vítimas de violência conjugal referem-se
a perturbações de ansiedade (Almeida, 2001; Machado, Matos, e Gonçalves, 2006;
Matos, 2002; Matos e Machado, 1999). Estas, também, parecem mediar,
significativamente, a sugestionabilidade, mais especificamente, a «ansiedade
estado». Gudjonsson (2003) concluiu que as correlações positivas entre a
ansiedade e a sugestionabilidade se tornam mais significativas quando se trata
da «ansiedade estado», medida durante o questionamento sugestivo, por oposição
à «ansiedade traço», avaliada antes do mesmo.
Perante estes factores de vulnerabilidade, Lester Friedman e Neil Shulman
(1990) apelam à necessidade «de uma consideração especial», no sistema de
justiça e nas conceptualizações individuais e sociais acerca do fenómeno de
violência conjugal. Por outro lado, é, ainda, essencial desconstruir um passado
marcado pela «regra patriarcal» (Silva, 1995) e (re)formular um discurso
interno que assinale, definitivamente, a igualdade de poder entre sexos e,
desta forma, imprimir aos silenciosos gritos privados, o ruído necessário para
que estes se oiçam fora das paredes do lar.
Estudo empírico
1. Método
Administrou-se, individualmente, a 60 mulheres, 30 vítimas de violência
conjugal (grupo 1) e 30 mulheres não vítimas deste tipo de violência (grupo 2),
a Escala de Sugestionabilidade de Gudjonsson 2 (GSS 2) (Gudjonsson, 1997;
versão portuguesa de Capelo, et al., 2007). Entre a primeira e a segunda
evocações da história gravada da GSS 2 aplicou-se, pela ordem que se segue, uma
tarefa de Memória da Fonte2
, o Inventário de Assertividade de Auto-Resposta (ASRI)(Herzberg, et al.,
1984), o Brief COPE (Carver, 1997; adaptação portuguesa de Pais-Ribeiro e
Rodrigues, 2004) e o Inventário de Sintomas Psicopatológicos (BSI) (Derogatis,
1993; versão portuguesa de Canavarro, 1999, 2007). Depois da evocação diferida,
o examinador colocou as vinte questões da GSS 2, quinze das quais sugestivas,
tendo a participante de responder «sim» (caso considerasse que o conteúdo da
questão estava correcto), «não» (quando o conteúdo fosse reconhecido como
errado ou não correspondente ao que de facto tinha sucedido) ou «não sei» (na
situação de não se recordar da informação pedida pela questão ou no caso dessa
informação não ter sido referida, durante a audição da história). A seguir, foi
introduzido o feedback negativo, relativo à prestação das participantes. Este
consistiu em comunicar-lhes, de modo assertivo, que tinham cometido vários
erros. Assim, pedia-se às participantes que prestassem mais atenção às vinte
questões (já colocadas) que iriam ser, outra vez, repetidas. Concluída a
aplicação da GSS 2, procedeu-se à administração do Inventário de Violência
Conjugal (IVC) (Machado, Matos, e Gonçalves, 2000). Este instrumento permitiu
excluir do grupo 2, as mulheres que assinalaram positivamente itens relativos à
experiência de vitimação. Tal facto verificou-se apenas com duas participantes
(inicialmente contactadas para constituírem o grupo 2) que transitaram para o
grupo 1.
A administração de todos instrumentos esteve a cargo da primeira autora,
ocorreu numa única sessão (durante aproximadamente 60 minutos), seguindo-se o
mesmo procedimento para ambos os grupos. O local de aplicação do referido
protocolo foi variável, de acordo com as preferências das participantes (e.g.,
a sua própria casa, gabinetes das instituições de apoio a vítimas de violência
doméstica), garantindo-se sempre contextos favoráveis ao desempenho das tarefas
solicitadas (ambiente tranquilo e confortável, com condições de luminosidade,
de temperatura, de acústica e de privacidade adequadas).
