Introdução. Epistemologias e metodologias feministas em Portugal: contributos
para velhos e novos debates
Introdução. Epistemologias e metodologias feministas em Portugal: contributos
para velhos e novos debates
Maria do Mar Pereira1 e Ana Cristina Santos2
1 Universidade de Warwick, Reino Unido
2 Universidade de Coimbra, Portugal
Desde a sua emergência, uma das principais missões da investigação feminista
tem sido desenvolver um projeto interdisciplinar de análise crítica dos
pressupostos epistemológicos e dos princípios e procedimentos metodológicos da
ciência dita mainstream. É notório e inegável que, em muitos países e áreas de
estudo, esta crítica feminista gerou ao longo das últimas décadas inovações
importantes: dela têm resultado não só novos conceitos e métodos de
investigação, mas também propostas substanciais e inovadoras de reestruturação
dos paradigmas dominantes de concetualização do conhecimento científico. Como
argumenta Terry Threadgold, "[n]ão há uma única disciplina nas
Humanidades ou nas Ciências Sociais que não tenha sido afetada de alguma forma
pela reflexão e investigação feminista dos últimos 30 anos" (2000: 46).
No entanto, este projeto feminista de crítica metodológica e epistemológica não
é linear nem consensual e, apesar dos seus inegáveis avanços, permanece
inacabado. Com a publicação deste dossiê temático, a ex aequo propõe-se criar
um espaço internacional e interdisciplinar para debater o pensamento feminista
sobre epistemologia e metodologia3. O dossiê procura assim contribuir para o
aprofundamento de um conjunto de discussões que nos parecem fundamentais por
três razões, sobre as quais nos debruçamos seguidamente.
O Estatuto e (Falta de) Reconhecimento da Crítica Epistemológica e Metodológica
Feminista em Portugal
Em Portugal, autoras/es feministas têm feito um grande esforço de desconstrução
da produção científica nacional em diferentes disciplinas, e de criação de
epistemologias e metodologias feministas (disciplinares ou interdisciplinares)
inspiradas em propostas internacionais4 adaptadas ao contexto português. Veja-
se, por exemplo, o trabalho de Lígia Amâncio (1994, 2001, 2003), Helena Costa
Araújo (2002), Adriana Bebiano (Bebiano et al., 2009; Bebiano e Ramalho, 2010),
Madalena Duarte (2013), Virgínia Ferreira (2004), Laura Fonseca (2001), Teresa
Joaquim (2001, 2007), Ana Gabriela Macedo e Ana Luísa Amaral (Macedo, 2012;
Macedo e Amaral, 2002, 2005), Maria José Magalhães (1998, 2005), Sofia Neves
(2010, 2012; Neves e Nogueira, 2004, 2005), Conceição Nogueira (2001a, 2001b,
2012), João Manuel de Oliveira (2009, 2010, 2012; Oliveira, J.M.d. e Amâncio,
2006), Maria do Mar Pereira (2012a), Teresa Pinto (2008), Maria Irene Ramalho
(2001), Ana Cristina Santos (2006, 2012), Maria Johanna Schouten (2011),
Manuela Tavares (2011; Tavares et al., 2012) e Miguel Vale de Almeida (1995;
Vale de Almeida et al., 1996).
