Resgatando o lugar de pais: uma proposta de promoção de saúde mental
O psicólogo inserido na atenção básica de acordo com o modelo SUS
A partir do Movimento da Reforma Sanitária no Brasil, nas décadas de 70 e 80, e
principalmente com a VIII Conferência Nacional de Saúde, de 1986, a saúde
passou a ser compreendida como um direito do cidadão e um dever do Estado. Os
debates nacionais que incluíram a participação popular resultaram na
implantação de um modelo de atenção à saúde garantidos pelo Estado, segundo a
Constituição de 1988. De acordo com a seção Da Saúde da Constituição Federal,
tem-se que os princípios básicos que orientam a implantação do Sistema Único de
Saúde (SUS) são a universalidade (direito de todos os cidadãos), a
integralidade (atendimento em todos os níveis de complexidade, da prevenção à
assistência curativa), a equidade (garantia de acesso à saúde por todos os
cidadãos, com investimentos maiores em áreas mais carentes), a descentralização
(participação do governo federal, estadual e municipal no estabelecimento das
políticas públicas de saúde) e a participação popular (através dos Conselhos de
Saúde, que atuam na formulação e controle dos serviços públicos de saúde).
Em documento oficial que retoma a história da construção do SUS (Brasil,
2006a), formulou-se a compreensão de saúde como:
Um direito que se estrutura não só como reconhecimento da
sobrevivência individual e coletiva, mas como direito ao bem-estar
completo e complexo, implicando as condições de vida articuladas
biológica, cultural, social, psicológica e ambientalmente, conforme a
tão conhecida definição da OMS ' Organização Mundial da Saúde (p.
18).
Assim sendo, as políticas públicas de saúde devem abarcar o ser humano de
maneira integral, o que implica um olhar para além das doenças, em busca da
promoção da saúde. Neste contexto, também as demandas referentes à saúde mental
serão atendidas tanto nos âmbitos da promoção de saúde, e prevenção de doenças,
como nos tratamentos e na reabilitação. Com isto, o psicólogo é chamado a se
inserir em diversos aparelhos de saúde, como as Unidades de Saúde da Família,
Unidades Básicas de Saúde, Centros de Atenção Psicossocial, e Centros de
Especialidades, entre outros, que devem atuar dentro de uma rede de cuidados
(Brasil, 2007).
A Unidade Básica de Saúde (UBS) tem a característica de estar inserida no
território onde se encontra a população que será atendida, atuando como uma das
principais portas de entrada do usuário no Sistema de Saúde. Está incluída na
Atenção Básica, e portanto deve cumprir seu papel de prevenir doenças e
agravos, realizar a promoção em saúde e prestar assistência de baixa
complexidade, acolhendo às demandas espontâneas e garantindo a continuidade dos
cuidados necessários. Deve focar não somente a enfermidade, mas fornecer
atenção integral sobre a pessoa (Starfield, 2002).
Cabe às equipes da Atenção Básica incorporar os objetivos da Política Nacional
de Promoção de Saúde, de promover a qualidade de vida e reduzir
vulnerabilidade e riscos à saúde relacionados aos seus determinantes e
condicionantes (Brasil, 2006b, p. 17).
Além da Promoção de Saúde, a UBS promove também tratamentos de baixa
complexidade, como consultas, inalações, injeções, curativos, vacinas, coletas
de exames laboratoriais, tratamento odontológico, encaminhamento para
especialidades e fornecimento de medicação básica. Estes cuidados devem ser
oferecidos por uma equipe mínima, composta por médicos especialistas em Clínica
Geral, Ginecologia e Obstetrícia e Pediatria, Cirurgião-dentista, enfermeiro,
técnico de enfermagem, de saúde bucal, agentes comunitários de saúde, entre
outros (Brasil, 2006b).
Algumas Prefeituras Municipais, como é o caso desta onde se realizou o presente
estudo têm optado por locar nas UBS´s também outros profissionais
especialistas, como psicólogos, fonoaudiólogos, nutricionistas,
fisioterapeutas, além de especialistas médicos como psiquiatras,
cardiologistas, oftalmologistas, entre outros, visando facilitar o acesso da
população a estes profissionais. Abriu-se, com isso, a oportunidade de inserção
do psicólogo nas equipes da Atenção Básica. Tal realidade está de acordo com
Böing e Crepaldi (2010), que referem que embora as políticas de atenção à saúde
básica tal qual encontradas na legislação federal da saúde não favoreçam a
atuação dos psicólogos na saúde básica, o profissional da psicologia tem grande
potencial para atuar nas demandas da Atenção Básica. Assim, o psicólogo neste
contexto deve realizar a promoção de saúde e a prevenção, além de avaliar e
acompanhar casos leves a moderados, que não necessitem de um serviço
especializado em saúde mental (Gorayeb, Borges, & Oliveira, 2012).