As mulheres pertencentes ao primeiro grupo tinham idades entre os 24 e os 53
anos (M = 38.20, DP = 6.57), e foram recrutadas em instituições de apoio a
vítimas de violência doméstica. As que constituíram o segundo grupo, com idades
entre os 24 e os 48 anos (M = 37.47, DP = 8.31), foram recrutadas através da
rede de pessoas conhecidas da primeira autora (processo «bola de neve»). Não se
encontraram diferenças estatisticamente significativas entre os dois grupos,
quer no que respeita à idade [t(58) = .33, p = .744], quer relativamente à
escolaridade [?2(4, N = 60) = 3.07, p = .547] que variou entre o 4.º ano e o
grau de mestre.
2. Resultados
No âmbito do presente estudo são apresentados resultados relativos aos
seguintes aspectos: diferenças entre grupos quanto à sugestionabilidade (GSS
2), memória do item (história da GSS 2 e teste de reconhecimento dos itens na
tarefa de Memória da Fonte), memória da fonte (tarefa de Memória da Fonte),
assertividade (ASRI), estilos de coping (Brief COPE) e sintomatologia
psicopatológica (BSI), e relação entre memória da fonte, assertividade, estilos
de coping, sintomatologia psicopatológica e sugestionabilidade.
Verificou-se a existência de diferenças, estatisticamente significativas, entre
o grupo 1 e o grupo 2, nos seguintes resultados: mudança (GSS 2) [t(58) = -
2.78, p = .007], sugestionabilidade total (GSS 2) [t(58) = -2.77, p = .008],
taxa de falsos alarmes (tarefa de Reconhecimento da Fonte) [t(58) = -2.01, p =
.049], sensibilidade interpessoal (BSI) [t(58) = 2.97, p = .004], coping
autodistracção (Brief Cope) [t(58) = 2.36, p = .022] e Índice de Sintomas
Positivos (BSI) [t(58) = 2.18, p = .033]. O grupo 1 e o grupo 2 apresentaram
ainda diferenças, marginalmente significativas, no que respeita aos resultados
cedência 1 [t(58) = -1.92, p= .060], cedência 2 [t(58) = -1.92, p = .059] e
depressão (BSI) [t(58) = 1.92, p= .060].
Adicionalmente, uma vez que os grupos não diferiram entre si quanto à memória
da fonte, averiguou-se se existiam diferenças quanto ao tipo de itens (palavras
versus desenhos) na amostra total. Verificou-se que a memória da fonte para
desenhos (M = .74, DP = .16) foi superior à memória da fonte para palavras (M =
.49, DP = .24), sendo esta diferença estatisticamente significativa [t(59) = -
8.19, p < .001].
Verificaram-se as seguintes associações, estatisticamente significativas: uma
correlação positiva entre a sugestionabilidade total e a taxa de falsos alarmes
[r(28) = .43, p = .017], no grupo 1 e uma correlação negativa entre a
sugestionabilidade total e o estilo de coping expressão de sentimentos [r(28) =
-.41, p = .024], no grupo 2. Foram também encontradas correlações,
estatisticamente significativas, no grupo 1, relativamente a todas as
variáveis: a evocação imediata e a sugestionabilidade totalcorrelacionaram-se
no sentido negativo [r(28) = -.48, p = .007], bem como a evocação diferida e a
sugestionabilidade total [r(28) = -.58, p = .01]; as variáveis cedência 1,
cedência 2 e mudança correlacionaram-se, positivamente, com a
sugestionabilidade total[r(28) = .89, p < .001; r(28) = .73, p < .001 e r(28) =
.73, p< .001; respectivamente]. Relativamente ao grupo 2, verificaram-se também
correlações positivas, estatisticamente significativas, entre as variáveis
cedência 1, cedência 2 e mudança com a sugestionabilidade total [r(28) = .88, p
= .001; r(28) = .75, p < .001; r(28) = .71, p < .001; respectivamente].
3. Discussão dos resultados
A cultura portuguesa está impregnada de estereótipos, preconceitos e
discriminações de género, muitos deles contra as mulheres, que acabam por
«habitar» o consciente ou o inconsciente dos indivíduos, inclusivamente
daqueles que actuam no sistema de justiça (Pimentel, 1998). É provável que
muitos dos interrogatórios realizados no contexto policial e jurídico se
encontrem contaminados por esses conteúdos discriminatórios, representando um
perigo de injustiça acrescido para vítimas com maior vulnerabilidade à
sugestão. O presente estudo procurou analisar a sugestionabilidade
interrogativa num grupo de mulheres vítimas de violência conjugal e,
adicionalmente, averiguar a existência de relações entre a sugestionabilidade
interrogativa e os seguintes aspectos: memória do item e da fonte,
assertividade, estilos de coping e traços psicopatológicos.