Este conjunto de intervenções afirma-se já como um sólido, diversificado e
amadurecido corpus de reflexão feminista, e tem servido de base para a
consolidação da investigação e ensino em estudos sobre as mulheres, de género e
feministas (EMGF) em Portugal. No entanto, o seu reconhecimento e impacto para
além da área, embora crescente, é ainda relativamente limitado. Analisando a
forma como o género é estudado à escala nacional, várias/os autoras/es têm
demonstrado que na produção científica dominante continua a entender-se a
análise de género como a comparação entre sexos para descrever aquilo que os
diferencia, o que produz uma problemática ampliação, reificação e dicotomização
dessas diferenças (Amâncio, 2003; Joaquim, 2004; Neves, 2012; Nogueira, 2001b;
Oliveira, J.M.d., 2012; Pereira, 2012a; Vale de Almeida et al., 1996). Esta
tendência parece indicar que a crítica feminista não resultou ainda numa
efetiva mudança de paradigma no discurso sobre género nas ciências sociais e
humanidades em Portugal. Como argumenta Joaquim,
A categoria analítica de género tornou-se mais presente em Portugal
nos anos 90 ( ). Tornou-se numa palavra passe-partout, nomeadamente
na sua emigração e tradução em contextos institucionais cuja
utilização ' nessa tradução institucionalizada ' é muitas vezes
indevida, por escamotear a crítica que essa categoria analítica
implícita, podendo-se fazê-la despolitizar' a luta das mulheres. [É
uma c]ategoria analítica que se tornou um contributo teórico
importante, mas que não é reconhecido na sua fonte, que é cortada'
da área dos estudos sobre as mulheres, das teorias feministas,
havendo neste caso a despolitização também do conceito. (2004: 89)
Investigação etnográfica recente produzida por uma de nós (Pereira, 2012b)
contribui para explicar como e por que é que este "corte" acontece.
Com base em observação participante em mais de 50 eventos científicos e
entrevistas com quase 40 académicas/os e estudantes (conduzidas entre 2008 e
2009), foram analisados os discursos que circulam no meio académico português
sobre o estatuto epistémico dos EMGF (isto é, sobre a validade, credibilidade e
pertinência dos EMGF enquanto conhecimento científico). Examinando como é que
as/os académicas/os fora dos EMGF falam sobre a área em contexto de sala de
aula, conferências e reuniões, demonstra-se que a grande maioria afirma que a
área produz conhecimento válido e pertinente, mas só até certo ponto ou em
algumas condições.
Este discurso de reconhecimento condicional retrata os EMGF como uma área que
está parcialmente dentro e parcialmente fora das fronteiras do conhecimento
científico "a sério". Por outras palavras, a área é vista como
incluindo contributos que são epistemicamente valiosos e outros que vão
"longe demais", isto é, que estão para lá da fronteira que
alegadamente separa o conhecimento que é científico (e que, portanto, deve ser
reconhecido, desenvolvido, citado, ensinado) daquele que não o é. Geralmente,
os elementos dos EMGF que estas/es investigadoras/ es consideram que vão
"longe demais" são precisamente as críticas epistemológicas e
metodológicas ao conhecimento dominante produzidas pelas/os autoras/es
feministas (Pereira, 2012b).
Esta caracterização dos EMGF gera e possibilita um "corte
epistémico" (epistemic splitting) dos EMGF, isto é, produz uma separação
entre elementos dos EMGF que as/os investigadoras/es feministas consideram
inseparáveis (Pereira, 2012b). Permite, por exemplo, separar o conceito de
género das críticas feministas de caráter epistemológico, teórico e político
que estão na origem do desenvolvimento do conceito, com base no argumento de
que essas críticas são epistemicamente deficientes e, como tal, podem ser
legitimamente ignoradas ou descartadas. Esta manobra permite à investigação
científica dominante utilizar conceitos e contributos feministas, mas contornar
a crítica feminista aos seus princípios epistemológicos e metodológicos. Torna-
se, assim, possível utilizar o conceito de género e fazer análise de género sem
uma efetiva mudança de paradigma epistemológico e metodológico ' como denunciam
Joaquim (2004) e as/os outras/os autoras/es referidas/os acima. Consideramos,
portanto, que é urgente continuar a fortalecer o debate sobre epistemologia e
metodologia feminista, de forma a desenvolver estratégias para resistir a esta
apropriação seletiva do pensamento feminista.