O Ministério da Saúde postula que existem diversas responsabilidades a serem
compartilhadas entre as Equipes Matriciais da Saúde Mental e Equipes da Atenção
Básica, nas quais destaco, por serem fundamentais para a iniciativa de realizar
este trabalho: a priorização de casos mais severos, evitar práticas que levem à
psiquiatrização e medicalização de situações comuns à vida cotidiana,
utilização de recursos comunitários, priorizar abordagens coletivas e de grupos
como estratégia para atenção em saúde mental, e o trabalho de vínculo com as
famílias, tomando-as como parceiras no tratamento, e buscando constituir redes
de apoio e integração (Brasil, 2007).
A realidade é que cada dia mais, a população vem tomando conhecimento a
respeito da possibilidade de ajuda do psicólogo para enfrentar dificuldades nas
mais diversas áreas. Desajustes emocionais e comportamentais são queixas
frequentes nos consultórios médicos e em salas de aula, tornando-se cada vez
maior a demanda da população para o olhar e contribuições da Psicologia. Sendo
assim, há grande procura das famílias e grande apelo das escolas que buscam
compreender e solucionar os problemas que verificam no dia-a-dia, com a ajuda
do psicólogo.
Dados do próprio Ministério da Saúde (Brasil, 2007) e estimativas
internacionais, revelam que, se 3% da população do país (cerca de 5 milhões de
pessoas) apresenta necessidade de cuidados contínuos, por apresentarem
transtornos mentais severos e persistentes, este número triplica, quando
estimamos as pessoas que precisarão de atendimento eventual, por transtornos
menos graves (cerca de 15 milhões de pessoas).
Por estarem mais próximas das famílias, as equipes da atenção básica são as
primeiras a entrarem em contato com estas demandas. O Ministério da Saúde
mostra que 56% dessas equipes referiram realizar alguma ação em saúde mental
(Brasil, 2007, p. 3), e compreende que será sempre importante e necessária a
articulação da saúde mental com a atenção básica (Brasil, 2007, p. 3)
Pesquisas mostram que o modelo tradicional de trabalho do psicólogo clínico
jamais vai dar conta das especificidades do campo da saúde mental em órgão
público (Archanjo, 2012; Vecchia & Martins, 2009; Dimenstein, 1998;
Oliveira et al, 2004). Em se tratando de UBS, Archanjo (2012) mostra que este é
um campo onde a atuação do psicólogo está em constante transformação, sempre
buscando referenciais técnicos e éticos para dar conta de exercer uma prática
profissional que assuma seu compromisso com a sociedade. Oliveira et al. (2004)
apontam que uma prática voltada prioritariamente para o tratamento nos moldes
da psicoterapia tradicional acaba gerando uma demanda reprimida na população
que acaba não sendo atendida, e desvia o psicólogo da atuação em campos
multiprofissionais e de promoção e prevenção. Embora admitam que pode e deve
haver espaço para a realização da psicoterapia quando necessário, os autores
evidenciam que a acomodação do profissional nestas modalidades de atendimento
infringe os princípios universalistas do SUS. Para oferecer um atendimento
integral e garantir a equidade de acesso ao serviços, é necessário que o
profissional lance mão de técnicas mais ágeis e apropriadas para atendimento de
grande volume de pacientes de forma eficaz.
A inserção do psicólogo nos aparelhos públicos de saúde exige, então, uma
postura reflexiva dos profissionais a respeito de sua prática (Traverso-Yépez,
2001). É preciso empreender possíveis melhorias nos atendimentos, bem como
produzir estudos que avaliem as práticas e possibilitem a replicação do
conhecimento produzido através das capacitações, pontos primordiais para o
avanço da inserção da Saúde Mental no Sistema (Gorayeb, Borges, & Oliveira,
2012).
