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EuPTHUHu1645-00862009000100004

EuPTHUHu1645-00862009000100004

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN1645-0086
ano2009
Issue0001
Article number00004

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O luto no transplantado cardíaco

O Transplante Cardíaco evoluiu nos últimos 30 anos, tornando-se uma verdadeira opção terapêutica, nos casos de insuficiência cardíaca severa devido às afecções das artérias coronárias ou do músculo cardíaco (miocardiopatias); i.e., está indicado para pacientes cujos sintomas não respondem a terapêuticas medicamentosas ou cirúrgicas de outra natureza. Considerada radical e como única alternativa à morte a curto prazo, constitui para o paciente cardíaco uma série de desafios e de tarefas adaptativas, com impacto físico e psicossocial considerável (Vieira da Costa & Lume, 1996).

A Transplantação Cardíaca trata-se de um processo e não de um acontecimento (Bunzel, Wolleneck, & Grundbock, 1992); constituindo uma nova doença e não uma cura da doença cardíaca actual. Após o T.C., o paciente passa a ser confrontado com intermináveis procedimentos médicos relacionados com o Transplante (acompanhamento médico contínuo e rigoroso exames, biopsias, internamentos manutenção da medicação imunossupressora e seus efeitos secundários1, modificação do estilo de vida ' dieta e exercício físico adequados) que podem concorrer para a manutenção do papel da incapacidade, sentido pelo indivíduo.

Desta forma, do estado de moribundo na fase pré-transplante, passando pelo estádio terminal de insuficiência cardíaca, até às várias ameaças da fase pós operatória, o indivíduo tem que levar a cabo ajustamentos a várias perdas nos domínios físico, psicológico, profissional e social (Olbrisch, Benedict, Ashe, & Levenson, 2002).

Em termos sociais, o Transplante Cardíaco é ainda encarado como um evento extraordinário que desperta fantasias quase sobrenaturais na imaginação colectiva. Alguns pacientes transplantados referem que são vistos pelos outros como únicos, quase como criaturas místicas, o que não facilita a recuperação de um bem-estar pleno.

A Transplantação Cardíaca representa assim, claramente, num plano real e simbólico, a morte e a vida. As ideias de morte provocadas pela doença cardíaca terminal, pelo coração doente e disfuncional começam a caminhar lado a lado com a perspectiva de uma nova oportunidade que adquire características de ressurreição. Por outro lado, a constante ameaça da rejeição, a incerteza do prognóstico a longo prazo, a aceitação psicológica ambivalente do coração de outro indivíduo, são potenciais fontes de perturbação emocional, fazendo do pós-transplante um período de grande exigência psicológica (Tavares, 2004).

REPRESENTAÇÃO COGNITIVA E FANTASMÁTICA DO CORAÇÃO A natureza simbólica do coração complica, na maioria das vezes, a sua substituição. Este órgão, com as suas associações à vitalidade, às emoções, à alma, à vida afectiva; contentor da vida emocional e da personalidade (Inspector et al., 2004) foi imbuído ao longo da História de qualidades espirituais e mitológicas. Esta extrema carga simbólica dificulta o seu reinvestimento emocional pelo paciente e gera, potencialmente, dificuldades na sua incorporação (Shapiro, 1990), fazendo do Transplante Cardíaco o mais exigente em termos emocionais, cognitivos e existenciais.

A representação cognitiva e fantasmática dos órgãos internos adquire na transplantação uma dinâmica de aceitação-rejeição biopsicológica (Tavares, 2004); a ameaça percebida à integridade do selfinterfere com a integração fisiológica do novo coração, existindo alguns dados clínicos que apontam que uma reacção intrapsíquica negativa e rejeitante vai interferir no sucesso médico do Transplante. Daí, ser uma variável a ter em conta, nos estudos psicossociais no Transplante Cardíaco, ilustrada na citação seguinte: Comecei a sentir falta do meu coração. Estava preocupado com o que tinha acontecido ao meu velho coração. Tinha sido muito importante para mim, durante 40 anos; nasci, cresci, fiz tudo com ele e, de repente, zás: deitavam-no fora. (Kaba, Thompson, Burnard, Edwards, & Theodosopoulou, 2005, p.619).

DESAFIOS DO LUTO NA PESSOA TRANSPLANTADA CARDÍACA: PERDA VERSUSINCORPORAÇÃO Ter o coração de outra pessoa é uma experiência emocionalmente desafiante; uma vez que envolve lidar com sentimentos ambivalentes face ao luto, em várias vertentes. O paciente terá de fazer o luto da parte de si que se tornou doente e que foi substituída por uma outra igual e estranha ao mesmo tempo ' o novo órgão (Pericchi, 1992, in Tavares, 2004). Torna-se ainda necessário lidar com a situação de alguém que morre para lhe dar a vida o dador (Alguém tem que morrer para eu viver).

Investigações recentes sugerem que a necessidade de lidar com a perda física do coração e a aceitação do coração do dador está na origem de stress psicológico (Kaba, Thompson, & Burnard, 2000).

