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EuPTHUHu0874-55602012000100006

EuPTHUHu0874-55602012000100006

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0874-5560
ano2012
Issue0001
Article number00006

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O lugar do Direito nas políticas contra a violência doméstica

Introdução A violência doméstica2 permanece na atualidade como uma relevante fonte de exclusão social. Com uma crescente visibilidade na esfera pública, traduzida num claro aumento das denúncias, este tipo específico de violência tem sido objeto de diversas políticas dirigidas à sua prevenção, à sua criminalização e ao apoio às vítimas.

Com efeito, se até uns anos a maioria dos países tendia a negligenciar a existência deste problema, hoje podemos afirmar que o tratamento legal da violência doméstica é uma prioridade, facilitando a intervenção do Estado e outros organismos nestas situações. Obviamente que as respostas para os casos de violência doméstica não se esgotam no Direito, e o Estado tem atuado noutras áreas, como na prevenção ou no aumento de valências sociais de apoio às vítimas. Mas a centralidade que o Direito assume no combate à violência doméstica e nas reivindicações e expectativas quer das vítimas, quer das organizações de mulheres, é incontestável.

Através da análise da evolução jurídica e prática judiciária nos casos de violência doméstica em Portugal, este artigo pretende dar um contributo para uma reflexão crítica dos desafios que se colocam especificamente às políticas de combate à violência doméstica dirigidas à sua criminalização, tendo como pano de fundo os debates proporcionados pelas teorias feministas do Direito.

1. Tem o Direito3 lugar nas reivindicações feministas? Alguns debates teóricos Na segunda parte do século XX, as teóricas feministas demonstraram que a produção masculina do conhecimento através do Direito, da ciência ou da cultura criou hierarquias que consignaram as mulheres para a inferioridade e exclusão. A crítica feminista nestas arenas evidenciou a necessidade de contestar estes conhecimentos nos moldes tradicionais (Sunder, 2007). As feministas do Direito em particular intentaram compreender a construção da matriz do Direito sustentada pelo (e que sustenta) o status quo patriarcal para o conseguirem questionar4. Se dúvidas que o Direito produza, per se, relações patriarcais5, o mesmo não acontece relativamente à contribuição que aquele à perpetuação, legitimação e reprodução das mesmas na sociedade.

O estado da arte sobre esta questão permite reunir um conjunto de argumentos, muitos deles na esteira dos estudos críticos do Direito, que evidenciam a ineficácia do Direito nas lutas pela igualdade. Não tendo a pretensão de dar conta aqui de toda essa diversidade argumentativa, enumero alguns que entendo particularmente relevantes de um ponto de vista teórico e metodológico. Um primeiro argumento prende-se com o modo como o Direito lida com o binómio igualdade/diferença. São antigas as reivindicações feministas pela garantia da igualdade e paridade na lei. Com efeito, na década de 1970, as feministas liberais, reivindicando a igualdade entre homens e mulheres em diferentes campos, exigiram transformações no Direito de modo a que este fornecesse soluções idênticas para problemas jurídicos semelhantes (Bartlett, 1994). Ou seja, de acordo com esta estratégia, a igualdade para as mulheres poderia ser alcançada através da eliminação das diferenças de género na lei.

Drucilla Cornell (1995) explica, contudo, que não é uma reivindicação feminista que as mulheres sejam consideradas iguais aos homens, mas sim que o sexo feminino tenha valor equivalente ao sexo masculino, de maneira a que, perante a lei, tenham igual peso. Para a autora, não têm sido as diferenças reais que têm negado a igualdade às mulheres como por exemplo, o facto de apenas aquelas engravidarem , mas sim a desvalorização dessas diferenças, sobretudo no Direito. Nesta esteira, entendeu-se que o Direito não pode/deve tratar homens e mulheres do mesmo modo, quando claramente as suas posições na sociedade, no emprego, na sexualidade, na família, etc., são, ainda, tão diferenciadas (McCorkel et al., 2000).