Winnicott e seu trabalho com consultas terapêuticas
Foi por conta da reflexão a respeito das possibilidades de atuação do psicólogo
inserido na UBS e da necessidade de avançar em termos de técnicas e
referenciais teóricos que dessem conta de abarcar uma atuação clínica de
qualidade, sem perder de vista o contexto em que estava inserida que nasceu a
ideia deste trabalho. Encontrou-se no trabalho do Psicanalista Donald W.
Winnicott a possibilidade de realizar uma clínica psicanalítica eficaz, sem que
houvesse necessariamente um processo de análise propriamente dito. Ele foi
pioneiro em mostrar que condutas terapêuticas embasadas no conhecimento da
psicanálise que se mostravam eficientes no tocante a devolver seus pacientes ao
rumo do desenvolvimento saudável.
Winnicott sempre deixou claro que para que estas intervenções fossem eficazes,
era preciso que a família desse continuidade ao processo desencadeado pelas
consultas, funcionando ela própria como um ambiente saudável, ou
suficientemente bom,estável e capaz de conter ele mesmo as angústias próprias a
certas fases do desenvolvimento infantil. No tratamento de Gabrielle, realizado
num enquadre que Winnicott denominou Psicanálise segundo a demanda, ele
considerou, em suas anotações explicitadas por Clare Winnicott no Prefácio do
livro The Piggle (Winnicott, 1979, p. 10), que a participação dos pais e o
intervalo das consultas com a criança produziram o enfraquecimento do
sentimento possessivo e deixaram caminho aberto para que o relacionamento da
paciente com seus pais se desenvolvesse como parte do processo terapêutico
total. Assim sendo, a família alcançou destaque na participação do processo
que conduz a criança de volta à saúde mental, e serviu como um exemplo marcante
da eficácia de uma prática psicanalítica de enquadre abreviado, bastante
inovadora para a época.
A família é a primeira estrutura que a criança encontra, e é no interior dela
que a mesma se desenvolve rumo a relacionamentos mais complexos (Winnicott,
1988). Compreendendo a saúde individual como um estado de maturidade que se
apresenta num processo, Winnicott (1983) nos aponta a família como ponto de
partida para a formação do ser humano saudável, e revela que a autonomia do
indivíduo só é alcançada quando se atinge esta maturidade do desenvolvimento. A
autonomia dos usuários, pretendida pelas prerrogativas do SUS, passa portanto
pelo processo de desenvolvimento dos indivíduos, e por consequência, pelo
estabelecimento de relações familiares que contribuam para o amadurecimento.
Assim, cuidar da saúde mental de seus membros, a fim de que possam assegurar a
continuidade do desenvolvimento da criança é primordial quando se pensa em
Saúde Mental. Quando os pais existem, e também uma estrutura doméstica e a
continuidade das coisas familiares, a solução vem através da possibilidade de
distinguir o que chamamos realidade e fantasia (Winnicott, 1988, p. 77). Com
Isto, Winnicott assinala que quando há uma estrutura familiar bem definida,
cada membro ocupando seu lugar (pai-mãe-filho), e havendo uma segurança na
continuidade e manutenção desta estrutura, os conflitos típicos da infância
encontram um bom ambiente para sua solução.
Segundo Winnicott (1988), os pais e educadores das crianças podem tratar
dificuldades das mesmas, quando estas apresentam resíduos da primeira infância
(de dependência infantil), pela ênfase num ou noutro aspecto da criação ou da
educação (p. 53).
Em termos de prevenção, é importante considerar que uma família que se encontra
estruturada em seus papéis de pais e filhos, gera um ambiente a priori, de
proteção e continência. Sendo assim, as crises que se irrompem em decorrência
de qualquer evento na vida da criança, podem ser contidos e elaborados no seio
da própria família, necessitando de um mínimo de intervenções externas para um
manejo que devolva a criança para seu desenvolvimento saudável (Winnicott,
1988). Faz-se portanto necessária a avaliação das condições ambientais
familiares para um diagnóstico completo em Saúde Mental (Lescovar, 2004)
ampliando o olhar, saindo do paciente identificado, e englobando a família como
um todo (Gomes & Sei, 2012).
