Interrupção da gravidez por malformação congénitica: a perspectiva da mulher
O Diagnóstico Pré-Natal (DPN) constitui uma espada de dois gumes ao tornar
possível o diagnóstico de saúde do feto, in-utero, colocando os progenitores
perante decisões que serão para alguns as mais difíceis da sua vida. No
entanto, se por um lado o DPN pode identificar a presença de uma anomalia no
feto, por outro, um resultado negativo nem sempre significa que uma criança
nasça sem problemas (Sthatam,1992). Contudo, para a maioria das grávidas que
se submete ao DPN, um resultado negativo, representa alívio, segurança e
tranquilidade.
A interrupção de uma gravidez, ainda que efectuada por razões terapêuticas
(situações de incompatibilidade com a vida), acompanha-se de profundo trauma
psicológico associando-se frequentemente a sentimentos de culpa, representando
uma perda com significado especial, quando comparado a outras perdas
(Canavarro, 2001; Kenyon, 1988; Kersting et al., 2004; Korenromp et al., 2005).
As perdas resultantes de um diagnóstico de malformação, apresentam-se como
profundamente estigmatizantes para os pais. De facto, um filho afectado por uma
doença genética grave representa uma perda de oportunidades para o
desenvolvimento pessoal dos pais (Zagalo-Cardoso, 2001). Para este autor, o
dramatismo e a intensa dor experimentados pela perda de um filho emergem como
um dos fenómenos de stress emocional mais intensos que pode ser experimentado
por uma pessoa durante a sua vida, com implicações no papel social, na vida
conjugal e nas relações sociais mais próximas.
As principais reacções emocionais referenciadas nos diversos estudos
realizados incluem tristeza (Mourik, Connor, & Ferguson-Smith, 1992),
depressão (White-Van 1992), raiva, culpabilização (Mourik, 1992; Geerinck-
Vercammen & Kanhai, 2004; Kenyon et al., 1988), vergonha e sensação de
falhanço (Geerinck-Vercammen & Kanhai, 2004; Kenyon et al., 1988;
Rousseau. 2001). Os sentimentos de culpa, na mulher, manifestavam-se em
relação ao bebé, por ter interrompido a gravidez, em relação aos outros filhos
e, também, em relação ao parceiro (Mourik, 1992).
A maioria dos estudos são concordantes quanto à duração dos sintomas
apresentados pelos progenitores, em situações de interrupção de gravidez por
malformação fetal. A duração das respostas emocionais à perda podem variar
entre quatro semanas e dois anos (Mourick, 1992; Thomassen-Brepols, 1987). Um
estudo realizado por Korenromp e colaboradores (2005), com uma amostra de 254
mulheres realizado entre dois e sete anos após interrupção antes das 24
semanas por anomalia, verificou que um número significativo de mulheres
apresentava sintomatologia pós traumática. Outros estudos concluíram que homens
e mulheres apresentam formas distintas de expressão do luto (Canavarro, 2001;
Thomas, 1995; Rousseau, 2001); i.e. as mulheres apresentavam maior dificuldade
em aceitar a perda do que os seus companheiros (Carmona & Pinho, 1996;
Geerinck & Kanhai, 2004)
Comparada com outros tipos de perda perinatal (morte fetal ou aborto
espontâneo), a decisão de interrupção por malformação desencadeia uma resposta
psicológica mais intensa, particularmente acrescida por sentimentos de
culpabilidade pela decisão tomada (Kenyon et al., 1988). Existem alguns
factores que parecem condicionar o tipo de resposta despoletada por este
acontecimento: o tipo de anomalia (Mourik, 1992) e a idade gestacional (Carmona
& Pinho, 1996; Korenromp et al., 2005). A existência de filhos saudáveis
parece contribuir para a redução de stress traumático (Carmona & Pinho
1996). As mulheres com história psiquiátrica passada, mulheres mais jovens, com
apoio social pobre, com antecedentes de perda precoce, multíparas e as que
pertencem a grupos antiaborto apresentam um risco acrescido de desenvolverem
sequelas mais graves (Rousseau, 2001).