3.1. Sugestionabilidade interrogativa (GSS 2) e suas relações com traços
psicopatológicos (BSI)
A literatura indica que as vítimas de violência conjugal apresentam,
geralmente, índices superiores de ansiedade (Almeida, 2001; Machado, Matos, e
Gonçalves, 2006) e que esta, por sua vez, se relaciona, positivamente, com a
sugestionabilidade interrogativa (Gudjonsson, 2003). Porém, no presente estudo,
não se verificou a existência de uma maior vulnerabilidade à sugestão por parte
do grupo de participantes vítimas de violência conjugal, pois as participantes
não vítimas apresentaram valores mais elevados e estatisticamente
significativos de sugestionabilidade interrogativa. É de assinalar que também
não foram encontradas diferenças, estatisticamente significativas, entre os
dois grupos quanto à ansiedade e que esta não se correlacionou positivamente
com a sugestionabilidade. Ainda no que respeita a esta dimensão do BSI, ambos
os grupos apresentaram resultados médios (M = 1.52, DP = 1.12 e M = 1.22, DP =
0.61, respectivamente, grupo 1 e grupo 2), comparando com os dados normativos
disponíveis para a população geral portuguesa (Canavarro, 2007).
Para explicar os resultados obtidos, várias hipóteses podem ser levantadas.
Frequentemente, as mulheres vítimas de violência conjugal apresentam sinais de
hipervigilância e desconfiança face aos outros (Almeida, 2001; Machado, Matos,
e Gonçalves, 2006), o que pode abalar a confiança interpessoal, um dos factores
essenciais para que a vulnerabilidade à sugestão se concretize. De notar que as
participantes que constituem o grupo 1 foram recrutadas em instituições
vocacionadas para apoiar vítimas de violência conjugal. Desta forma, poderá ter
acontecido que muitas delas, no momento da realização deste estudo, devido ao
apoio prestado pela instituição, já tivessem conseguido minimizar o impacto da
situação de vitimação, indiciando a adopção de uma postura proactiva e de
mobilização de estratégias que possam conferir resistência à sugestão. Para
além disto, verifica-se que cerca de metade (47%) das mulheres que constituem o
grupo 1 se encontram separadas do agressor (ainda que recentemente), o que
poderá ter contribuído para uma minimização de sintomas derivados da
experiência de violência conjugal. Todavia, relativamente a este último
aspecto, resultados obtidos no BSI, quanto ao Índice de Sintomas Positivos,
mostraram que o grupo das participantes vítimas de violência conjugal é
superior ao grupo das participantes não vítimas. Comparando com os dados
normativos disponíveis para a população geral portuguesa (M= 1.56, DP = .39), o
grupo 1 (M = 2.13, DP = .68) encontra-se acima da média, já o grupo 2 (M =
1.80, DP = .45), se considerarmos o desvio padrão, obteve resultados médios
(Canavarro, 2007).
Um outro aspecto a considerar prende-se com a diferença, estatisticamente
significativa, encontrada ao nível da dimensão sensibilidade interpessoaldo
BSI3
. Provavelmente, as mulheres do grupo 1 (vítimas de violência conjugal), nas
interacções sociais (contexto particularmente relevante para o estudo da
sugestionabilidade), apresentam mais sentimentos de inferioridade,
autodepreciação, desconforto e timidez, em comparação com as do grupo 2. Assim,
as participantes vítimas de violência conjugal poderiam ter respondido mais
vezes «não sei» às questões da GSS 2 (o que se verificou na análise qualitativa
das respostas dadas) por se sentirem pouco capazes e inseguras na sua resposta.
As respostas do tipo «não sei» podem dever-se a uma falta de conforto para as
participantes do grupo 1 responderem o que realmente pensam (sensibilidade
interpessoal) e não ao facto de não se lembrarem do conteúdo da história da GSS
2 (não existem diferenças estatisticamente significativas entre os dois grupos
no que respeita às evocações imediata e diferida). Tais respostas recebem
cotação zero para os valores cedência, contribuindo para a obtenção de valores
mais baixos na sugestionabilidade total. De notar, ainda, que uma resposta
desta natureza também poderá ser menos susceptível de alteração, o que
originaria resultados mudança igualmente reduzidos. Esta diferença de pontuação
entre o grupo 1 e 2 verifica-se de forma estatisticamente significativa para o
resultado mudança e de forma marginalmente significativa para os resultados
cedência 1 e cedência 2.
