Uma História de Violência sob as Brumas des Virunga: Morte e poder no Ruanda
Intróito
A história do Ruanda tem sido uma autêntica fonte de manipulações, quer do
ponto de vista ideológico, quer político. Usada como artifício legitimador de
diversos propósitos políticos de dominação e de exclusão social, com base numa
possível origem histórica, morfológica e regional diferente entre Batutsi e
Bahutu, ela tem sido manipulada desde meados da década de 1950, ora para
legitimar o domínio que os primeiros exerceram sobre os segundos, desde
provavelmente o século XII, ora para justificar a inversão dessa ordem anterior
e legitimar o domínio dos segundos sobre os primeiros, desde a independência em
1962. A história, ou dito de outra forma, os seus usos, encontram-se assim bem
no cerne dos ciclos de violência entre estes dois grupos sociais, ciclos esses
que remontam à criação do reino Nyiginya e que, para efeitos deste artigo,
culminaram no inenarrável genocídio de 1994.
A versão que aqui se apresenta, não sendo consensual, sobretudo no que concerne
ao período da pré-história e da ocupação inicial da região por povos de origem
banto e de origem hima, é pelo menos a mais difundida entre académicos,
ruandeses e estudiosos do Ruanda, e também a que é mais partilhada pela própria
população ruandesa, por ser a versão oficial, ensinada nas escolas e nas
missões desde o início do século XX até à actualidade. O propósito para
apresentá-la, não é o de usá-la como modelo explicativo da actualidade, e de
uma suposta diferença étnica ou racial entre os diferentes grupos
populacionais, mas sim o de apresentar a versão que, por ser a mais difundida,
é aquela que tem servido como pano de fundo para os diferentes entendimentos e
significados que são atribuídos à sua história pelos actuais actores políticos
e académicos ruandeses e que, por isso mesmo, tem servido desde a década de
1950 para pautar e legitimar uma relação problemática, violenta e de profunda
exclusão.
O presente artigo pretende assim apresentar as bases e as principais leituras
de um relacionamento entre dois grupos populacionais do Ruanda, que na
actualidade se entendem como diferentes, e que desde a independência se
digladiam pela conquista de um espaço de dominação de um sobre o outro.
Culminando com a referência ao genocídio de 1994, o artigo desenrola-se em três
partes: a primeira sobre a história do Ruanda até à independência; a segunda da
independência até à institucionalização do multipartidarismo em 1990; e a
terceira sobre o período que antecede o genocídio.
O presente artigo parte de uma premissa hipotética principal, que pretende
demonstrar no seu percurso, segundo a qual, quer os discursos e versões da
origem histórica, quer os discursos e as práticas actuais pós-dominação
colonial belga, com base na etnicidade e na diferenciação racial, que
culminaram com o processo de solução final de 1994, têm servido ao longo da
história do relacionamento entre grupos populacionais ruandeses para legitimar
os modos e processos de apropriação do aparelho central de dominação, o Estado
pré-colonial e o Estado moderno.
Um reino perdido nas brumas
De acordo com Bernard Lugan, o território que hoje conhecemos como Ruanda
começou provavelmente por ser ocupado a partir dos séculos IV-III A.C., por
povos de origem banto vindos do norte (1997, p. 39), que estariam na origem dos
actuais Bahutu, e que rapidamente dominaram os anteriores habitantes, os Renge1
e os pigmeus Twa, que seriam os primeiros ocupantes do Ruanda. Os Bahutu
espalharam a sua soberania por toda a região, mesmo a áreas que fazem hoje
parte da República Democrática do Congo e do Uganda. Do ponto de vista político
organizavam-se em linhagens, inzu (constituídas por vários grupos familiares,
urugo, ligados a um antepassado comum), em que cada linhagem controlava um
território, tendo como chefia política o elemento mais velho do grupo familiar
mais antigo a ocupar esse território. Algumas dessas linhagens, pelo número de
elementos e características mais aguerridas, deram origem a pequenas
chefaturas, ou mesmo reinos, segundo Ferdinand Nahimana (Nahimana, 1993). A
principal actividade económica dos grupos bahutu era a agricultura.
Os Batutsi, ou os seus ascendentes de origem hima, segundo vários autores
teriam começado a chegar a esta região sensivelmente na mesma época que os
Bahutu (Lugan, 1997, p. 45)2. Com os seus grandes rebanhos de vacas, começaram
por se integrar na organização sociopolítica hutu, recebendo dos chefes bahutu
parcelas de terreno em regime de clientelismo. Posteriormente teriam fundado
algumas chefaturas, ou até pequenos reinos.