Além disso, a conscientização dos pais a respeito da responsabilidade de seu
papel na família implica considerar também variáveis ambientais que dificultam
o desenvolvimento saudável de seus membros. Tais variáveis vão além da dinâmica
familiar, e podem-se incluir aí as interfaces com o sistema educacional, de
saúde, trabalho, cultura e posição social, aspectos estes que se evidenciam
caso a caso, e levam os membros do grupo familiar a refletir para além do
incômodo pessoal. Pensando em produção de Saúde Mental, é preciso fornecer aos
responsáveis pelas famílias a possibilidade de escuta e interlocução com a
comunidade à qual pertence, buscando construir uma prática da psicologia
comprometida e engajada com a realidade social brasileira (Moreira, Romagnolli,
& Neves, 2007).
A família é a primeira instância da provisão ambiental (Winnicott, 1965), ou
seja o meio que proporcionará um desenvolvimento saudável do sujeito, que
possibilita que ele atinja a maturidade, e, sendo saudável do ponto de vista
psicanalítico, poderá superar a dependência da sociedade e contribuir para a
manutenção da máquina democrática (Winnicott, 1989). Nesta perspectiva,
Garcia (2011) aponta que:
Se, em uma determinada sociedade, as mães e os pais não estão conseguindo
cuidar suficientemente bem de seus bebês e de suas crianças, isto irá pesar no
futuro, pois uma grande porcentagem de indivíduos que serão psiquicamente
doentes terá que ser sustentada pela sociedade como um todo; se os indivíduos
doentes forem a maioria, a própria sociedade corre o risco de adoecer (p. 81).
Cuidar dos pais, para que eles consigam retomar seu equilíbrio emocional,
possam conscientizar-se do momento de vida que a família atravessa, elaborar
pontos de sua própria história que repercute em suas atuações como pais,
promovendo assim o amadurecimento dos mesmos, é portanto, abrir caminho para
que seus filhos encontrem referências mais saudáveis e facilitadoras de seu
desenvolvimento (Motta, 2006).
Um dos papéis do psicólogo, dentro desta leitura, seria então de colaborar para
que as crianças possam contar com um ambiente suficientemente bom. Para isso,
vale lembrar que inicialmente, os pais apresentam uma queixa a respeito da
criança que eles pretendem trazer. Esta queixa diz respeito a algo que a
criança faz, expressa ou a qualquer problema identificado na mesma, seja pela
própria família, seja pelos médicos, ou pela escola. A busca de ajuda acontece
justamente porque o familiar não consegue satisfazer, ou mesmo identificar a
demanda, ou seja a real necessidade da criança, gerando o sintoma ou levando
a crer que o sintoma existe (quer dizer, observar um comportamento da criança e
crer que aquilo seria sintomático). Através do encontro entre o terapeuta e os
pais, pode dar-se a transformação da queixa em demanda, com a qual os pais
podem iniciar o trabalho, agora munidos da compreensão da necessidade da
criança e de seu papel frente a esta necessidade (Motta, 2006).
Os pais se mobilizam para buscar ajuda no atendimento psicológico quando reúnem
suas esperanças na possibilidade de um encontro que proporcione a melhora dos
sintomas identificados (Lescovar, 2004; Souza & Motta, 2008). Quando o
trabalho com os pais tem por objetivo o acolhimento da angústia, e realiza
intervenções o mais precocemente possível, isto favorece a esperança do
familiar em receber algum tipo de ajuda (Barbieri, 2010; De Paulo, 2006). Não
se trata de oferecer ao paciente ou pais, soluções mágicas e imediatistas, mas
sim de deixá-lo perceber como o problema se instalou, e qual o caminho para
minimizá-lo. Ajudar os pais a fazer essa leitura, colocando cada qual em
relação ao filho em termos de agente que pode promover o desenvolvimento
saudável do mesmo.
Neste sentido, as Consultas Terapêuticas de Winnicott mostram que, em
detrimento de um tratamento analítico a longo prazo, é possível realizar a
exploração integral das primeiras entrevistas psicológicas, sendo possível
avaliar, intervir e ajudar o paciente, através da comunicação significativa de
sua dificuldade, possibilitando assim, a retomada de seu desenvolvimento
saudável (Winnicott, 1965). Nesta modalidade terapêutica, o enfoque não é em
fazer tanto quanto possível para o paciente elaborar seus sofrimentos, mas sim
o mínimo necessário para a retomada do seu desenvolvimento. O que se perde
fazendo tão pouco quanto possível é balanceado por um lucro imenso de dar
acesso a um vasto número de casos, para os quais a psicanálise não constitui
uma proposta prática (Lescovar, 2004).
