Género e Saúde: Novas (In)Visibilidades
RECENSÕES
Nogueira, Conceição, Magalhães, Sara (org.) (2012). Género e Saúde. Novas
(In)Visibilidades, Porto, APEM ' Associação Portuguesa de Estudos sobre as
Mulheres e Edições Afrontamento, 135 páginas.
A presente obra, organizada por Conceição Nogueira e Sara Magalhães, aparece na
sequência do Seminário Internacional da Associação de Estudos sobre as
Mulheres, Género e Saúde. Novas (In)Visibilidades, realizado em Maio de 2012,
na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto
(FPCEUP), no qual foi dado a conhecer um conjunto de trabalhos da auto-ria de
profissionais, nacionais e espanhóis, provenientes de diferentes áreas
científicas.
Enquanto documento revelador do conteúdo das comunicações então efetuadas, na
diversidade de conteúdos que o caracterizam, este livro vem refletir a riqueza
e ecletismo dos pontos de vista então apresentados e debatidos.
Aliás, não se afigura concebível abordar de outra forma o assunto, quando se
equacionam dois fenómenos que, embora ancestrais, só nas décadas mais recentes
têm sido pensados (entendidos?) como processos que, de forma inexorável, mantêm
uma relação íntima: o género e a saúde.
Esta última, alicerçada nos saberes biomédicos construídos ao longo de séculos
e baseada no determinismo biológico, sempre tem entendido o ser homemeo ser
mulhercomo realidades imutáveis, assentes no dimorfismo sexual, com
particularidades que conferem aos indivíduos diferenças naturais e, por isso,
inalteráveis.
Porém, assuntos como a saúde e a doença têm sido, regra geral, olhados de forma
indistinta para ambos os sexos. Em boa verdade, estas matérias têm sido
pensadas com a acentuação colocada no sexo masculino e, a partir deste,
mediante um processo de generalização abusiva, se abarca o universo feminino.
Em saúde, o sofisma de Protágoras «o homem é a medida de todas as coisas» tem
adquirido sentido integral, mesmo que possa acrescentar-se que «a mulher também
é a medida de algumas coisas», em matérias de saúde que dizem respeito,
estritamente, à esfera reprodutiva.
Por outro lado, na abordagem que vem sendo feita à dinâmica dos estados de
saúde e doença, os estudos sob o olhar do género ' entendido este como uma alta
autoridade para o pensamento e as condutas humanas, verdadeira entidade
reguladora e mediadora da vida de homens e mulheres ' confrontam-se com um
desafio de resposta difícil: o de, em matéria de saúde, procurar atribuir o
relevo que é devido à fisicalidade de homens e mulheres, a partir da qual a
ideologia do génerotem vindo a ser (re)construída ao longo dos milénios e que,
em nome da verdade, não deve, nem pode, ser escamoteado.
Genes, hormonas, metabolismo ou fenótipo são realidades nuas e cruas que, a bem
da verdadeira igualdade e da equidade entre sexos, se tornam incontornáveis e
devem ser tomadas em consideração. Caminhar para a igualdade será também, e
antes de mais, conhecer as verdadeiras dissemelhanças orgânicas entre mulheres
e homens, entender como condicionam a saúde e a doença em ambos os sexos (só
dois?), de modo a eliminar ou minorar o impacto que possam ter no usufruto
igualitário dos saberes produzidos, das tomadas de decisão individual e no dos
recursos em saúde que vão sendo criados.
De facto, mesmo nas correntes de investigação em ciências médicas que
desagregam, por sexo, o conhecimento sobre saúde nos homens e nas mulheres,
subsiste uma representação acerca do determinismo biológico, tanto como gerador
único de vulnerabilidades à doença, como de algumas idiossincrasias que, em
ambos os sexos, condicionam os padrões comportamentais de risco para o
equilíbrio saúde/doença.