Retomando o resultado sugestionabilidade total obtido com a GSS 2, verificaram-
se, em ambos os grupos estudados, valores de correlação que variaram entre alto
e elevado com cedência 1, cedência2 e mudança, o que poderá constituir um
indicador de que a sugestionabilidade interrogativa avaliada por esta escala
não é apenas uma medida de memória, mas contempla a tendência para ceder à
pressão, considerada como uma 'medida social' (Baxter e Boon, 2000).
3.2. Memória da fonte e memória do item
No presente estudo, não se verificou uma relação negativa e estatisticamente
significativa entre a sugestionabilidade e a memória da fonte. Comparando as
duas fontes de informação, desenhos e palavras, verificou-se que as
participantes deste estudo conseguiram uma melhor monitorização da fonte de
informação quando o material a recordar era constituído por desenhos. Estes
resultados são convergentes com um estudo realizado por Noelle Brown (2007).
Observou-se a existência de uma relação negativa e estatisticamente
significativa entre a sugestionabilidade e a memória do item, medida através
das evocações imediata e diferida na GSS 2, apenas para o grupo 1 (mulheres
vítimas de violência conjugal), verificando-se uma associação negativa,
moderada e estatisticamente significativa entre a evocação imediata, a evocação
diferida e a sugestionabilidade total. Este resultado apoia a ideia, já
referida, de que a sugestionabilidade medida pela GSS 2 não é unicamente uma
medida de memória.
Para a taxa de falsos alarmes, a correlação encontrada revelou-se
estatisticamente significativa, apresentando um valor considerado também
moderado. Os resultados mostraram, apenas, que os dois grupos diferem de forma
estatisticamente significativa no que concerne à taxa de falsos alarmes, tendo
o grupo 2 (mulheres não vítimas) cometido mais erros deste tipo. Este resultado
ganha sentido neste contexto, dado que o grupo 2 se revelou mais sugestionável.
3.3. Assertividade
As participantes vítimas de violência conjugal poderiam ser menos assertivas do
que as participantes controlo, dada a sua posição one-down na relação conjugal,
muitas vezes subjacente a um padrão relacional característico do terrorismo
íntimo4
(Johnson e Ferraro cit. in Rosen, et al., 2005). Pela análise qualitativa do
ASRI, verificou-se que as respostas relativas a itens que envolvem uma dinâmica
relacional com um companheiro foram menos assertivas para o grupo das mulheres
vítimas de violência conjugal; porém, nos restantes itens não se observaram
discrepâncias. Este dado pode explicar a inexistência de diferenças
estatisticamente significativas entre os dois grupos e levar a considerar que,
de facto, não são as características individuais que explicam as relações
violentas, mas sim as dinâmicas relacionais. Assim, as vítimas de violência
conjugal não seriam pessoas menos assertivas, mas, possivelmente, respondem de
forma menos assertiva ao seu companheiro.
3.4. Estilos decoping
No que respeita aos estilos de coping, registou-se uma associação negativa,
moderada e estatisticamente significativa entre a expressão de sentimentos[
(«aumento da consciência do stress emocional e pessoal e a tendência
concomitante para exprimir ou descarregar esses sentimentos» (Pais-Ribeiro e
Rodrigues, 2004: 10)] e a sugestionabilidade, no grupo de participantes não
vítimas. Assim, parece que esta estratégia de coping focada nas emoções, de
acordo com Rick Howard e Seok Hong (cit. in Gudjonsson, 2003), estaria
relacionada com um aumento da sugestionabilidade, no grupo 2.