Esta modalidade mostra-se, portanto, interessante para os atendimentos
prestados na UBS, visto que se deve ter em mente a necessidade do psicólogo
estar acessível à população atendida. O curto tempo (de 1 a 3 atendimentos)
despendido para que o paciente se beneficie da consulta terapêutica possibilita
maior fluxo de entrada no serviço, ampliando a ajuda para a comunidade onde o
psicólogo está inserido. Contudo, visto que esta modalidade terapêutica está
restrita à condição de que haja uma provisão ambiental que possibilite à
criança ter esperança de um encontro humano que venha em seu auxílio, faz-se
importante ajudar os pais a entrar e permanecer em condição de dar acesso a
esta provisão ambiental, garantindo a eficácia da intervenção.
Este estudo, portanto, vai fazer uma leitura da possibilidade de se realizar
promoção de saúde e prevenção de doenças, assegurando um espaço de contato
entre as famílias, buscando valorizar o lugar de pai e mãe, enquanto
intervenção psicológica possível em uma UBS.
MÉTODO
O modelo proposto consistiu em iniciar o atendimento com a responsável pela
criança, no caso a mãe, e realizar as primeiras entrevistas não somente como
levantamento de queixas, anamnese e avaliação, mas como Consultas Terapêuticas
(Souza & Motta, 2008; Souza & Tardivo, 2008; Winnicott, 1965). Assim,
um dos objetivos das primeiras entrevistas foi alcançar no encontro com o
sujeito, uma comunicação significativa e a possibilidade de intervenção e
retomada do desenvolvimento.
Para viabilizar a análise dos dados coletados e levantar possíveis resultados
da intervenção, as queixas iniciais trazidas pela mãe, assim como as demandas
observada no caso foram circunscritas logo no primeiro encontro e usadas para
comparar o efeito das intervenções na modificação ou permanência das queixas e
demandas.
Após a primeira consulta, deu-se seguimento ao caso com a inserção da mãe em
grupo de pais (foi feito também, através da mãe o convite ao padrasto da
criança), o qual tem por objetivo refletir sobre o desenvolvimento das
crianças, eventuais entraves, e a função da família, no suporte à criança. Pela
possibilidade de compartilhar suas dificuldades e dividir suas experiências com
outras famílias, intencionou-se que a situação grupal servisse como um ambiente
de acolhimento e de espaço potencial para o nascimento de uma ação criativa no
seio das famílias (Medeiros, 2003).
Cada encontro funcionou ao mesmo tempo como diagnóstico e intervenção, e foi
possível aprofundar dados da anamnese, avaliar aspectos que porventura não
foram levantados na primeira entrevista, além de realizar intervenções
pertinentes e investigar os resultados das intervenções já realizadas.
O conteúdo das consultas foi analisado de forma qualitativa, de acordo com
Turato (2008), e foram extraídas dos atendimentos vinhetas que ilustraram a
discussão. A análise buscou explicitar possíveis transformações na postura e na
compreensão da mãe em relação às queixas e demandas inicialmente circunscritas.
Pretende-se também, por meio da análise dos dados, compreender se as consultas
favoreceram a construção de uma postura mais saudável e madura da família.
DISCUSSÃO DO CASO
Para ilustrar um atendimento realizado neste modelo, traremos para discussão um
caso, no qual o atendimento às demandas da criança deu-se através das consultas
com a mãe. Os nomes foram trocados para se preservar a identidade dos sujeitos.
Irene, mãe de Vinícius, de 6 anos, buscou atendimento para o mesmo, queixosa de
que o filho não compreende o meu sistema (sic mãe). Ela deseja que ele a
entenda e obedeça. Mãe acredita que isto acontece porque ele teve um convívio
próximo dela apenas até 1 ano de idade. Após esta idade, a criança ficou sob os
cuidados da tia avó da criança, que já morava com a família, para que a mãe
pudesse trabalhar na capital do estado onde moravam, uma cidade grande, que
oferecia melhores oportunidades de emprego. O pai da criança nunca esteve
presente na vida do mesmo, e não chegou a registrá-lo em seu nome. Esta é uma
realidade bastante frequente nos casos que chegam para atendimento neste
território. São famílias que migram de estados pobres do país, e vêm para esta
região a procura de oportunidades de emprego. Mães jovens que muitas vezes não
tinham um relacionamento estável com os pais dos seus filhos, e que precisaram
contar com o suporte de outros familiares até poderem assegurar, elas mesmas os
cuidados das crianças. Por 4 anos, desde a mudança de Irene para a capital,
Vinícius a via por um final de semana, a cada 2 ou 3 meses. Quando completou 5
anos, a mãe e seu atual marido mudaram-se para o estado de São Paulo, para a
cidade onde então moraram por 10 meses antes de trazer Vinícius para junto
deles. Durante estes 10 meses, mãe e filho se falaram apenas ao telefone. Mãe
tinha ido buscá-lo há três meses, e desde então passou a viver com seu padrasto
sua irmãzinha, à época com um ano e meio.