Como consequência, na década de 1980 começou a constatar-se que o discurso igualitário do Direito podia conduzir a desigualdades e que, com a capa aparente da neutralidade, não raras vezes o Direito, através da lei ou das decisões judiciais, mais não fazia do que reproduzir o status quo em vigor, fosse ele o da classe dominante ou do patriarcado (Ewick, 2004; Smart, 1999).

Mas se, por um lado, um regime de igualdade de oportunidades não se constrói sem um pensamento social atento às diferenças e à necessidade de tratamentos diferenciados numa lógica proactiva, por outro, quando o Direito consagra as diferenças, pode fazê-lo de forma a que os sujeitos as mulheres sejam entendidos de forma parcial. O Direito ou procede a um entendimento parcial da identidade das mulheres com base na diferença entre os sexos, inscrevendo essas diferenças nos textos legais ou/e universaliza a mulher, inserindo-a numa categoria homogénea (sem raça, etnia, religião, orientação sexual, etc.), omitindo as suas diferenças dos textos legais e, consequentemente, caindo num essencialismo cultural (Duarte, 2011).

Estas críticas, aqui apresentadas de forma muito sintética, demonstram que é negligente, e até ingénuo, pensar-se que o Direito pode por si , através de ameaça sancionatória, impor a igualdade. Contudo, "a crença excessiva na capacidade reguladora do Direito é tão incorreta como a convicção da irrelevância da instância jurídica" (Beleza, 1990:19). Esta incorreção deve-se, na minha opinião, a dois motivos. Em primeiro lugar, porque é difícil para o movimento feminista não traduzir as suas reivindicações em direitos (MacKinnon, 1989). O que não tem tal tradução não existe e, pior, acentua a clivagem entre opressores/as e oprimidos/as. Em segundo lugar, porque uma contextualização histórica das conquistas feministas permite verificar a importância do Direito na progressão (ainda que com permanentes retrocessos e tempos diferenciados) da igualdade de género em campos como o emprego, o casamento, a família e a proteção das mulheres de atos violentos (Fimenan, 1997). O que é necessário ter sempre presente é que, se em alguns casos as leis tiveram tradução direta na melhoria das vidas das mulheres, outros houve em que a existência de certa lei conduziu a uma regressão. Como consequência, não devem criar-se muitas expectativas em relação às reformas legais que podem, efetivamente, ser pontuais, ser travadas por obstáculos na sua implementação prática e sem grande capacidade de transformação das mentalidades (Smart, 1989).

Esta crítica ao Direito é necessária e indispensável e não devemos descartar a sua potencialidade para o próprio Direito. Assim, ainda que os argumentos acima identificados sejam ignorados na definição das leis que regulam as vidas das mulheres, uma das grandes conquistas das correntes feministas do Direito tem sido, precisamente, evidenciá-los, identificando o conteúdo ideológico e patriarcal da razoabilidade do Direito e questionando essa mesma razoabilidade (Lahey, 1991). Como consequência, segundo Chamallas (2003), se uma tese predominante no corpo eclético de investigação da chamada "teoria feminista do Direito" é a de que o género permeou o pensamento no Direito, afetando as categorias doutrinais básicas, os discursos legais e as estruturas das instituições legais.

É deste pressuposto que parte a expressão feminist jurisprudence ou "Direito das (para as) mulheres". Na esteira da autora norueguesa Tove Stang Dahl (1993), esta feminist jurisprudence pressupõe documentar e entender a situação jurídica das mulheres com vista à busca de soluções para a sua melhoria. Para desempenhar tal missão, é fundamental contestar e transgredir as delimitações tradicionais entre os campos do jurídico (disciplinas académicas e legislação) entre o jurídico e o não jurídico (os espaços privados vazios de juridicidade) e entre o legislado e o vivido (Beleza, 2010), não se esperando muito do Direito, ao mesmo tempo que não se aceita acriticamente aquilo que ele tem para dar.