Cada gravidez é uma experiência única e irrepetível na vida do casal
(Brazelton & Cramer, 1993; Canavarro, 2001; Colman & Colman, 1994;
Klauss & Kennel, 1992) e a confiança desmedida na medicina leva alguns
progenitores a acreditarem que a morte é impossível para o seu bebé (Cabral,
2005; Canavarro & Rolim, 2001; Mourick, 1992) iniciando um processo de
apego cada vez mais precoce. O significado atribuído à perda depende de vários
factores relacionados com as características individuais da personalidade, das
crenças e valores, das atitudes e expectativas face à gravidez, experiências de
vida e das redes de apoio familiar e social e da etapa do ciclo de vida em que
ocorre (Cardoso, 2001; Rolim & Canavarro, 2001).
Nas situações de interrupção terapêutica da gravidez, os valores morais e as
crenças religiosas podem colidir com a decisão tomada (Canavarro, 2001; Frets
et al., 1990; Mourick, 1992) e a percepção da perda pode ganhar uma dimensão
diferente nos casais com dificuldades em engravidar ou naqueles em que a idade
constitui, só por si, um importante factor de risco (Frets et al., 1990;
Lippman-Hand & Fraser, 1979).
As manifestações de luto experimentadas pelo casal podem repercutir-se nas
relações familiares e sociais, particularmente nas situações de luto não
resolvido. A necessidade de apagar ou diminuir a dor intensa provocada pela
perda de um bebé (Lasso & Kernel, 1992; Leoa, 1987) pode contribuir para um
investimento imediato numa nova gravidez. A concepção de um novo bebé pode
assim assumir, para o casal, um carácter substitutivo, em que a criança que vai
nascer irá preencher o vazio experimentado pela mãe (Sá, 1997). Uma gravidez
que surge imediatamente após uma perda pode impedir o casal, particularmente a
mulher, de viver o seu processo de luto (Amestrou, 2002; Amestrou & Nutri,
2004; Cavalgue, 2001; Tranche & Migai, 1999; Unteis et al.,1994)
constituindo um preditos de maior risco de vinculação desorganizada podendo
estar associada a perturbações somáticas como baixo peso do bebé à nascença,
prematuridade, atraso de crescimento intra-uterino e síndrome de stress
respiratório no recém-nascido (Rousseau, 2001).
Em Portugal, não existem estudos qualitativos que tenham abordado a
interrupção voluntária da gravidez, por malformação fetal, do ponto de vista
das experiências da própria mulher. Assim, este estudo pretendeu conhecer a
experiência da mãe tendo em conta o impacto da notícia e a tomada de decisão em
relação à interrupção da gravidez por malformação congénita.
MÉTODO
A compreensão da diversidade e complexidade deste acontecimento só é possível
através da voz dos actores, as mulheres que viveram a experiência. Tal
objectivo implica o recurso a uma metodologia exclusivamente qualitativa, já
que só deste modo poderíamos efectuar uma análise adequada da pluralidade de
discursos narrativos (Matos & Gonçalves, 2000). Ao escolhermos esta
metodologia pretendemos fazer descobertas acerca dos modo como as mães
experienciaram todo o fenómeno da interrupção da gravidez desde as suas
emoções e sentimentos aos comportamentos.
A Grounded Analysis foi considerado o método mais adequado para atingirmos os
nossos objectivos, uma vez que o que pretendíamos era gerar teoria, a partir da
experiência dos casais que decidiram interromper a gravidez por malformação,
procurando desenvolver novos conceitos que nos permitissem explicar os
comportamentos dos intervenientes.