O Debate sobre Epistemologia e Metodologia Feminista em Portugal
Como salientam Fonow e Cook (2005) e Harding e Norberg (2005), entre outras/os
autoras/es, não existe uma metodologia e epistemologia feminista consensual e
homogénea, e o debate entre feministas sobre os méritos e limitações de
diferentes abordagens tem sido intenso e frutífero. No entanto, apesar da
existência de um corpus consolidado de reflexão feminista sobre epistemologia e
metodologia, é frequente ouvir dizer que não existe debate epistemológico e
metodológico em Portugal, tanto dentro como fora dos EMGF. Nos finais dos anos
1990, António Sousa Ribeiro e Maria Irene Ramalho escreviam,
Não tem sido muito viva entre nós a reflexão sobre a situação
epistemológica das Ciências Sociais e das Humanidades ( ). São, de
facto, por norma bastante escassas no nosso contexto as tentativas
relevantes de trazer à discussão ( ) O sentido, potencialidades e
limites dos contextos paradigmáticos em cada momento vigentes. Daqui
resulta um dos aspectos sem dúvida mais perturbadores da vida
intelectual portuguesa: a forma como as transições de paradigma ou,
simplesmente, a adopção deste ou daquele modelo teórico ou
metodológico se vão fazendo de acordo com uma lógica indiscutida ( ).
(1998/1999: 80)
Um/a investigador/a sénior entrevistada/o no âmbito do estudo etnográfico
anteriormente citado (Pereira, 2012b) descreve este facto como um resultado da
dimensão relativamente pequena da comunidade académica em Portugal:
O debate científico [em Portugal] é cerceadíssimo, não é, as pessoas
dependem muito umas das outras, dependem muito, muito umas das
outras. Têm aquelas, como é que se chamam, os não sei quantos graus
de separação são rapidíssimos, as pessoas conhecem-se, têm relações
familiares, dependem muito dos favores umas das outras, não querem
chatear para depois não serem chateadas, enfim, tudo o que a gente
sabe sobre uma sociedade pequena. E portanto as coisas não se dizem e
não se debatem muito, mas depois ouvem-se as conversas das pessoas e
percebe-se que [as críticas] acontecem.
Este é considerado também um traço característico dos EMGF em Portugal. De
facto, uma das afirmações feitas mais frequentemente em conferências, em textos
escritos, e nas entrevistas realizadas por Pereira (2011), é a de que na
investigação portuguesa em EMGF há uma falta de debate epistemológico e teórico
aprofundado (Ferreira, 2001; Joaquim, 2001; Magalhães, 2001; Pinto, 2007b;
Tavares et al., 2012). Marianne Grünell e Erna Kas descrevem Portugal como um
país com "investigação feminista cordial", citando um comentário
feito por Teresa Joaquim em situação de entrevista: "[a]qui o clima
intelectual é caracterizado por co-existência ou indiferença. Também se pode
dizer que somos muito cordiais e bem-educadas. É esse o caso também nos estudos
sobre as mulheres: não há tradição de discussão teórica" (Joaquim, citada
em Grünell e Kas, 1995: 543). Lígia Amâncio também discute esta questão,
escrevendo que "nunca é demais acentuar" que a
"riqueza" do debate que caracteriza os EMGF nos Estados Unidos da
América não tem paralelo em Portugal (2001: 21). Também ela atribui esta
diferença à dimensão relativamente pequena da comunidade académica em Portugal,
e à sua "estranha associação entre debate e conflito ' interpessoal ou
institucional" (Amâncio, 2002: 57), que faz com que o debate
epistemológico e teórico seja condicionado por, e gerador de, tensões pessoais
e institucionais. Todas as pessoas entrevistadas por Pereira (2011) que se
referiram a esta falta de debate descreveram-na como um constrangimento nocivo
ao desenvolvimento da investigação em EMGF. Algumas/uns entrevistadas/os
salientaram que nos últimos anos se têm feito esforços ' nomeadamente através
da ex aequo (Nogueira, 2004; Pinto, 2007a, 2009) e do Congresso Feminista,
organizado pela União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) em 2008 ' para
promover o debate escrito ou público nos EMGF, mas explicaram que estes
esforços (ainda) não tinham dado tantos frutos como seria desejável.
No entanto, esta é apenas uma parte de uma história bem mais complexa. Várias/
os entrevistadas/os explicaram que a "cordialidade" pública e falta
de debate aberto coexiste com um cenário diferente nos contextos menos
públicos. Segundo elas/es, nesses contextos verifica-se uma frequente produção
de discussões epistemológicas e metodológicas, muitas vezes com avaliações
mordazes do valor relativo de diferentes abordagens. Um/a investigador/a sénior
em EMGF ofereceu o seguinte relato dessas discussões:
Sempre houve em Portugal, nas ciências sociais em geral, e nesta área
[dos EMGF] também, uma dificuldade de assumir o debate, não se
assumem as diferenças, as divergências metodológicas e até
epistemológicas, quero dizer, assumem-se, mas só internamente. (...)