2. O Direito e a violência doméstica contra as mulheres em Portugal A violência doméstica contra as mulheres é um caso interessante de análise no que diz respeito ao papel do Direito, sendo profícua a produção legislativa nesta matéria. Muitas feministas têm argumentado que os direitos de cidadania das mulheres não estão assegurados enquanto na esfera privada estas continuarem a ser objeto de violência (Naranch, 1997). Assim, tenho vindo a analisar as emergências no tratamento legal da violência doméstica, procurando encontrar boas práticas e identificar caminhos tortuosos. Com esse objetivo defini uma metodologia, que neste artigo se apresenta bipartida, pressupondo análise de conteúdo (de políticas públicas, de legislação, estatísticas da justiça e de processos- crime) e realização de entrevistas a ativistas e técnicos/as de organizações de apoio à vítima e a profissionais do direito (magistrados/as do Ministério Público, juízes/as e advogadas/os)6. Por parte de todos/as procurei, entre outros aspetos, apurar o seu grau de conhecimento sobre violência doméstica e analisar as suas opiniões sobre as políticas de prevenção e combate a este fenómeno.

De seguida dou conta de algumas das questões que surgiram mais evidentes nas narrativas das pessoas entrevistadas, tendo por base a evolução da legislação nesta matéria.

2.1. As alterações legislativas ao tipo do ilícito criminal: dos maus tratos à violência doméstica Hoje em dia são cerca de uma centena os Estados que se dotaram de legislação específica para combater a violência doméstica. Entre estes, Portugal que, desde 1982, criminalizou a violência exercida no seio da família. Esta foi uma importante conquista, tendo em conta que durante milénios práticas violentas contra as mulheres no seio da família eram não apenas toleradas, como até encaradas como algo que escapava por completo à tutela do Direito e do Estado.

Podemos afirmar que Portugal fez um esforço significativo nesta matéria. Este é um empenho relativamente recente, localizado a partir do 25 de Abril de 1974 mais especificamente com a Constituição de 1976 , muito devido às movimentações populares que traziam consigo fortes reivindicações em torno da consagração de direitos. Como consequência de uma longa ditadura, e não obstante a violência contra as mulheres começar, na década de 1960/70, a emergir nos feminismos europeus como uma prioridade, esta reivindicação teve eco público em Portugal nos finais da década de 1990, por pressão de associações que continuaram a batalhar nesta causa e pela agenda europeia institucional da igualdade de género, que influenciou o governo a elaborar os primeiros planos nacionais para a igualdade e contra a violência doméstica7 (Magalhães, 1998; Tavares, 2011).

Não é possível enunciar aqui todas as modificações que ocorreram neste tipo legal desde que o ordenamento jurídico português o reconheceu, mas apenas mencionar alguns marcos que parecem importantes para este debate.

A redação do artigo 153.º do Código Penal de 1982, que consagrou o crime de maus-tratos a cônjuge na ordem jurídica portuguesa, nunca satisfez totalmente as organizações feministas, por ser uma versão adaptada de uma proposta inicial onde esta problemática não era sequer considerada. Efetivamente, a autonomização do crime de maus-tratos foi proposta pela primeira vez por Eduardo Correia, em 1966, no Anteprojeto para a revisão do Código Penal. Na sua proposta inicial, o crime de maus-tratos desdobrava-se em dois artigos, a saber o artigo 166.º relativo aos "Maus tratos a crianças" e o artigo 167.º cuja epígrafe era "Sobrecarga de menores e de subordinados".

Desta proposta inicial não constava, pois, os maus-tratos a cônjuge, aspeto introduzido mais tarde pela comissão revisora. Como consequência, o denominador comum presente em todo o artigo uma relação de subordinação entre o agente e a vítima (menores, indefesos de diversa espécie e subordinados) tornou-se extensível às relações conjugais nas quais impera a igualdade entre os cônjuges.