Participantes
A amostra foi constituída por 18 mulheres, com idades entre 19 e os 43 anos. A
maior parte das nossas entrevistadas têm menos do 9º ano de escolaridade,
estavam grávidas pela primeira vez (9), em 2 casos já havia antecedentes de
abortamentos, um dos quais uma interrupção por malformação. Três das mulheres
não planearam a gravidez. A idade gestacional, no momento da interrupção,
situava-se entre as 14 e as 24 semanas, sendo de notar, que em 10 casos estava
acima das 20 semanas. O diagnóstico que motivou a maioria das interrupções da
gravidez foi o Síndrome de Down.
Material
A entrevista semi-estruturada, incluiu cinco questões que tiveram como
objectivo conhecer as reacções da mãe à notícia de malformação, o processo de
tomada de decisão, o apoio recebido desde o momento da interrupção (incluía
família, amigos e profissionais), a vivência do internamento hospitalar, as
consequências da interrupção na relação do casal e as perspectivas futuras de
nova gravidez. Dada a dimensão do estudo, este artigo apenas descreve os
resultados relativos às questões relacionadas com as reacções à noticia e a
tomada de decisão. Antes do inicio da recolha de dados foram realizadas duas
entrevistas para proceder aos ajustamentos necessários às questões.
Procedimentos
O estudo decorreu no Serviço de Obstetrícia do Hospital S. Marcos em Braga, e
incluiu todas as mulheres que no período de 2002 a 2004 realizaram interrupção
de gravidez por malformação congénita do feto, no respectivo serviço e
aceitaram participar no estudo. As entrevistas decorreram no domicílio entre a
primeira semana e um mês após a interrupção.
Análise dos Dados
Os dados foram analisados segundo a Grounded Theory (Charmaz, 1995). Partindo
das experiências individuais foram desenvolvidas categorias conceptuais mais
abstractas que sintetizavam os dados identificando padrões de relação entre
eles. A análise foi-se desenvolvendo numa evolução cronológica da entrevista,
procurando assegurar a fidelidade das narrativas, configurando-se num esquema
de categorias inter-relacionadas que nos permitem conhecer e compreender a
vivência da interrupção da gravidez por malformação fetal. À medida que os
dados foram sendo recolhidos procedeu-se à sua codificação. As entrevistas
foram prolongadas até ser atingida a saturação teórica. Para facilitar a
análise dos resultados, a cada entrevistado foi atribuída a sigla E.
RESULTADOS
Reacções à Notícia
A notícia da malformação acompanhou-se de emoções intensas e de um profundo
sofrimento Senti uma dor enorme não sei descrever parece que estávamos a
viver um pesadelo(E7). As reacções à notícia de um diagnóstico positivo foram
referidas por todas as mulheres do estudo. A notícia foi recebida com surpresa
e choque. Para nós é um choque muito grande (E1) É um balde de água fria
muito grande(E3). A tristeza, a revolta e a raiva, acompanharam-se das
interrogações Porquê eu Porquê a mim?As manifestações de choro expressavam a
profunda tristeza provocada por este acontecimento Eu não parava de chorar,
chorei durante dois dias(E2), um profundo sentimento de injustiça por verem
desfeito o sonho que tanto desejavam e uma revolta contra as pessoas Há
pessoas que os têm e deitam-nos ao lixo, matam-nos e abandonam-nos .a esses não
acontece nada e porque é que foi acontecer isto comigo(E10) e contra Deus
( )muitas vezes pergunto se é justo Deus ter feito isto comigo(E14). É um
momento descrito como de grande descontrole, dor e sofrimento psicológico.
Acho que se me dessem uma facada eu não sangrava não há palavras para
descrever semelhante dor(E11).
A incredulidade face ao diagnóstico, mesmo nas situações com um risco aumentado
(o que aconteceu em duas situações), em que já havia sido diagnosticada uma
doença genética numa anterior gestação Cada vez que acontece é sempre uma
outra vez(E3). Naquela altura fiquei muito desiludida, muito triste apesar de
saber que corria risco, sempre esperei que tudo corresse bem(E18) acompanhou o
desejo de um erro no diagnóstico expresso pela necessidade da confirmação,
através de uma segunda opinião. Quando soube, nesse momento, eu pensei que
fosse um engano da ecografia. Eu pedi muito que fosse um engano até fazer a
segunda ecografia para confirmar, eu pensei sempre que ia receber a notícia
que tinha sido um engano da ecografia(E14).