Segundo Moos (1984), o processo psicológico de uma perda implica uma progressão: de uma reacção inicial de dormência ou descrença, o paciente vai experienciando uma crescente consciencialização de dor, tristeza, raiva e preocupação para com o objecto perdido até à reorganização em que a perda é aceite e o equilíbrio emocional é restaurado. Quando se está perante uma situação de perda de uma parte do corpo vivencias e uma restrição da imagem corporal2à qual se associam sentimentos de depressão e luto. Na transplantação cardíaca a essa perda associa-se ainda e, paradoxalmente, a adição de uma parte do corpo. Neste caso, a imagem corporal expande-se e um novo lugar psicológico tem que ser encontrado para essa nova entidade que o corpo antigo agora contém (Tavares, 2004).

Um paciente transplantado quatro anos refere: Tenho sempre isto na cabeça que não vivo com o meu coração e nunca mais será a mesma coisa (Stolf & Sadala, 2006, p. 320).

Assim, no período pós transplante, um dos maiores desafios do paciente, para além da adesão à nova terapêutica imunossupressora, a todos os procedimentos médicos e a um novo estilo de vida, o paciente terá que aceitar o novo coração como seu. Este processo é geralmente mais facilitado se o paciente pensar o coração como uma mera bomba, destronando toda a carga simbólica que lhe é usualmente atribuída e adquirindo apenas atributos de músculo bomba eficaz (Gomes & Nunes, 1992). Estudos prévios (Mai, 1986) revelam que este processo de Negação em relação ao órgão do dador, ao dador (é usual este ser despersonalizado) ou a ambos, não é necessariamente disfuncional, pelo contrário tem um papel adaptativo e protector no ajustamento psicológico ao T.C. quando não existe nenhuma alternativa de uma gestão de crise mais eficaz (Bunzel et al., 1992). Os seguintes excertos de discursos de pacientes transplantados cardíacos ilustram estas formas adaptativas: Um transplante cardíaco não é um transplante de cérebro não acho que me modificar. É como uma bomba de água num carro; se se avaria, substituímo-la e o carro não deixa de ser o mesmo é o que o nosso coração faz, bombeia sangue. (Kaba et al., 2005, p. 621) Não vejo razão para falar da pessoa que me deu o coração não sei quem é nem me interessa saber; claro que me sinto agradecida e tenho pena dos familiares mas nunca falo sobre isso. Não faço perguntas sobre isso.) (Kaba et al., 2005, p.

621) De facto, o mecanismo de Negação revela-se o primeiro patamar de um processo de luto e confrontar o paciente com a realidade, demasiado cedo, pode não ter qualquer impacto terapêutico, sendo inclusivamente, prejudicial ao sucesso da elaboração do luto (Robinson, 1993). O transplantado cardíaco precisa de tempo para realizar o processo de luto, elaborar a perda, lidar com o exigente protocolo pós-operatório e reorganizar o self. É necessário disponibilizar espaço imagético para reintegrar o novo esquema corporal; este movimento é lento e gradual e muitas vezes nunca finalizado.

A ELABORAÇÃO RACIONAL VERSUS MÁGICOSIMBÓLICA NO TRANSPLANTE CARDÍACO: REPRESENTAÇÃO COGNITIVA E FANTASMÁTICA DO DADOR E DO SEU CORAÇÃO O facto de se tratar de um transplante de dador cadáver, mantendo-se o anonimato origina, frequentemente, processos de idealização, identificação, culpabilização e gratidão a ter em conta, que emergem sobretudo no período pós- operatório. Assim, a pessoa transplantada obriga-se, por necessidade absoluta, à construção de uma imagem daquele que foi o seu dador; fantasia sobre as características físicas e psicológicas de quem lhe deu vida (a sua idade, sexo, raça, gostos musicais, crenças religiosas, talento artístico, profissão, hobbies). Neste processo de elaboração psíquica é frequente surgiram fenómenos de idealização do dador, não a nível físico, mas sobretudo a nível moral (honestidade, generosidade, sabedoria) de acordo com Inspector e col. (2004).

Torna-se imperativo valorizar a doação e o dador e mensurar a dádiva (Tavares, 2004). Quando estas imagens e pensamentos sobre o dador e o órgão são positivos, tendem a diminuir os transtornos psicológicos que se seguem ao transplante e o processo de Luto tende a ser apaziguador (Gregorio, Rodriguez, & Rodriguez, 2005). , inclusivamente, estudos que vão mais longe, referindo que o órgão implantado apresenta menores índices de rejeição fisiológica (Duitsman & Cychosz, 1993), assistindo-se, portanto, a uma diminuição da morbilidade e mortalidade destes pacientes (Rosa et al., 2001).

Por outro lado, pacientes que tentam desvalorizar o processo de doação, ignorando a origem do novo coração, através de um processo cognitivo.