Provavelmente entre os séculos XII e XIV, a linhagem tutsi dos Nyiginya começou
a organizar-se politicamente e fundou um reino em torno do mwami (rei) Ruganzu
I Bwimba3. Progressivamente este reino Nyiginya foi dominando os outros reinos
batutsi e bahutu4. A história da expansão política e territorial do reino
tutsi, desde o século XIV até finais do século XIX, caracteriza-se então por
períodos de expansão violenta, com ocupação de chefaturas bahutu e batutsi; por
ocupação pacífica, anexação de territórios através de acordos e alianças; e
igualmente por períodos de contracção, com os soberanos Nyiginya a perderam
espaço territorial face ao avanço de certos senhores bahutu. De acordo com Luc
d'Heusch alguns senhores bahutu mantiveram-se mesmo independentes até
1925, caso do senhor hutu de Bazoso (Heusch, 1982, p. 30)5.
Politicamente, a organização deste reino tutsi divergia enormemente quer da
organização das anteriores chefaturas batutsi, quer bahutu. A organização
política do reino dos Nyiginya era extremamente centralizada na figura do
mwami, que detinha poderes administrativos, jurídicos e militares, mas
sobretudo poderes mágico-religiosos e uma natureza considerada sagrada. O rei
era coadjuvado por diferentes tipos de conselhos, dos quais o mais importante
era o conselho dos biru, nobres das linhagens ligadas por parentesco à linhagem
real, e que detinham os segredos do reino e do código de sucessão. O reino
estava dividido em províncias, chefiadas por um tutsi membro da família real,
ou a ela ligado. O território e todos os rebanhos de vacas eram pertença
exclusiva do mwami. Havia igualmente um exército regular, pois todos os jovens
batutsi eram obrigados a prestar serviço militar entre os 16 e os 20 anos.
A partir da criação deste reino, a relação entre os Bahutu e os Batutsi viria a
sofrer profundas clivagens e assimetrias, uma vez que os senhores batutsi,
responsáveis pela guarda de enormes rebanhos de vacas6, instituíram uma forma
de dominação dos camponeses bahutu, consagrada através da instituição da
ubuhake. A ubuhakeconsistia num sistema de relações contratuais7 entre o senhor
das vacas, o shebuja, em geral um tutsi, e um indivíduo que se oferecia para as
tratar e guardar, o umugaragu, em geral um hutu, que em troca prestava serviços
ao senhor das vacas e pagamentos em géneros. Este contrato era vitalício e
acabava por se transformar numa relação de vassalagem (Lugan, 1997, p. 120)8.
No entanto, apesar de este contrato não ser apanágio apenas da relação Tutsi-
Hutu, pois ele podia ser usado por Bahutu que detinham poder no reino, e em
consequência detinham um rebanho, e também porque os Batutsi mais pobres
entravam neste sistema de vassalagem, ele constituiu sempre a imagem de uma
superioridade que, para os Batutsi, funda-se em 3 princípios: 1) na origem
celestial dos Batutsi, cujos fundadores teriam "caído do Céu"; 2)
económica, pois dominariam economicamente os Bahutu devido à sua riqueza em
gado e à institucionalização da ubuhake; 3) política, pela dominância do reino
tutsi. A diferenciação morfológica também é um carácter de distinção racial
entre os dois grupos. Contudo, e ao contrário do que alguma literatura expressa
(por exemplo Heusch, 1982, p. 29), não se pode afirmar que se tratasse de um
regime de castas, uma vez que existiam casamentos mistos entre Bahutu e Batutsi
de classes mais desfavorecidas, e alguns chefes bahutu mantinham seus lugares
de chefia, quando o seu território era incorporado no reino tutsi. Em geral,
somente entre a elite tutsi se praticava uma espécie de endogamia de classe,
como forma de preservar a diferença e a pureza do ideal tutsi e da sua
superioridade sobre os Bahutu.
Várias colonizações numa só história
O Ruanda foi primeiramente colonizado pelos alemães. Em 1894, Gustav von Gotzen
foi o primeiro europeu a chegar ao Ruanda e a ser recebido pelo então
mwamiKigeri IV Rwabugiri9. Em 1898 os alemães fundaram o primeiro posto em solo
ruandês, já no reinado do mwami Yuhi V Musinga. Em 1899 a Alemanha criou o
Bezirk10 do Ruanda-Urundi, anexando assim o Ruanda e o Burundi sob uma única
província administrativa (Lugan, 1997, p. 250). A ocupação alemã foi
praticamente incipiente, e muito breve, e por isso não exerceu nenhuma
modificação significativa no sistema político, nem na relação de forças sociais
e económicas entre os diversos grupos ruandeses.