A mãe relatou que antes que ele viesse morar com ela, ele já havia apresentado
algumas dificuldades. Era desobediente, respondia mal à tia avó, enfrentando,
retrucando. Teve problemas de adaptação quando entrou na escola. Aqui,
desobecede o padrasto, que não briga com ele (sic mãe), pois diz que não
quer se meter (sic mãe). Ela própria determinou que o padrasto não
interferiria na educação de seu filho. Vinícius tinha um bom relacionamento com
a irmã, com quem brincava e era carinhoso. Mãe dizia: o problema é só comigo.
Neste primeiro atendimento foram realizadas intervenções no sentido de ajudar a
mãe a retomar e entender a história da família, e o momento no qual se
encontram, a fim de esclarecer qual o papel de cada membro na atual
configuração familiar. Procurou-se ajudar a mãe a postar-se diante do filho, a
quem deve conhecer e reconhecer como um sujeito, e não como um objeto submetido
ao seu desejo (quer um filho obediente). A falta de intimidade entre os dois
ficou evidente, pois com o relato da mãe precebeu-se que não havia momentos
descontraídos, onde podia surgir o gesto espontâneo e livre de ambos, e a
possibilidade de se reconhecerem mutuamente. Quanto ao padrasto, a este era
reservado o lugar de espectador, enquanto a criança possivelmente revivia, na
relação com o mesmo, a relação com o pai que esteve toda a vida ausente. Foi
preciso alertar a mãe sobre sua postura, a fim de que ela pudesse resgatar-se
enquanto mãe que se produz mãe na relação mãe e filho, (sujeito-sujeito) e nada
melhor do que buscar no brincar o espaço potencial para que isto pudesse
acontecer (foi dito à mãe os benefícios que ela poderia ter ao brincar com seu
filho). Fez-se urgente também instituir o lugar do pai (padrasto) nessa
família, para a criança conseguir se situar em seu lugar. Um pai presente, que
introduziria a Lei, permitindo ao filho segui-la e sentir-se integrado àquela
família. Naquele momento, precisou-se sinalizar à mãe que era preciso aceitar
que padrasto e filho pudessem ter uma relação própria, e que ela pudesse
sustentar o fato de que desta relação dependeria o desenvolvimento saudável da
criança e que ela necessariamente teria que permitir-se ser, às vezes
excluída, confiando na capacidade de cuidar e proteger de seu marido.
Recontar à Irene a história da família, introduzindo elementos de ordem
econômica e social, que estão fora do controle da mãe possibilitou que esta
pudesse lidar com seu sentimento de culpa, o que possivelmente traria
benefícios na relação da mesma com a criança, diminuindo e afrouxando as
defesas através das quais se dava a relação com o filho.
Com a introdução destes elementos, e também ao se fazer uma breve análise do
relacionamento da criança com sua tia-avó (que também não pode ser para ele um
Outro que lhe desse continência), e sugerindo-se a participação do padrasto na
criação de seu filho, buscou-se diminuir a ilusão de onipotência na qual a mãe
se encontrava, e que acabavam por suscitar sentimentos persecutórios
(alimentados pela culpa), que a mãe revelava ao perceber que o problema é só
comigo.
Em seu livro Conversando com os pais (1993), Winnicott formula que é um
insulto doutrinar pessoas. Devemos apreender as coisas comuns que as pessoas
fazem e ajudá-las a compreender porque é que as fazem (Winnicott, 1993, p. 3).
Ele era a favor de se discuir com os pais o gênero de problemas que enfrentam,
o tipo de coisa que fazem e o que podem esperar de suas ações, mas não dizer-
lhes o que fazer.