Não se confrontam umas com as outras, cara a cara. (...) Isso é muito
prejudicial, porque as pessoas fazem avaliações à socapa das
investigações dos outros, mas não as confrontam, e as pessoas não têm
possibilidade de se defender e argumentar. E mais ainda, aquela
investigação como é desvalorizada, também não é potencializada para a
área, percebes? E portanto isso é quase como se ela não existisse, e
portanto não se potencia o debate e o desenvolvimento da área.
Este é, de facto, a nosso ver, um dos grandes desafios que se colocam à
investigação feminista em Portugal na atualidade. O debate e crítica são
elementos vitais e generativos da produção de conhecimento feminista. Como
argumenta a antropóloga Marilyn Strathern, "o feminismo reside no próprio
debate" (1988: 24). Como tal, consignar o debate metodológico e
epistemológico às "conversas de corredor"5 limita profunda e
problematicamente o espaço de crescimento da investigação feminista, e
impossibilita as trocas e confrontos de ideias que catalizam a inovação.
Interdisciplinar para Indisciplinar: o Potencial Disruptivo da Epistemologia e
Metodologia Feministas (também) em Portugal
A terceira e última razão que justifica a urgência da reflexão proposta neste
dossiê reside justamente no caráter simultaneamente académico e político dos
EMGF. Por motivos de síntese, propomo-nos desdobrar esta razão em dois
elementos: posicionalidades porosas; e temas emergentes.
Tal como em outros temas não dominantes cujas propostas hermenêuticas exigem
validação empírica rigorosa ancorada em fontes primárias de informação6, os
EMGF estão tão próximos do seu objeto/sujeito de estudo que as fronteiras entre
ambos se tornam particularmente porosas. Assim, movimentos sociais, academia,
jornalistas e agentes de decisão política, entre outros exemplos, estão
frequentemente em estreita articulação na produção de conhecimento e na prática
feminista. Acresce que essa porosidade, mais do que envergonhada, é acolhida
com a segurança que decorre da premissa de que todo o conhecimento é situado
(Haraway, 1988) e que do reconhecimento dessa posicionalidade resulta uma das
mais fortes propostas dos EMGF. Tal reconhecimento do caráter situado e, logo,
político, de toda a intervenção teórica, incluindo a feminista, conduz a uma
aproximação entre academia e tudo o que está para além dela, confrontando a
tradicional disciplina académica ' plasmada em unidades curriculares, áreas de
conhecimento, linhas de financiamento, etc. ' com a inevitabilidade da
indisciplina com que se tecem os dias.
E aqui começa a delinear-se o segundo elemento que caracteriza o potencial
indisciplinar dos EMGF: a emergência de outros sujeitos/objetos de
perplexidade, de novas ferramentas analíticas e de abordagens interpretativas
alternativas. Toda a marginalidade produz formas menos marginais de ser
marginal. Abandonado o mito do binarismo linear, hoje sabemos que cada país
central contém a sua periferia, que os movimentos sociais comportam lógicas
internas de assimetria de poder, que as áreas mais emancipatórias de
intervenção académica são crescentemente permeáveis às pressões internacionais
para publicação em revistas indexadas. Há portanto várias margens na margem, e
umas são mais margem que outras. À luz desta premissa, constatamos que os temas
considerados pertinentes no âmbito dos EMGF em Portugal refletem uma
padronização frequentemente concidente com as prioridades das agências de
financiamento nacional e internacional à investigação e às organizações não-
governamentaiss. Os casos da violência doméstica e do tráfico de pessoas para
fins de exploração sexual são dois bons exemplos do enfoque convergente entre
as agendas académica, estatal e associativa.
