Feminismos: Percursos e Desafios (1947-2007)
Tavares, Manuela (2011), Feminismos. Percursos e Desafios (1947-2007), Lisboa,
Texto Editora/Leya.
João Manuel de Oliveira*
*Universidade do Minho; Birkbeck, Universidade de Londres
O trabalho de Manuela Tavares sobre a história dos movimentos de mulheres
(Tavares, 2000, 2003) e dos feminismos tem permitido gradualmente ir contando a
narrativa fragmentada e atravessada por contradições que é a dos feminismos
portugueses. Este livro, resultado de uma tese de doutoramento em Estudos sobre
as Mulheres defendida na Universidade Aberta, permite uma visão ampla do que
foram os feminismos em Portugal, com grelhas de leitura que nos permitem
compreender o presente e perceber o modo como avançaremos para o futuro. A
sensação ao ler este livro é que ele constitui uma das chaves para perceber o
movimento feminista em Portugal de 1947 a 2007. Ao longo destes 60 anos,
surpreendem-nos as peripécias mas sobretudo a vitalidade de um pensamento e
acção que atravessam uma ditadura e vão encontrar outras roupagens com o 25 de
Abril. Filiando a própria construção historiográfica na reinscrição das
mulheres na história, sem as acantonar ao domínio específico de uma história de
mulheres, a autora procede à revisita destes anos de feminismos, encarando-os
como uma construção complexa. Misturados no anti-fascismo e nas lutas pela
democracia, os feminismos em Portugal são objecto de uma hibridização com
outras causas, que a autora analisa em detalhe. Até ao momento em que as
preocupações feministas passam a ganhar relevo e destaque próprios, longe do
açambarcamento das agendas da esquerda e colonização das preocupações
feministas por outros assuntos sempre considerados como mais importantes. Esse
momento luminoso, em que três mulheres ' Maria Teresa Horta, Maria Velho da
Costa e Maria Isabel Barreno ' escrevem As Novas Cartas Portuguesas. Tavares
analisa com detalhe a grande atenção internacional feminista, solidária com as
autoras e com a situação de colonização do corpo das mulheres arrestado pelo
fascismo.
O detalhe e atenção que a autora dá aos grandes acontecimentos do feminismo em
Portugal, evidenciando também as pequenas histórias e as múltiplas ocultações
que os feminismos sofreram, permitem perceber as várias configurações que os
feminismos portugueses apresentaram, tanto ao nível da sua subordinação a
questões de agenda política, como ao nível da sua sempre difícil autonomização.
No entanto, o retrato que Manuela Tavares nos dá permite-nos ter uma certeza: a
da absoluta necessidade de afirmação tanto do pensamento como da acção
feminista no contexto português, salientando o que existe tanto de particular
no caso português, como de comum com outros contextos, nomeadamente os
europeus. Entretecendo na sua história, as biografias, a análise de imprensa e
diversas fontes documentais, inquéritos a estudantes, a descrição dos grupos de
acção feminista e próximos do feminismo e análise de questões feministas como o
aborto, a violência contra as mulheres, o trabalho sexual, o tráfico de
mulheres, a imigração, o emprego e o trabalho e as sexualidades, o retrato
oferecido é simultaneamente diacrónico e sincrónico, ou seja, histórico e
sociológico. Esta dupla acepção permite com que passemos a dispor de um livro
que trata de um acervo riquíssimo e trabalhado de uma forma inteligente, não
aceitando o silenciamento mas resgatando estas memórias para o presente.
Manuela Tavares recorre à historiografia feminista para proceder a uma
interrogação sistemática dos silêncios que assolam estas múltiplas «aparições»
dos feminismos tácitos e assumidos na história portuguesa, conceitos a que a
autora recorre no seu livro. Os feminismos portugueses partilham, com outros
países, a inserção difícil na esfera pública, a misoginia com que são recebidos
por sectores alargados da sociedade dando origem a reacções anti-feministas de
vária ordem, que a autora também denuncia. A marca contextual dos feminismos em
Portugal é associada aos anos do fascismo, com as lutas estudantis, com a luta
contra a Guerra Colonial e com a fundamental importância do projecto de
democratização. Nestes contextos, os feminismos ficaram, de acordo com a
autora, numa dimensão mais tácita, do que propriamente assumida. Tal como o
foram mais tarde, na longa luta dos feminismos portugueses, pela despenalização
da interrupção voluntária da gravidez.
Há contudo esforços desenvolvidos pelos movimentos de mulheres como, por
exemplo, o extinto Movimento de Libertação das Mulheres ou a actual União de
Mulheres Alternativa e Resposta para desocultar os feminismos e simultaneamente
sinalizar e denunciar obstáculos à cidadania plena das mulheres. As
dificuldades destes caminhos são referidas e salientadas tal como as soluções
criativas e a luta que as feministas desenvolveram. Este livro é um processo de
reconhecimento para estes grupos e permite-nos saudar os seus esforços,
devidamente apreciados no livro de Manuela Tavares.
A proposta de Manuela Tavares de novos sujeitos feministas, na esteira de
alguns trabalhos da teoria feminista, permite traduzir para Portugal as
preocupações de algumas autoras feministas com a multiplicidade das mulheres,
encaradas como um grupo atravessado por múltiplas diferenças e contradições,
permite adaptar alguns contributos da teoria feminista para o contexto
português. Este contributo está também patente no mapeamento que a autora
procede sobre a teoria feminista, exercício sempre difícil e complexo.
O registo de escrita da autora neste livro rompe as fronteiras entre as
descrições frias e objectivas e os relatos implicados. De facto, a autora varia
entre estes registos, permitindo assim aceder a várias possibilidades de
entendimento das questões feministas. É possível entrever a paixão confessada
pela autora, sem com isso, perder de vista as possibilidades de uma descrição
objectiva. Esta aproximação comprometida com o objecto permite à autora
produzir conhecimentos emancipatórios e reflexivos que permitam às/aos
leitoras/es conhecer aprofundadamente o que foram e o que são os feminismos.
Cabe-me por fim, saudar a autora, figura importante dos feminismos portugueses
e que tem envidado grandes esforços para visibilizar o pensamento e a acção
feminista, quer a nível de publicações ou de organização de importantes
seminários e congressos. Este livro é uma continuidade dos seus esforços e deve
ser encarado como um contributo fundamental para entender os feminismos em
Portugal. Manuela Tavares soube trazer-lhes a luminosidade do seu contributo e
a sua clarividência, possibilitando que outras vozes se sobreponham aos
silêncios.