Tomada de Decisão
Razões para a Decisão
A partir do momento em que se confirma o diagnóstico e se impõe uma decisão
definitiva acerca do futuro da gravidez, esta transforma-se numa das decisões
mais difíceis da vida das mulheres. Nas situações de diagnóstico tardio, muito
próximo das 24 semanas, o cumprimento dos prazos legais, obriga a uma decisão
rápida, deixando ao casal pouco tempo para reflectir a sua decisão, aumentando
a ansiedade e o medo de tomar a decisão errada.
No presente estudo sobressaem como principais factores de decisão, a gravidade
da malformação, o sofrimento dos filhos, a angústia, o sofrimento do casal e a
informação recebida.
A antecipação das consequências do nascimento, representou uma das razões
significativas na decisão. O bem-estar da criança e a sua qualidade de vida
futura constituíram as principais preocupações das mulheres. Segundo estas, o
futuro de uma criança com anomalia é de dor e sofrimento, onde não há lugar
para a felicidade, pelo que quanto mais cedo a gravidez for terminada, melhor
será para a criança, como fica expresso nas suas afirmações ( )depois comecei
a pensar extremamente no bebé e a minha principal preocupação era que o bebé
sofresse(E1), ( )Porque é que eu ia deixar essa criança vir ao mundo, para a
criança estar a sofrer?(E4).
Dez de mulheres, com filhos anteriores, tiveram em conta, na sua decisão, o
impacto do nascimento de uma criança com deficiência grave no bem-estar dos
irmãos mais velhos e do próprio casal. A existência de outros filhos pareceu
facilitar a decisão de interromper, uma vez que o nascimento de um bebé com
problemas iria afectar a relação com os outros filhos que, assim, veriam
diminuída a atenção recebida e o apoio dos pais. Se ela nascesse( )isso
implicaria um sofrimento muito grande para nós e para os nossos filhos. Ia ter
de os privar de muita coisa, nomeadamente de atenção e tempo(E2).
A falta de apoio social e os encargos familiares constituíram um importante
factor de decisão em dez das entrevistadas. São reconhecidos custos
relacionados com o impacto do nascimento nos recursos sócio-económicos da
família bem como nas possíveis dificuldades de coordenação das actividades
profissionais da mulher com os cuidados à criança. Existe a percepção de que a
sobrevivência e os cuidados destas crianças ficam quase totalmente na
dependência das famílias, aumentando consideravelmente os encargos económicos
e o desgaste psicológico, pela constante necessidade de apoio e disponibilidade
constituindo um grande sacrifício para toda a família Nós não temos condições
ainda para lhe dar uma vida que eles precisam todas as condições que eles
precisam. As instituições não estão preparadas(E2). A gente sabe que estas
crianças ficam totalmente dependentes dos pais que têm de suportar elevados
encargos. Os apoios sociais são insuficientes(E1).
A percepção da gravidade da malformação esteve relacionada com a informação
recebida ao longo do processo de diagnóstico pelo médico, no momento da
comunicação da notícia e com experiências prévias com crianças com
deficiências representando um factor decisivo para a tomada de decisão. A
informação fornecida pelo médico foi relatada como muito importante para a
compreensão do diagnóstico, da gravidade da anomalia e da percepção subjectiva
do risco. A quase totalidade das entrevistadas (17) mencionou as explicações
prestadas pela equipa médica e os seus esforços para garantir ao casal a melhor
compreensão da situação na tomada de decisão Conforme, eu ia ao hospital,
eles cada vez iam mostrando mais como o bebé estava. Eles empenharam-se muito
em mostrar como o bebé estava mesmo(E5). No seu discurso, as mulheres
referiram a frequência do aconselhamento da equipe médica, no processo de
tomada de decisão, deixando clara a influência dessa informação na decisão. Na
maioria dos casos, as mulheres procuraram validar a sua decisão no discurso dos
médicos Disseram que a melhor coisa eu é que decidia,( )mas a melhor coisa
era abortar porque infelizmente nunca ia ser uma criança normal(E4). O facto
de o médico considerar a decisão de interromper como a mais adequada é muito
valorizada pelos intervenientes no estudo, deixando sobressair o poder que
directa ou indirectamente o médico pode exercer na tomada de decisão. Para a
maioria das mães, que optaram pela interrupção, a aprovação da decisão tomada
pelo médico foi importante, não deixando, contudo, de assumir que foi uma
decisão de casal.