Os dois grupos diferem de forma estatisticamente significativa relativamente ao
estilo de coping autodistracção [(«desinvestimento mental do objectivo com que
o stressor está a interferir, através do sonho acordado, dormir ou
autodistracção» (Pais-Ribeiro e Rodrigues, 2004: 10)]. Assim, o grupo das
mulheres vítimas de violência conjugal parece fazer maior uso desta estratégia
de coping, em comparação com o grupo 2. O coping autodistracção é uma
estratégia para fazer face aos problemas focalizada nas emoções, isto é,
constitui um esforço para regular o estado emocional associado a eventos
stressantes (Folkman e Lazarus cit in Antoniazzi, Dell'Aglio, e Bandeira,
1998). Desta forma, associar-se-ia positivamente com a sugestionabilidade
(Howard e Hong cit. in Gudjonsson, 2003). Contudo, no presente estudo essa
relação não se verificou, podendo sugerir que esta estratégia no grupo das
mulheres vítimas de violência conjugal não teve um impacto directo,
suficientemente forte, ou que o seu efeito foi atenuado por outros processos.
Relativamente a este resultado, também pode ser relevante ter em conta que, na
maioria dos casos de violência conjugal, as estratégias de coping centradas nas
emoções podem ser especialmente úteis e, muitas vezes, as únicas passíveis de
serem utilizadas por estas mulheres (pelo menos a curto prazo). Aliás, Roger
Mitchell e Christine Hodson (cit. in Lee,et al., 2007) preferem utilizar a
distinção entre estratégias activas e passivas de coping (em vez de estratégias
centradas nas emoções e estratégias centradas no problema), considerando as
primeiras especialmente favoráveis à saúde mental da mulher vítima de violência
conjugal.
Conclusão
Não obstante a crescente formação dos profissionais que operam no contexto
judicial, designadamente no âmbito da violência conjugal, os procedimentos de
inquirição (de suspeitos, vítimas ou testemunhas) utilizados são, por vezes,
orientados por técnicas que não promovem a obtenção de relatos rigorosos nem
minimizam a vulnerabilidade emocional das vítimas. Vários estudos mostram que
em mulheres vítimas de violência conjugal estão presentes algumas
características que podem potenciar a sugestionabilidade, como por exemplo,
problemas mnésicos e perturbações de ansiedade.
Todavia, contrariamente ao esperado, a partir da revisão teórica da temática
sobre violência conjugal e sugestionabilidade, os resultados obtidos na GSS 2
indicam que as participantes vítimas de violência conjugal são menos
sugestionáveis do que as participantes não vítimas. O facto das participantes
neste estudo recorrerem ao auxílio prestado por instituições vocacionadas para
o apoio especializado a vítimas de violência conjugal poderá ter conduzido à
atenuação do impacto da situação de vitimação, mediante a adopção de uma
postura proactiva e a mobilização de estratégias que possam conferir
resistência à sugestão. Tal condição poderia ter como consequência o
favorecimento da aproximação deste grupo de participantes ao grupo das
participantes não vítimas5
. No entanto, características como hipervigilância e desconfiança face aos
outros, muitas vezes presentes em mulheres vítimas de violência conjugal
(Almeida, 2001; Machado, Matos, e Gonçalves, 2006), ao diminuírem a confiança
interpessoal, um dos factores essenciais à ocorrência de vulnerabilidade à
sugestão, poderão ter contribuído para o resultado observado quanto à
sugestionabilidade interrogativa.
Note-se, porém, que estas explicações devem ser entendidas como hipóteses
equacionadas a partir da informação fornecida pela literatura relevante. Por
outro lado, os resultados encontrados devem ser considerados atendendo às
limitações da amostra do presente estudo (tamanho relativamente pequeno,
ausência de representatividade e número elevado de variáveis medidas).
Contudo, trata-se de um estudo pioneiro em Portugal, contribuindo,
modestamente, para colmatar a ausência de estudos publicados sobre a
sugestionabilidade interrogativa em mulheres vítimas de violência conjugal.
Assim, afigura-se necessária a realização de outros estudos que superem as
limitações deste, nomeadamente, considerando vítimas de violência conjugal que
ainda não estejam a receber apoio especializado e envolvendo amostras
representativas deste tipo de população. É também essencial que novos estudos
possam contribuir para pôr em causa ideias, patriarcalmente orientadas, acerca
dos papéis da mulher (e do homem) na sociedade e na família e prejudiciais ao
tratamento dado a mulheres vítimas deste tipo de violência, no contexto
judicial.