Em 1995 o legislador atribuiu expressamente ao crime natureza semipública e em 1998, mantendo essa natureza, instituiu a possibilidade de o Ministério Público abrir inquérito e avançar com o processo no interesse da vítima, podendo esta ainda opor-se até à dedução da acusação. As hesitações nesta matéria terminaram em 2000, quando mais uma revisão transformou o crime em crime público.

Um longo caminho se percorreu desde 1982 até à última modificação nesta matéria. A reforma penal de 2007, aprovada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, introduziu alterações significativas. Desde logo, procedeu-se à autonomização do tipo legal de crime intitulado violência doméstica, atualmente previsto e punido pelo artigo 152.º do Código Penal. Uma vez mais, o conceito utilizado não agradou a todas as organizações que atuam, direta ou indiretamente, na área da violência doméstica.

Embora mostrando-se genericamente satisfeitas com a nova legislação, a maioria das ONG entrevistadas mostrou-se tendencialmente favorável a que este conceito fosse substituído pelo de violência de género, à semelhança do que acontece na legislação espanhola. Com efeito, uma questão recorrentemente mencionada por parte das ONG, sobretudo de cariz feminista, é se estas políticas legislativas, não obstante o seu contributo, se integram realmente numa política de género mais ampla, que o conceito de violência doméstica também engloba outras formas de violência, ocorridas em âmbito essencialmente familiar, como a violência sobre menores ou idosos/as. Não se trata de ignorar a importância destes tipos de violência, mas tão-somente exigir que o âmbito de intervenção da legislação que enquadra a violência doméstica tenha em conta as especificidades da violência que ocorre nas relações de intimidade, nomeadamente aquela que continua a ter uma maior expressão a exercida sobre mulheres e as relações desiguais de género8.

Para além da autonomização do tipo de crime, são quatro as alterações mais relevantes: 1) a eliminação definitiva dos requisitos de reiteração ou intensidade; 2) o alargamento do tipo relacional existente entre agente e vítima para a qualificação do crime de violência doméstica; 3) alargamento das possibilidades de aplicação de penas acessórias; 4) para além das situações de agravação em função do resultado, previsão da agravação em função das circunstâncias.

Estas alterações permitiram que alguns/mas autores/as, como Teresa Beleza, defendam que "o legislador está certamente a levar a sério a incriminação da violência entre pessoas próximas, familiar, doméstica, ou como se queira chamar. A jurisprudência terá o caminho aberto por esta revisão de 2007 relativamente facilitado, uma vez que as especificações do preceito são mais acentuadas. " (Beleza, 2007: 10-11). A mesma autora admite, no entanto, que este caminho apresenta ainda alguns obstáculos.

A vontade do "Legislador" e a prática da lei O subtítulo é provocatório, aludindo ao falso neutro sempre aplicado a esta "entidade" e à sobejamente conhecida discrepância entre o direito escrito e o direito praticado. Com efeito, a grande maioria das pessoas entrevistadas, quer da sociedade civil, quer da arena legal, foi mais contundente nas críticas apontadas à prática da lei, do que ao seu texto propriamente dito. Foram três as críticas mais recorrentemente apontadas à prática judiciária, mesmo entre pares (magistrados/ as judiciais e do Ministério Público).

A primeira prende-se com a controvérsia em torno da ideia de reiteração. No entendimento de alguns/mas autores/as, apesar de tal não estar expresso textualmente na disposição legal penal, as várias descrições típicas do n.º 1 do artigo 153.º sugeriam uma ideia de reiteração e de continuidade ou significativa gravidade do ato de mau trato, com a referência à necessidade de malvadez ou egoísmo (Gomes, 2004: 13). A jurisprudência começou a exigir, assim, para a qualificação dos factos como crime de maus tratos entre cônjuges a existência de dolo específico, neste caso malvadez9, e o elemento de reiteração ou intensidade dos factos praticados.