O segundo atendimento a este caso foi realizado com a mãe, em situação de grupo
de pais, e um mês após a primeira consulta. Fizeram parte deste encontro além
da psicóloga e de Irene, também outros sete pais e mães de crianças que haviam
buscado atendimento psicológico. O grupo foi iniciado com a fala da psicóloga
relembrando o objetivo do mesmo, e em seguida perguntando se alguém gostaria de
falar, caso tenha vindo com alguma questão, ou tenha algo que gostaria de
comentar.
A primeira a se pronunciar foi a mãe de Vinícius, que disse: depois que vim
aqui da primeira vez, ele se adaptou melhor. Está me obedecendo mais, chamo uma
vez só e ele já vem da rua. Foi pedido que ela contasse um pouco sobre
Vinícius para os outros pais. Ela relatou que ele não morou a vida toda com
ela, e que chegou agora de sua cidade natal, que andava muito rebelde,
respondão (sic mãe), não queria obedecer. Acrescentou ainda que contou uma
mentirinha para ele, que acha que ajudou: aproveitando-se da curiosidade do
menino sobre o avião que ele viu passar, ela inventou que o avião levava os
meninos levados, e que se ele não se comportasse bem, ia chamar o avião para
levar ele! (sic mãe). Mãe riu com a mão no rosto, como quem fica envergonhada.
Todos no grupo também riram, inclusive a psicóloga. O clima no grupo era
descontraído, e a mãe mostrou sentir-se à vontade. A seguir, a fala da
psicóloga foi sobre as várias mentirinhas que por vezes se conta para as
crianças, como a do homem do saco que leva criança que fica na rua, da
injeção que eles vão levar se não obedecerem, etc... E sobre como este parece
ser o caminho mais fácil para fazer a criança obedecer. Então, alerto que com
isto, assumimos o risco de a criança nos testar, e nos pegar na mentira, o
que pode gerar na criança a suspeita de que não somos confiáveis. Além do que a
criança passaria a acreditar que seus cuidadores não podem impedí-las de
fazerem o que querem, e precisam recorrer a fatores externos e alheios à nossa
vontade para convencê-las. O medo do avião levá-lo embora podia funcionar no
início, mas não se sustentaria, pois cedo ou terde ele desobedeceria, e não
viria avião nenhum pegá-lo. Era uma mentirinha arriscada. Ela segue contando
que ele tem estado mais obediente, o que me faz tender a acreditar que para
ela, a mentirinha mágica funcionou. Lembro-a então que na primeira entrevista
ela me passou uma imagem de que o marido havia desistido de tentar investir na
educação de Vinícius, e se via de fora da relação familiar. Pergunto a Irene
se ela chegou a conversar com o marido a respeito da primeira consulta. Ela
disse que sim, e que inclusive ele passou a falar mais com o menino, e que
basta uma palavra que ele já obedece. Ela segue: têm saído mais para passear
também, passam mais tempo juntos, soltam pipa(sic). Aponto que a mudança que
se percebeu na criança deve ter sido muito mais o efeito da chegada de uma
figura paterna na vida dele, do que a questão do avião. Mãe reforça que em casa
ele tem estado realmente mais tranquilo, e que entrou em seu ritmo (sic mãe).
Contudo, refere que na escola ele se recusa a fazer a tarefa, e diz à mãe que
não faz porque não quer. A intervenção da psicóloga buscou mostrar que era
provável que na medida em que ele percebesse que aqueles que ditam as regras (e
não o avião sequestrador) exigiam que ele fizesse a tarefa, ele talvez deixasse
de se opor. Por isso, reiterou também a importância de se passar um tempo de
qualidade com a criança, jogando, brincando, onde fosse permitido este tipo de
confronto de forma saudável.
Neste grupo de pais foram discutidos várias outras questões, como o manejo de
birras, a importância da unidade do discurso de ambos os pais, além do
reposicionamento dos pais em relação aos filhos, quando os mesmos mostravam
alguma distorção em relação à criança e à sua fase de desenvolvimento.
Finalizando o grupo, foi pedido para Irene voltar para o grupo, e se possível
trazer o padrasto de Vinícius. Ela concordou. Foi dito também que, caso
necessário, a criança seria trazida para avaliação, mas que até o momento, a
mãe e o padrasto estavam indo muito bem no trato das dificuldades de Vinícius.