Mas o caráter interdisciplinar que alimenta os EMGF não se pode compadecer de
um afunilamento temático. Da multiplicação de apostas em áreas de interesse
diversas e arrojadas ' incluindo as linhas de pesquisa incómodas, impróprias,
insolentes ' depende em larga medida a sua vitalidade e pertinência em tempos
de tão rápidas transformações. Com efeito, a análise de temas que escapam aos
cânones da produção feminista tem contribuído para a imprescindível atualização
dos conhecimentos e procedimentos nos EMGF, contribuindo para colocar esta área
de estudos na linha da frente do projeto emancipatório que recusa o poder
vertical e se configura, intencionalmente, pouco dócil, articulando-se com uma
ciência-cidadã, pública e não positivista.
Em anos recentes, também em Portugal os EMGF têm vindo a confrontar-se com
temas até então invisíveis ou proscritos da academia. Para dar alguns exemplos:
trabalho sexual (Duarte, 2012; Oliveira, A., 2011, 2013); poliamor (Cardoso,
2010); estudos transgénero (Rocha, 2012; Saleiro, 2010); teoria queer (Cascais,
2004; Coelho e Pena, 2009; Oliveira, J.M.d. et al., 2009; Santos, A.C., 2006,
2013); intersexo (Santos, A.L., no prelo); estudos feministas da deficiência
(Santos, A.C. e Santos, no prelo); pornografia e pós-pornografia (Coelho, 2009;
Rolo, 2011).
Em suma, o surgimento de temas que forçam à saída para fora da zona de conforto
do mainstream que sempre ocorre mesmo dentro da margem é um dos desafios mais
capacitantes ' em termos teóricos e políticos ' para qualquer área de estudos.
No caso particular dos EMGF, a inclusão de temas insolentes apresenta a dupla
vantagem de combater omissões epistemológicas e configurar uma ética feminista
do cuidado, desta feita extensível às práticas silenciadas e secretas dos
processos ortodoxos de investigação (Ryan-Flood e Gill, 2010).
Não deixa de ser ilustrativo o facto de que o cimento que une os dois elementos
identificados ' posicionalidades porosas e temas emergentes ' é justamente a
indisciplina. O potencial indisciplinador do campo interdisciplinar dos EMGF
dota-o de particular atualidade e relevância no presente contexto político e
científico, que valoriza o chamado "empreendedorismo" e a ciência
aplicada, e é particularmente adverso à reflexão não-alinhada com essas
prioridades. A indisciplina resulta da constatação de que, face a realidades
fragmentadas, múltiplas, caleidoscópicas, não se torna possível, nem desejável,
conter a produção de conhecimento em disciplinas dominantes (Browne e Nash,
2010; Halberstam, 2011, 2012). A disciplina é, além do mais, um mito inútil.
Como refere Halberstam, "se o problema é demasiada aceitação a resposta
deve ser uma sonora e feroz rejeição [ ], uma política de queda-livre,
pensamento selvagem e reinvenção imaginativa " (2012: xv). Não estamos
ante um objeto acabado ou pretensamente estável; a pretensão, se existir, é a
de reclamar a possibilidade do questionamento enquanto exercício político, o
privilégio de reconhecer o caráter interseccional de todas as demandas, o
arrojo de inovar mediante a reinvenção, descontrução e renovação a partir de
todos os lugares im/possíveis, até a partir de dentro.