Muitas das entrevistadas (8) já possuíam conhecimentos e experiências
pessoais, mais ou menos traumáticas, relacionadas com situações de
malformação. Ter na família ou conhecer crianças com síndrome de Down foram
também importantes factores de decisão. Essas experiências significaram, em
alguns casos (3), sofrimento e dor partilhados ao longo de anos, com
consequências ao nível pessoal e familiar que no momento de decidir,
favoreceram a opção pela interrupção Eu tive um irmão com este tipo de
problema, um deficiente profundo e vivi todos os problemas que ele teve .por
isso conhecia bem a situação. Acho que esse facto me ajudou a tomar a decisão
(E18);
Dificuldades na Decisão
A decisão quanto ao prosseguimento ou interrupção da gravidez foi considerada,
por todas as mulheres, como das mais difíceis da sua vida Extremamente
difícil(E2); Acho que foi a decisão mais difícil que tive de fazer até hoje
(E14). As dificuldades identificadas neste estudo relacionaram-se com o
investimento que as mulheres possuíam na gravidez, a ligação ao feto e o
conflito de valores envolvido na decisão.
Quando a gravidez é programada e desejada, como aconteceu na maioria dos casos,
decidir voluntariamente interrompê-la, ainda que seja por um problema grave do
feto, revelou-se um dilema na vida do casal. A gravidez, em catorze das nossas
entrevistadas, encontrava-se enquadrada no projecto de vida do casal, tinha
sido planeada e muito desejada, havendo por isso um grande investimento
envolvido. Interromper a gravidez significou adiar sonhos e expectativas. ( )
e depois eraum filho muito desejado, muito mesmo. Foi tudo muito bem programado
e era um filho muito desejado(E11). Quatro eram gravidezes tardias em que o
investimento na gravidez era ainda maior, uma vez que as mulheres estavam
conscientes de que as suas hipóteses de sucesso diminuíam com o passar dos
anos. Pronto estava com muita vontade de ter um filho, mas resolvi muito
tarde.(E1) Apesar de não ser premeditado, há muito tempo que pensávamos
noutro filho a partir dos 40 é que pensamos(E17).
A existência de um investimento significativo na gravidez foi referido nos
discursos das mulheres ao nível das preocupações com a saúde do feto, da
preparação do espaço para receber o bebé e da compra do enxoval A gente já
sente o bebé, já começa a comprar as primeiras coisas, já vive uma gravidez.
(E9) e ao nível do envolvimento da família os meus pais e o meu avô ele
estava contentíssimo porque ia ter um bisneto(E10) revelando que o bebé era já
uma realidade para elas e para a família, deixando antever a existência de uma
relação precoce com o feto. Na maioria dos casos (10), as mulheres referiram
movimentos fetais o que contribui fortemente para aumentar o envolvimento
psicológico da mãe com o bebé. E depois era sentir o bebé a mexer. Eu já
sentia mexer. E sabia onde é que ela estava (E15). Três mulheres consideraram
que o modo como o bebé mexia, lhes deu a percepção de que algo estava diferente
na evolução da sua gravidez. Já tinha um bebé dentro de mim, já o sentia
mexer-se mas é estranho( )que eu achava que ele não mexia como na outra
gravidez(E14).