A mãe foi para um segundo grupo de pais, após três semanas de intervalo e em
sua fala, evidenciou-se que está presente a harmonia no lar de Vinícius. Mãe e
filho estão se dando bem, assim como está a relação entre os demais membros. Os
eventuais entraves relacionados à preguiça de estudar (sic mãe) estão sendo
adequadamente manejados pela mãe e padrasto. Ao final deste grupo, mãe refere
que não sente mais a necessidade de ajuda, de forma que despedimo-nos, e deixo-
me à disposição para eventuais necessidades futuras.
DISCUSSÃO
No caso explicitado, constatou-se que a principal queixa inicial (ele não
compreende meu sistema) havia desaparecido entre a primeira e a segunda
consulta, na medida em que provavelmente a família se posicionou de forma a
atender a real demanda da criança. Souza e Tardivo (2008) afirmam que é
possível nas entrevistas iniciais, empreender um um ambiente acolhedor e
continente, conduzindo-as como momento de reflexão, atendimento, e se
possível, elaboração e promoção de possíveis mudanças, dentro de uma abordagem
psicanalítica, considerando que as fases de diagnóstico e intervenção caminham
juntas.
Motta (2006, 2008) ressalta que a capacidade dos pais de se sentirem
preocupados e responsáveis, alidada ao desejo de efetuar reparações que
favoreçam a retomada do desenvolvimento do filho, permitem aos pais engajarem-
se no tratamento dos mesmos. Desta forma, tem-se que é possível auxiliar a
família de maneira abreviada. Quando, no entanto, os pais dão indícios de uma
incapacidade para depressão, tem-se uma restrição significativada da capacidade
dos mesmos para auxiliar no processo terapêutico. Nestes casos, o trabalho
psicoterápico breve tende ao fracasso ou a resultados bastante limitados. Esta
capacidade para a depressão é apontada portanto, como uma condição mental que
deve estar previamente presente, para que se possa indicar o trabalho
terapêutico breve. O que se presenciou no caso em discussão foi a presença de
uma mãe capaz de responsabilizar-se pelos cuidados do filho. Embora houvesse
uma distorção por parte da mesma, devido às fantasias de onipotência, pode-se
inferir que havia também um lado saudável da mãe que percebia a necessidade de
ajuda. Foi neste momento, em que a mãe considerou que poderia obter tal ajuda,
que ela buscou uma consulta com o psicólogo.
É possível considerar que havia uma diversidade de material que poderia
continuar a ser desenvolvido neste caso, que talvez pudesse ser enquadrado em
psicoterapia a médio ou longo prazo. Contudo, desaparecida a queixa da mãe,
atendidas as necessidades da criança e levando-se em conta que não havia
indícios de características psicopatológicas ou desajustes graves nos relatos,
indicou-se a alta. Outras famílias puderam então utilizar-se deste espaço e
tempo de encontro com a psicóloga da UBS. Do ponto de vista da adaptação da
criança à sua nova realidade, mostrou-se que muito foi feito para ajudá-la.
Sentindo-se mais livre, a relação da mãe com o filho melhorou, e a harmonia
entre criança, mãe e padrasto foi conquistada. Na prática, o trabalho de
integração da criança na família foi realizado pela própria família, sem a
intervenção direta da psicóloga na vida da criança. Sendo assim, a confiança
que a família tem em seu poder curativo foi preservado. Além disso, as
consultas realizadas com a mãe possibilitaram a construção de um espaço
potencial, de onde surgiu uma comunicação significativa, da angústia desta mãe
que estava deslocada de seu lugar na relação com seu filho e rivalizando com
seu marido, infeliz, em meio a fantasias e culpas que a engessavam. A
possibilidade de comunicar e sentir-se compreendida e amparada, possibilitou à
mãe a recobrada dos rumos de seu desenvolvimento e devolveu-a a liberdade de
atuar como mãe.
Esta proposta de trabalho possibilitou a circulação de maior número de casos,
sem que as famílias ficassem no aguardo para iniciar atendimentos individuais
em filas de esperas enormes. Ainda, funcionou como uma continuação da triagem,
com propósito de avaliar ao longo dos encontros a real gravidade dos casos, e a
necessidade de auxílio através de outros serviços da rede.
A partir desta experiência, a família passou a saber que há na Unidade de Saúde
próxima à sua casa a possibilidade de encontro e de experiência viva. Tornando
o acesso às famílias fácil e rápido, a portas abertas, nos tornamos a
provisão ambiental necessária, às vezes para a criança, às vezes para seus
pais, que adquirem a confiança num serviço prestado de forma humanitária e,
assim se pretende, eficaz.