Afigura-se, por isso, necessário estabelecer mecanismos que permitam
ultrapassar tais constrangimentos, assumindo, conforme Anne Fausto-Sterling
acentua, que «ler a Natureza é sempre um ato sociocultural». Fazê-lo '
admitindo também que as desigualdades de género só podem ser entendidas no
contexto mais lato da interseccionalidade ' é uma forma de prevenir a
«naturalização» daquilo que, na realidade, é socialmente produzido.
Com esse desígnio, urge fazer confluir, de forma mais consistente, os saberes
sobre Género e sobre Saúde. O desafio consiste em procurar desmontar, de modo
articulado, os vieses de género que, ao longo dos séculos, têm sido mantidos
quando se procede à leitura da naturezanum corpo de mulher ou num corpo de
homem.
É desta matéria que trata a presente obra, conforme apontam as Organizadoras na
introdução do livro, ao afirmarem que «como o género é uma ideologia dentro da
qual as diferentes narrativas são criadas, as distinções de género podem
ocorrer de forma dissimulada, requerendo por isso um olhar crítico e reflexivo
sobre os indivíduos e as suas vivências».
Num primeiro grupo de textos em que se abordam questões genéricas, Maria del
Pilar Sánchez López enumera diferentes motivos para que se estude a saúde na
perspetiva do género e traça uma panorâmica dos pontos principais em que
assenta o trabalho de investigação que a sua equipa tem desenvolvido na
matéria, concluindo que «convém ter sempre presente que, na hora de explicar a
saúde e, também na hora de explicar o paradoxo morbilidade/mortalidade o género
( ) é, pelo menos, tão importante como sexo (ser homem ou ser mulher)». No
mesmo domínio, Maria Teresa Ruiz-Cantero aborda os vieses de género que se
produzem por parte dos profissionais e dos serviços de saúde, ao assumirem, de
forma errónea, tanto a igualdade entre mulheres e homens nas doenças e na forma
de as tratar, como a diferença entre sexos onde ela não é assinalável.
Num segundo grupo temático de contributos, são apresentados três artigos acerca
das questões de género e saúde no universo masculino. António Manuel Marques,
no seguimento dos seus trabalhos sobre paternidade na adolescência, realça que
«o olhar sobre os homens no domínio da parentalidade acentuou sempre o seu
papel na fecundação, na proteção da mulher e da criança e da subsistência da
família ( ) descurando-se a análise e a valorização da paternidade enquanto
fenómeno psicológico, relacional, psicossocial e sociocultural, sobretudo a
partir das vozes dos homens». No seu texto, Luís Santos e Conceição Nogueira
acentuam que «em cada momento histórico coexistem diferentes masculinidades,
umas dominantes, outras marginalizadas, outras estigmatizadas, cada uma com os
seus respetivos laços estruturais, psicossociais e culturais que, por sua vez,
provocam importantes variações na saúde dos homens». A propósito dos homens
mais idosos e do desempenho das tarefas do cuidar ' nomeadamente o cuidar de
uma companheira ', Óscar Ribeiro salienta a «existência de vários desafios
psicossociais, principalmente decorrentes da execução de tarefas não
tipificadas como um agir masculino».
Outras temáticas específicas são tratadas na obra. Assim: Sofia A. Santos e
Laura Fonseca abordam os diferentes entendimentos a propósito daquilo que é
«olhar a saúde e a educação sexual»; Alexandra Oliveira escalpeliza a
vitimização acrescida que representa para a saúde das mulheres migrantes a
atividade de prostituição; Rita Burnay e Ana A. Fernandes analisam, de forma
detalhada múltiplos dados do mais recente Inquérito Nacional de Saúde,
permitindo uma reflexão mais documentada a propósito da ideia de que os homens
morrem mais cedo e as mulheres têm carga maior de doença.
Em nosso entender, se outros motivos não houvesse, o que torna esta obra de
leitura incontornável é, sobretudo, o deixar mais claro que, no que respeita ao
impacto negativo do género na saúde, não são apenas as mulheres, de modo
exclusivo, a pagar a fatura.