O Dossier Temático
Como acabámos de salientar, um dos contributos mais importantes dos debates
feministas sobre epistemologia e metodologia é a reconcetualização da produção
de conhecimento científico como uma prática sempre situada (Haraway, 1988) e
relacional. Nessa ótica, a posicionalidade das/os investigadoras/es, as
dinâmicas afetivas e de poder das suas relações com as/os participantes, e os
investimentos pessoais de investigadoras/es e participantes na investigação
deixam de ser vistos como enviesamentos que "contaminam" a ciência,
e passam a ser encarados como elementos vitais e generativos do processo de
produção de conhecimento. O artigo de Mia Liinason e Marta Cuesta incluído
neste dossiê, e intitulado Subjective emotions, political implications:
Thinking through tensions and contradictions in feminist knowledge production,
oferece um inspirador exemplo do extraordinário potencial epistémico e político
desta forma de concetualizar o processo de investigação e as relações
interpessoais que nele se estabelecem. As duas autoras dissecam de forma
invulgarmente honesta e matizada as emoções que sentiram em diferentes momentos
e encontros num estudo etnográfico sobre ativismo feminista na Suécia. Este
tipo de narrativa reflexiva é considerado um elemento sine qua non da
investigação feminista (Ramazano?glu e Holland, 2002), mas várias/es autoras/es
têm argumentado que acaba por funcionar, em muitos textos feministas, apenas
como um exercício rotineiro, mecânico e vazio de "confissão ", com
pouca utilidade epistémica e política (Lather, 2007; Liinason, 2007). Liinason
e Cuesta não caem nessa armadilha, utilizando as suas experiências pessoais
como ponto de partida para produzir conhecimento riquíssimo sobre a
interseccionalidade das relações de poder no feminismo, e a complexidade da
negociação da identidade feminista.
Outra intervenção importante das críticas feministas à ciência dita mainstream
tem sido o questionar daquilo que conta como "conhecimento".
Muitas/os autoras/es feministas demonstram que a definição do que é
"verdadeiro" ou "falso", "objetivo" e
"subjetivo", mais ou menos "credível", não é neutra;
pelo contrário, ela reflete e reproduz desigualdades estruturais, incluindo
desigualdades de género. No seu artigo O poder do direito e o poder do
feminismo: Revisão crítica da proposta teórica de Carol Smart, Paula Casaleiro
problematiza essa questão no âmbito do direito. A autora argumenta que nas
sociedades ocidentais contemporâneas é reconhecida ao direito a capacidade de
estabelecer a "verdade" dos eventos, e que isso tem dado ao direito
o poder de definir e desqualificar o conhecimento das mulheres, muitas vezes de
forma opressiva. Recorrendo ao trabalho da socióloga Carol Smart e a exemplos
de lutas travadas no campo jurídico e judicial pelo feminismo em Portugal,
Casaleiro desmonta o modo como o direito desqualifica a experiência das
mulheres e o conhecimento feminista. No entanto, procura afastar-se de uma
leitura demasiado celebratória do feminismo e salienta a necessidade de fazer
"uma análise crítica dos pressupostos epistemológicos das teorias
feministas".
Essa componente de forte auto-reflexividade e auto-crítica guia também os
textos de Gracia Trujillo e João Manuel de Oliveira. Gracia Trujillo, no seu
artigo De la necesidad y urgencia de seguir queerizando y trans-formando el
feminismo. Unas notas para el debate desde el contexto español, procede a um
levantamento histórico acerca da intervenção feminista queer em meio académico
e ativista, identificando obstáculos à sua efetiva inclusão nos EMGF no Estado
Espanhol. Trujillo argumenta que a resistência em acolher propostas queer
decorre da abordagem dominante no designado feminismo de Estado, cujo enfoque
nas políticas de igualdade comporta dificuldades em esgrimir teórica e
politicamente as demandas em torno do reconhecimento das diferenças. Nesse
cenário, o feminismo "oficial" torna-se cúmplice da reprodução de
um sistema binário de género pouco favorável a temas menos dominantes.
João Manuel de Oliveira, em A necropolítica e as sombras na teoria feminista,
aprofunda a componente crítica já apontada por Trujillo, levando o seu
argumento para o campo da contradição ética de uma teoria e prática
(alegadamente) feministas que falham em reconhecer o caráter interseccional de
todas as lutas por dignidade humana. Oliveira postula que, na ausência de
processos de hifenização com temas como o antirracismo e a luta contra o
neoliberalismo, o feminismo dominante incorre em riscos sérios de aprofundar,
legitimando, o projeto colonialista e neoliberal.
O que oferecemos aqui, portanto, é um conjunto diversificado de artigos que nos
convidam a refletir sobre dilemas metodológicos, desafios epistemológicos e
debates teóricos, em Portugal como noutros contextos geográficos. Esperamos que
a sua publicação possa servir como contributo para (re)animar e expandir a
conversa sobre epistemologia e metodologia feminista em Portugal.