Nas gravidezes mais avançadas foi evidente um maior envolvimento com o bebé. De
referir que a maioria dos diagnósticos ocorreram após as 15 semanas de
gestação. Para estas mulheres, cada dia que passava, aumentava a sua ligação ao
feto tornando mais difícil decidir acerca do prosseguimento da gravidez. É
muito complicado nós estarmos à espera. Não digo cada dia que passa, digo cada
segundo que passa é uma dor, porque nós estamos a apegar-nos a uma criança que
não vai ser nossa, que não podemos ter, não é, e no fundo está a crescer a cada
segundo dentro de nós(E2). Muitas mulheres tinham já planeado o seu futuro
próximo com o bebé, já sabiam o sexo da criança e já lhe tinham atribuído um
nome. Para além do investimento do casal, a própria família e os amigos também
já estavam envolvidos na gravidez. É como estava a dizer, uma coisa é ter
uma gravidez com 19 semanas, outra é ter uma de 24(E9).
A decisão de interromper a gravidez foi sempre tomada em conjunto pelo casal.
Decidi logo, mas pedi para falar com o meu marido.(E11) Falei com o meu
marido, mais ninguém, falamos só os dois(E8). No entanto, nem sempre existe
consenso quanto à melhor decisão a tomar. Em dois casos, a opinião do casal era
divergente quanto à possibilidade de interromper a gravidez. Desejava um
filho e não queria tirar o filho estivesse ele como estivesse. Interrompi
porque o meu marido disse que não íamos alado nenhum, que o bebé ia acabar por
morrer.(E5) Foi muito difícil porque eu não estava de acordo com o meu
marido(E17).
A tomada de decisão de interrupção da gravidez foi vivida, em muitos casos,
como um conflito moral e religioso relacionado com os valores individuais e
crenças face ao aborto Pronto éumacoisa,queeusoucontra
oaborto,nãoconsigopornadatolerar isso eeuprópria fui fazê-lo(E10). Existe
igualmente o receio da não aceitação da sua decisão pela família e pela
sociedade ou mesmo a estigmatização por terem um feto malformado. Nestas
situações (2), o casal escondeu o verdadeiro motivo da interrupção a minha
família não ia compreender sabe é muito difícil dizer uma coisa destas...por
isso disse que o meu bebé estava morto(E5).
Para as mulheres com respostas negativas face ao aborto, a sua decisão foi
particularmente difícil. Interromper voluntariamente a gravidez significou pôr
termo a uma vida, independentemente das circunstâncias que a motivou,
contribuindo para aumentar significativamente os sentimentos de
responsabilização. Sentimentos contraditórios sobrepuseram-se: por um lado,
não querer um filho deficiente que iria sofrer e fazer sofrer estava a
criança a sofrer de certeza, era uma criança que ia sofrer para toda a vida e
eu a sofrer também, não é?(E4) e, por outro, sentirem que estavam a praticar a
eutanásia no seu bebé Senti-me um bocado assassina. É mesmo assim. eu pensei
assim estou a matar o meu filho(E7).
DISCUSSÃO
Este estudo teve como principal objectivo conhecer a vivência da interrupção da
gravidez por malformação congénita fetal, do ponto de vista da mãe.
De um modo geral, o nosso estudo revelou que a experiência de interrupção da
gravidez teve consequências emocionais intensas. Neste estudo, a notícia foi
recebida com choque e surpresa, independentemente da idade gestacional ou do
número de gestações. A revolta, a raiva e as manifestações de choro,
expressaram a profunda tristeza provocada por este acontecimento que, nalguns
casos, já havia decorrido há um mês, acompanhando-se de um profundo sentimento
de injustiça e frustração. Na literatura, o diagnóstico de uma malformação
congénita é descrito como produzindo um profundo impacto emocional naqueles que
o recebem (Detraux, Gillot-De Vries, Eynde, Courtois, & Desmet, 1998;
Marteau, Cook, & Kidd, 1992; Schutt, Kersting, Ohrmann, Reutemann,
Wesselmann, & Arolt, 2001; Tavares, 2000).