A revisão de 2007 procurou colocar um ponto final naquela discussão jurisprudencial ao prever expressamente que os maus tratos físicos ou psíquicos relevantes para a qualificação do tipo legal de crime de violência doméstica podem ser infligidos de modo reiterado ou não10. No entanto, as entrevistas realizadas a magistrados/as demonstram que, apesar desta modificação, várias/os tendem ainda a considerar que a reiteração é um fator indispensável na avaliação de um caso de violência doméstica, argumentando que, caso contrário, caminhar-se-ia para a banalização deste tipo legal. Nesta esteira segue ainda alguma jurisprudência. Um acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, após a entrada em vigor da Lei, indeferiu o recurso interposto pelo Ministério Público para condenar por violência doméstica um homem que deu duas bofetadas na mulher com quem vivera maritalmente durante 14 anos. Na primeira instância, o homem tinha sido condenado pelo crime de ofensa à integridade simples, na pena de 140 dias de multa, à razão diária de 7 euros, e ainda no pagamento à ex-mulher de 500 euros a título de danos não patrimoniais. O Ministério Público recorreu, pedindo a condenação pelo crime de violência doméstica, subindo, assim, o limite mínimo da pena para dois anos. O Tribunal da Relação, de segunda instância, discordou, afirmando:

() não sendo o comportamento do arguido reiterado, a agressão em causa (tratando-se de uma ação isolada) não revela uma intensidade, ao nível do desvalor, da ação e do resultado, que seja suficiente para lesar o bem jurídico protegido mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7 de novembro de 2010).

A segunda crítica diz respeito à aplicação de medidas de coação. A previsão da punibilidade das condutas integradoras do tipo de crime de maus tratos a cônjuge inseridas no Código Penal de 1982 cedo se revelou insuficiente para uma adequada proteção da vítima. Os dados do Ministério da Justiça, entre 1998 e 2006, eram efetivamente preocupantes, mostrando que em 95,6% dos casos de violência doméstica sobre cônjuge foi aplicado somente o termo de identidade e residência, que não confere qualquer proteção às vítimas.

A Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que aprovou o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e assistência das suas vítimas, procedeu à criação de um regime especial de detenção e de aplicação de medidas de coação nos casos em que haja indícios da prática de um crime de violência doméstica. Na sequência desta lei, foi iniciada, em janeiro de 2009, uma experiência piloto do programa de Vigilância Eletrónica para Agressores Domésticos, o que acaba por ser um bom indiciador de uma possível mudança no paradigma de aplicação destas medidas e da avaliação da gravidade destes casos e do potencial de risco que apresentam para as vítimas.

Parece ir-se, assim, ao encontro de uma letra da lei mais coincidente com uma efetiva proteção das mulheres contra a violência nas relações de intimidade uma vez que grande parte delas apresenta uma denúncia formal do seu agressor para, no imediato, alcançar um patamar de segurança (Garcia e McManimon, 2011).

Por fim, não obstante a revisão penal de 2007 ter alargado as possibilidades de aplicação de penas acessórias no caso de crime de violência doméstica, a terceira crítica prende-se precisamente com as penas aplicadas a este tipo de crime. Quando analisamos as condenações, constatamos que o número de condenados por violência doméstica tem vindo a aumentar significativamente (com 71 condenações em 2000 e 718 em 200911), fruto de uma tendência crescente para apresentação de queixas na polícia, do facto de o crime ter assumido natureza pública em 2000 e, também, de uma crescente consciencialização social da gravidade deste tipo de fenómeno que teve tradução no empenho dos/as magistrados/ as nesta matéria e na lei. No entanto, e apesar da significativa diminuição, a pena mais aplicada nestes casos continua a ser a pena de prisão suspensa simples (em 2000, esta pena representou 92% das penas aplicadas e, em 2009, 38%12). Esta pena, por não implicar qualquer dever de sujeição ou regra de conduta por parte do arguido, conduz, para grande parte das pessoas entrevistadas, a um certo sentimento de impunidade que tem consequências naquele conflito específico, com o agressor a sentir que não lhe foi aplicada qualquer pena, e em termos de prevenção geral deste tipo de crime na sociedade.