Embora, em Portugal, seja mantido o anonimato em relação ao dador e à sua família, sendo de carácter obrigatório, um estudo americano revelou que o facto de os pacientes comunicarem com a família do dador, via carta e de forma anónima, através do coordenador do Centro de Transplantação, os ajudava a atribuir um significado a todo o processo de perda e de integração do novo coração, favorecendo o copingexigido no processo de luto (Kaba, 2001). Trata-se de um ritual que permite estabelecer um contacto mínimo do paciente com a sua nova fonte de vida (neste caso, os familiares próximos), emitir gratidão e reconhecimento, permitindo-lhe um reinvestimento afectivo no seu novo coração, uma reorganização do significado psicológico e de sentido da vida. De facto, também na situação de Transplante Cardíaco se assiste à necessidade de levar a cabo certos rituais fundamentais ao processo de luto, tal como acontece na perda pela morte de alguém próximo. Acordo, muitas vezes, a meio da noite e o meu pensamento vai para a pessoa que morreu e me doou o seu coração e é muito estranho não poder agradecer a ninguém pela vida que me deu. Tenho que admitir que ainda sofro por essa pessoa; penso muito nela. (Kaba et al., 2005, p.

618). Os mesmos autores referem, no entanto, que a identificação do transplantado com o dador pode, em parte, ser minimizada se for mantido o completo anonimato (inclusive face ao sexo e à idade). Em suma, a gestão da informação sobre o dador do órgão, a ser fornecida ao paciente continua a ser um problema na medicina de transplantação (Kaba, 2001).

Os sentimentos de culpa pela morte do dador emergem uma vez que alguém tem que morrer para que o T.C. possa ser realizado. Tal como no luto pela perda de alguém querido, a culpabilidade também se encontra presente.

Segundo alguns autores, a sensação que alguns pacientes experimentam por terem roubado uma parte vital do dador pode activar para além de sentimentos de culpa, sentimentos de regressão, medo e fantasias de castigo ou retaliação (Castelnuovo-Tedesco, 1978). Mais uma vez, aparece-nos o pensamento mágico que faz com que o paciente se sinta responsável pela morte do dador; como se o desejo pré-transplante de encontrar um dador compatível se concretizasse e a culpa da morte do dador fosse da pessoa transplantada. Estes pacientes que exibem sentimentos de culpabilização apresentam sintomas mais elevados de ansiedade, paranóia, stress pós traumático, hostilidade e psicose (Inspector et al., 2004). Exibem, desta forma um equilíbrio emocional muito precário que indicia um processo de luto de prognóstico mais reservado.

Kuhn, Davis, e Lippman (1988), referem num estudo sobre aspectos psicopatológicos dos pacientes transplantados cardíacos, que um terço dos mesmos expressa fantasias de alteração de personalidade relacionadas com o dador. Existem fantasias sobre a influência das características físicas (idade e sexo) e psicológicas do dador sobre possíveis transformações no receptor; como por exemplo, o sentimento de rejuvenescimento quando se recebe um órgão de um dador jovem, a convicção de que se vai adquirir características do outro sexo quando se recebe um coração do sexo oposto: Tenho 51 anos e recebi o coração de um jovem de 18 claro que fiquei novo (Stolf et al., 2006, p. 317).

É curioso realçar que em processos de luto comum pela morte de alguém, a incorporação de características da pessoa falecida é também comum no sobrevivente.

Segundo Inspector e col. (2004), existe um dualismo, ao nível do processamento mental, que norteia a experiência de receber o coração de outra pessoa: uma perspectiva mágico simbólica em paralelo com uma perspectiva factual e fundamentada. pacientes que consideram a possibilidade da transferência de características da personalidade do dador, via coração (expressando desejos e/ ou medos mágicos nesse processo) para o paciente receptor. Estes aspectos fantasiosos e metafóricos encontram-se presentes lado a lado com o reconhecimento racional do coração enquanto bomba. Mais ainda, a existência destas fantasias não se encontra relacionada com o nível educacional, a etnia ou a evidência de psicopatologia no paciente receptor. A concomitância entre o pensamento lógico e o pensamento mágico é uma característica humana comum e enriquecedora da vida psíquica (Jung, 1956).

No entanto, e apesar de toda a conturbação psicológica e interna, neste período de pós-transplante cardíaco, surge no paciente uma sensação de alívio; festeja- se o estar vivo, o privilégio de ter aparecido um dador.

Numa perspectiva fenomenológica, podemos dizer que é tempo de renascer e recuperar a autonomia física, apesar do fantasma da dependência de um tratamento eterno e da incerteza quanto a riscos futuros estar sempre presente.

Porém, futuro. Um futuro em que o transplantado cardíaco tem a oportunidade não de corrigir (no sentido de alterar) o seu estilo de vida mas de reconstruir o seu sentido de vida, a sua história, a sua nova existência. E isto é no fundo, o que se espera num processo de Luto bem resolvido. Conseguir nascer de novo.


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