Segundo Tavares (2000), a maioria dos casais deseja a opção de um diagnóstico
precoce de um defeito congénito fetal grave. Perante uma suspeita, o período de
espera para a confirmação dos resultados é vivido com ansiedade (Gotzmann, et
al., 2002; Statham, 1992). No presente estudo, é reconhecida a importância do
diagnóstico precoce de qualquer anormalidade, para que as decisões quanto ao
futuro da gravidez sejam tomadas o mais cedo possível, com vista a minimizar
as suas consequências. Apesar de ser notório que um diagnóstico tardio torna a
experiência mais difícil (Carmona, 1996; Korenromp et al., 2005), em
consequência de uma maior ligação ao feto, as reacções apresentadas face ao
diagnóstico de mal formação não parecem ser afectadas pela idade gestacional
no momento da interrupção.
O receio de um erro diagnóstico ou de uma decisão precipitada justificam
sentimentos de incerteza e ansiedade transformando a decisão quanto ao
prosseguimento da gravidez numa das decisões mais difíceis da vida do casal,
particularmente nas situações de diagnóstico tardio, muito próximo das 24
semanas, em que o tempo de reflexão é considerado insuficiente. Dommergues
(2003) no seu estudo, refere que o tempo para a tomada de decisão pode ser
responsável por decisões precipitadas, com consequências psicológicas nefastas
para os intervenientes, pelo que seria importante que os casais pudessem dispor
de um prazo mais alargado.
Informação detalhada aumenta a autonomia das decisões reprodutivas e diminui a
ansiedade relacionada com o processo de decisão (Marteau, Cook, & Kidd,
1992; Toth & Szabo, 2005). A informação recebida interfere na capacidade
das mulheres utilizarem os seus próprios recursos cognitivos e afectivos na
tomada de decisão e na sua autonomia em enfrentar a sua decisão (Quick, 1997).
No presente estudo, as mulheres consideram ter recebido a informação necessária
para uma decisão livre e responsável. A tomada de decisão envolveu ambos os
elementos do casal e, em alguns casos, foi partilhada com os familiares mais
próximos. No entanto, ficou claro que os progenitores procuraram aprovação,
para a sua decisão, junto dos profissionais de saúde, valorizando
significativamente a sua opinião ou sentindo-se menos culpados quando estes
aprovarem a sua decisão.
A principal razão, para a opção pela interrupção da gravidez foi a gravidade da
malformação, tal como referem os estudos de Zlotogora (2002) e de Menahem e
Grimawade (2003). A percepção da gravidade resultou das informações
transmitidas pelos profissionais de saúde acerca do tipo de malformação, sua
gravidade e consequências futuras no bem-estar da criança e da família bem
como das experiências vividas e dos conhecimentos previamente adquiridos
relativamente a crianças com malformações. Apesar de se considerarem bem
informadas, ao longo dos discursos das mulheres, sobressaem algumas dúvidas que
levantam a possibilidade de nem toda a informação recebida ter sido
compreendida ou assimilada na totalidade, em consequência do choque e das
emoções do momento, como refere Marteau (1991). Aspectos relacionados com as
implicações futuras e com as possíveis causas da malformação estavam incluídas
entre as questões que maior incerteza gerou nas mulheres (Menahem &
Grimawade, 2003).
No nosso estudo, o bem-estar da criança e a sua qualidade de vida futura foram
identificadas como as principais preocupações, tal como referem os estudos de
Menahem e Grimawade, (2003). Segundo Milliez (2001), a interrupção da gravidez
põe fim, deliberadamente à vida do feto, para lhe evitar sofrimento ou as
consequências de uma anomalia grave incompatível com uma vida normal.