3.2. A categorização das mulheres vítimas de violência na prática judiciária Embora se assista a uma cada vez maior sensibilização e empenho por parte das magistraturas no combate a este tipo de violência, não podemos deixar de notar que o discurso judicial se vai mantendo fiel a certos modelos sociais que regulam as relações de género. Como refere Teresa Beleza (2004), apesar das modificações legislativas, as práticas sociais e o seu reconhecimento normativo nas decisões judiciais encarregam-se de travar as mudanças mais significativas e mais profundas.

Para tal não é indiferente o modo como as ideias, as imagens sociais ou os preconceitos relativos às mulheres interagem no quotidiano dos Tribunais, e designadamente na produção do discurso judiciário. Diversos estudos têm vindo a demonstrar que não obstante a consagração legal do princípio da Igualdade perante a Lei, que as mulheres, enquanto grupo social, são mais severamente afetadas por mitos, preconceitos e estereótipos sexistas, contidos quer nas leis, quer nas mentes dos juízes. Isto tem consequências a vários níveis (e.g.

Bowman et. al, 2010; Thomas & Boisseau, 2011; Beleza, 2001).

Desde logo, a criação de uma tipologia aplicada às vítimas. Para Lynn Schafran (1985), os três estereótipos mais marcantes refletidos nas decisões judiciais, são os seguintes: "Maria", a mulher casta/doméstica, para quem a maternidade é a suprema realização, e inábil para tomar qualquer posição que implique autoridade sobre outras pessoas; "Eva", a eterna tentadora que leva os homens a delinquir, e que é também agente da sua própria vitimização, designadamente nos crimes sexuais; e a "Super Mulher", aquela que está no mercado de trabalho em plenas condições de igualdade salarial com os seus colegas homens, e que dispõe, em consequência, de recursos próprios para, por si, se sustentar e aos/às seus/suas filhos/as, sem necessidade, portanto, de qualquer ajuda por parte do pai dos/as seus/suas filhos/as. Alguns destes estereótipos foram encontrados nas narrativas de alguns/mas dos/as magistrados/as entrevistados/as. Adaptando a categorização de Schafran, foi possível identificarmos tipos de vítimas, não necessariamente exclusivas, nem excludentes. Em primeiro lugar, temos a "vítima inocente", que fez um grande esforço para manter a família e a relação afetiva, apesar de ser seriamente agredida fisicamente. Esta mulher, apesar de agredida, tardou a apresentar denúncia devido, em especial, à sua baixa instrução ou dependência económica do agressor. Este tipo ideal de vítima vai ao encontro de "Maria":

mulheres que vemos claramente que foram realmente vítimas de violência. Que sofreram durante anos e anos, que contam a sua história a soluçar. Mas aquele era o homem que amavam e, por isso, hesitaram apresentar queixa. Tentaram mudar elas a situação. Consigo compreender isso (E2, Magistrada judicial).

O segundo tipo de vítima identificado nos discursos de magistrados/as é o da "vítima tão culpada quanto o agressor". Aqui encontramos discursos de atenuação da gravidade do comportamento do agressor, por atos da vítima tidos como provocatórios (por exemplo, infidelidade ou comportamento agressivo):

vítimas que se põem a jeito. A vítima cria situações de provocação, que depois não consegue resolver o problema, nem encontrar solução. () Isto é como as violações. Como eu costumo dizer, a mulher pode permitir tudo até à última, mas depois diz que não. E não é não. Se o homem continuar está a violar, não dúvidas nenhumas. A vontade da pessoa tem de ser muito ponderada. Claro que a mulher que depois andou até às últimas, a permitir tudo e mais alguma coisa, acaba por ter algum merecimento nesta situação. Mas a verdade é esta, servirá para compreendermos melhor a atitude do arguido, mas não servirá tanto para desculpá-lo. Embora isto não deixe de ser de alguma maneira um fator desculpabilizante. () Na violência doméstica pode haver muitas situações (E3, Magistrado judicial).

Uma vez mais também é possível encontrar na jurisprudência alguns exemplos. Em maio de 2004, o Supremo Tribunal de Justiça lavrou um acórdão sobre crime de homicídio em que aceitou o incumprimento do dever de sujeição sexual da mulher ao marido como circunstância atenuante da pena por uxoricídio:

No doseamento concreto, haverá de ter em conta nomeadamente as circunstâncias de cariz agravante que se enunciaram, não esquecendo ainda assim as [poucas] atenuantes de que o arguido deve beneficiar, e assim, por um lado, que é analfabeto, e, também, que a vítima, sem que se saiba porquê ignorância mais uma vez favorável ao arguido em sede de valoração da prova "após finais de março de 2002, quando o arguido regressou de França depois de ter terminado um contrato de trabalho, (...) passou a não querer manter relações sexuais com ele", circunstância, que, pelo menos, permitirá a afirmação de que nem do lado do arguido terá havido violação dos deveres conjugais, e pode até ajudar a explicar as dúvidas surgidas naquele espírito pouco iluminado sobre a (in)fidelidade dela (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de maio de 2004).

Refira-se, no entanto, que, contrariamente à anterior, esta categoria foi significativamente menos frequentemente identificada nas narrativas dos/as magistrados/ as entrevistados/as.

O terceiro tipo de vítima é a "vítima imaginária", aquela mulher que, por estados depressivos, de carência afetiva ou de paranoia, cria situações não reais de vitimização.

Por fim, e usando a categoria referida, temos a "supermulher".

Esta categoria, refletindo uma mulher economicamente independente, e com uma carreira profissional bem sucedida, surge como a antítese das outras "vítimas". Verificámos que tende a haver uma resistência em admitir que mulheres com tais características se submetam a uma situação de violência numa relação de intimidade, sobretudo quando esta é prolongada:

Posso dizer-lhe que 90% das queixas de violência doméstica que aqui chegam são falsas. São mulheres que usam o processo-crime para os casos de divórcio, de regulação das responsabilidades parentais e que não são realmente situações de violência doméstica. () Então quando chega aqui uma senhora, com o seu próprio advogado, sem ser oficioso, com um discurso muito articulado, que sabe muito bem o que dizer e o que quer, desconfio logo (E4, Magistrada do Ministério Público).

Esta resistência vai ao encontro da preposição, sugerida pela teoria liberal, de que a conceção de autonomia e cidadania não pode acomodar situações de violência nos relacionamentos íntimos, porque o autodomínio decreta que o indivíduo, simplesmente, se embora ou que lide com a situação sem a intervenção do Estado o que não é viável para a maioria de mulheres que sofrem abusos (Pateman, 1988).

A construção social de vítima está tão enraizada na sociedade que leva a que estes atores judiciais tenham pouca, ou mesmo nenhuma, consciência, dos estereótipos que carregam. Isto é tanto mais grave quanto é assumido que neste tipo de criminalidade, "as declarações das vítimas merecem uma ponderada valorização, uma vez que maus tratos físicos ou psíquicos infligidos ocorreram normalmente dentro do domicílio conjugal, sem testemunhas." (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06/06/2001).

Esta questão específica evidencia o modo como, não obstante reformas legais progressistas, se podem perpetuar situações de injustiça e como novos discursos e racionalidades se desenvolvem para justificar a continuidade da disparidade do género em situações de violência (Siegel, 1996).