Outro factor relevante na tomada de decisão foi a ausência de suporte social
eficaz para apoiar as situações e os encargos familiares envolvidos quando a
família tem um filho(a) com deficiência. Neste estudo ficou claro que as
mulheres consideraram que a sobrevivência e os cuidados das crianças com
malformação congénita ficam quase totalmente na dependência das famílias,
aumentando consideravelmente os encargos económicos e o desgaste psicológico,
pelas constantes necessidades de apoio e disponibilidade constituindo um grande
sacrifício para toda a família.
Indo de encontro a alguns estudos (Rosseau, 2001; Carmona, 1996), a existência
de outros filhos no casal parece ter sido um factor facilitador da decisão,
talvez porque neste caso já concretizaram o sonho de ser pais.
A objectividade e neutralidade da informação prestada pelos profissionais de
saúde são condição essencial para decisões livres e informadas. Sagi e
colaboradores (2001), num estudo sobre interrupção da gravidez por
aneuplodias, verificaram que 56% da sua amostra considerou ter recebido um
aconselhamento directivo que influenciou a sua decisão. Os resultados deixam
clara a influência que a opinião médica exerceu no processo de decisão. Num
momento de grande vulnerabilidade do casal, o modo como o médico transmite as
suas explicações podem ser determinante para o casal. O casal pode procurar
sustentar a sua decisão na opinião emitida pelos profissionais de saúde, que em
alguns casos, contribui para diminuir os sentimentos de culpa pela sua decisão.
Interromper voluntariamente uma gravidez programada e desejada, como aconteceu
na maioria dos casos, ainda que devido a um problema grave do feto, revelou-se
um grande dilema na vida dos progenitores. Na maioria dos casos, a gravidez
encontrava-se integrada no projecto de vida do casal e interrompê-la significou
adiar sonhos e expectativas. As entrevistadas demonstraram claramente nos seus
discursos que estes bebés já faziam parte das suas vidas evidenciando a
existência de uma ligação precoce com o feto. Os movimentos fetais e a imagem
ecográfica tornaram mais concreta a realidade da existência do bebé e, nalguns
casos, as mulheres já haviam atribuído um nome e já sonhavam com o futuro, como
mães. De facto, a literatura evidencia (Brazelton & Cramer, 1993; Mendes,
2002; Sá, 1997) o processo de ligação ao bebé desde a concepção constituindo
uma das tarefas psicológicas principais desenvolvidas ao longo da gravidez.
A decisão de interromper acompanhou-se por vezes de conflitos morais e mesmo
religiosos. Nas mulheres, com respostas negativas face ao aborto, a decisão de
interromper foi particularmente difícil, pois tiveram de decidir contra os seus
próprios valores. Neste estudo ficou claro que os conflitos morais
representaram uma dificuldade significativa no processo decisório (Carmona,
1996; Statham, 1992).
As implicações deste estudo são particularmente importantes para as práticas
dos profissionais de saúde que acompanham o casal ao longo de todo o processo.
Conhecer reacções provocadas por este acontecimento, as razões e dificuldades
dos progenitores no processo decisório representa para os profissionais
envolvidos no processo, uma oportunidade para definirem estratégias de
aconselhamento e suporte facilitadoras da decisão.
Pretende-se que os resultados deste estudo possam contribuir para um melhor
conhecimento e compreensão da interrupção da gravidez, por malformação, na vida
do casal e da mulher, em particular, no sentido de serem definidas estratégias
preventivas atempadas e adequadas. Intervenções personalizadas e humanizadas,
o apoio e acompanhamento, por parte de profissionais treinados, contribuirão
para reduzir as taxas de morbilidade psicológica. São também necessários
protocolos de actuação que assegurem condutas profissionais uniformizadas,
continuidade de cuidados e suporte eficaz ao longo de todo o processo.
O planeamento de programas de intervenção precoce que visem a educação do casal
na adopção de comportamentos e atitudes adequadas ao desenvolvimento de
respostas adaptativas, ajudarão o casal a encontrar novos significados e
retomar o controlo das suas vidas. O acompanhamento no follow-up, nestes
casos, impõe-se!