Reflexões Finais Durante os últimos 20 anos, têm sido alcançadas vitórias políticas cruciais na área da violência doméstica. O Estado legitimou, legislou e fez cumprir políticas que protegem e fortalecem o poder das mulheres em situação de violência.

Não obstante as modificações legais, as entrevistas realizadas, a par da análise dos dados judiciais, parecem sugerir que ainda um longo caminho a percorrer. Tal verifica-se a vários níveis: em decisões judiciais que nem sempre valorizam a violência exercida sobre as mulheres; em medidas de coação que não protegem as vítimas; em sanções que traduzem um sentimento de impunidade pelos agressores; em processos demasiadamente morosos e em indemnizações insuficientes atribuídas às vítimas. Mas, se a legislação e a formação vão pontualmente procurando minimizar os problemas enunciados, o caminho mais difícil de desbravar parece ser o de combater os mitos e estereótipos sobre a violência de género existentes na sociedade e, logo também, no seio da comunidade jurídica, mormente nos tribunais. Esta constatação faz-nos concordar com Ferreira (1998), quando nos diz que a igualdade de género na lei se fez antes da mudança de mentalidades; e com Beleza (2004) quando afirma que a igualdade, mesmo extravasando o campo meramente formal e sendo material e substantiva, é minada pelas desigualdades estruturais na sociedade.

Estas práticas judiciárias devem ser analisadas e evidenciadas. Como vimos, um projeto feminista pode, (1) partindo de um desencanto e de uma lógica da suspeição em relação ao Direito, (2) da sua incapacidade de uma transformação social progressista e (3) de perspetivar aquele como reflexo e reprodutor de um status quo em que prevalecem as relações sociais desiguais de género, reconhecer as mudanças que têm vindo a ser implementadas, e usá-lo como instrumento na luta pela igualdade (Fineman, 2011; Levit, 2006; Schneider, 2000; Bender, 1993).

Como diz provocativamente Foucault (1980), onde poder resistência e contudo, ou talvez por isso mesmo, esta nunca está numa posição de exterioridade em relação ao poder. Assim, se é verdade que a igualdade declarada e até promovida na lei encontra inúmeros obstáculos na sua aplicação prática, o Direito não controla definitiva ou isoladamente a vida social e os seus valores, e não se limita, ao contrário dos mais céticos, a plasmar em letra de lei as conceções socialmente dominantes. O Direito as leis, a jurisprudência, as práticas jurídicas e judiciárias tem tido um papel constitutivo importante na segregação discursiva de grupos de pessoas, nomeadamente as mulheres. Talvez por isso mesmo, o Direito possa ajudar a desfazer essa segregação, não proibindo tratamentos discriminatórios, mas sobretudo obrigando as devidas instâncias a tomar medidas que contrariem a real situação de inferioridade social de algumas pessoas: transmitir, por exemplo, à sociedade que a violência doméstica é realmente um crime que ocorre no seio das desigualdades de género.

Para que esse exercício surja como possível, é fundamental que ativistas feministas e feministas do Direito continuem a perspetivar a arena jurídica como um importante espaço de debate e reflexão que desafia o cânone mais tradicional do direito: analisando o texto da lei e as práticas jurídicas e judiciárias, avaliando as consequências daquelas nas vidas das mulheres e construindo metodologias interdisciplinares que permitam que as experiências dessas mulheres influenciem a prática judiciária. Em síntese, não permitindo que o Direito se feche em si mesmo.

Neste sentido, creio que podemos levantar a hipótese, que terá de ser empiricamente mais aprofundada, de que se o Direito é algo de socialmente construído e que, portanto, está sujeito a um contínuo processo de reelaboração em nome das dinâmicas sociais que lutam pelos seus mecanismos, então a proliferação de visões feministas do Direito poderão contribuir para que este caminhe em torno de uma crescente e efetiva igualdade entre homens e mulheres, na lei e na prática judiciária.


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