No terminus da Primeira Guerra Mundial, e em face da derrota da Alemanha, o
território do Ruanda-Urundi ficou sob a administração da Bélgica, que o ocupou
após conquistá-lo militarmente à Alemanha ainda durante as hostilidades. A
Bélgica ficou com um mandato para administrar o território, a partir de 1919,
depois de negociações com a Grã-Bretanha. Esse mandato seria posteriormente
reconfirmado pela Sociedade das Nações, em 1923. Foi a colonização belga, e a
influência missionária da Igreja Católica, que alteraram profundamente o
panorama político, económico e social da região.
A Bélgica implementou no Ruanda-Urundi um sistema administrativo centralizado
num governador-geral, e em duas províncias, o Ruanda e o Urundi, cada uma com o
seu vice-governador e uma administração colonial própria, quer civil quer
militar. No caso do Ruanda, com a reforma administrativa de 1929, o território
ficou dividido em 45 chefferies (correspondente à actual divisão em comunas),
chefiadas por Batutsi, e 565 sous-chefferies (correspondentes à actual divisão
em colinas) também chefiadas maioritariamente por Batutsi (Lugan, 1997, p.
330). Esta espécie de tutsificação da administração colonial local teve como
condão alargar a superioridade tutsi a todo o território, e tornar os Batutsi,
a etnia tutsi em geral, favorecidos perante a administração colonial, sobretudo
no sistema educativo.
Este processo de tutsificação foi amplamente incentivado e mesmo idealizado
pela Igreja Católica, que detinha uma enorme presença no Ruanda e uma
fortíssima influência junto da administração colonial belga. Os primeiros
missionários católicos a estabelecerem-se no Ruanda foram os missionários
franceses, Pères Blancs, que em 1900 chegaram à corte e fundaram a missão de
Save. Rapidamente os missionários desenvolveram uma rede de missões em todo o
território, à excepção da região central onde se situava o coração do reino e a
sua capital, região essa interdita aos missionários. Bastante influenciados
pelas teorias evolucionistas da época, estes missionários desenvolveram toda
uma teoria da superioridade racial tutsi que privilegiou profundamente este
grupo, sobretudo no sistema administrativo, pois a Igreja teve forte influência
na tutsificação da administração local, e no sistema educativo, que durante
quase toda a colonização foi um monopólio das missões católicas.
A Igreja teve igualmente uma enorme influência no controle da elite tutsi ao
conseguir influenciar a deposição do mwami Yuhi V Musinga, em 1931, e a
entronização de Mutara III Rudahigwa11. A entronização do mwami Mutara III
marca um período de aliança triangular entre a monarquia tutsi, a Igreja
Católica e a administração colonial. Mas esta espécie de santa aliança
terminaria na década de 1950, sobretudo devido à enorme mudança política e
ideológica operada nessa época na liderança da Igreja Católica ruandesa.
Em 1946, a ONU (Organização das Nações Unidas) atribuiu à Bélgica a tutela dos
territórios do Ruanda-Urundi12. Contrariamente à figura jurídica do mandato,
com a tutela a ONU passaria a deter maiores poderes indirectos sobre a
administração destes territórios, nomeadamente porque a administração belga
passaria a "prestar contas anuais" da sua administração. Ademais, a
Bélgica obrigava-se a conduzir o Ruanda-Urundi à independência. Nesse sentido,
a administração belga implementou em 1952 um novo sistema administrativo que
criava um conjunto de conselhos consultivos locais e nacionais, e alargava os
poderes do mwami, que não somente passaria a designar directamente os chefes de
cheffe rie e sous-chefferie, bem assim como os membros dos respectivos
conselhos, factor este que acentuaria ainda mais a dominação tutsi no sistema
administrativo colonial (Lugan, 1997, pp. 351-353).
No Ruanda este processo administrativo provocou em 1953 uma forte reacção do
pequeno sector intelectual hutu, que denunciou fortemente a tutsificação do
regime e a exclusão dos mais desfavorecidos, os Bahutu, do processo de decisão
político-administrativa com vista à independência do Ruanda. Este sector
intelectual, de certo reduzido em número, contava já com o apoio de certos
sectores quer da Igreja Católica belga, quer da sociedade civil colonial belga,
nomeadamente de sectores mais de esquerda, quer da Igreja, quer civis. Ora
estes ventos de mudança político-ideológica no que concerne à descolonização e
independência das colónias africanas começaram a soprar em sectores da esquerda
e sectores progressistas da Igreja Católica ainda antes da Segunda Guerra
Mundial, mas foi a partir desta altura que se intensificaram e obtiveram um
enquadramento internacional, com a criação da ONU e da sua Carta. No Ruanda
este movimento ideológico pró-independentista encontrou facilmente eco quer em
certos sectores da elite tutsi, desejosa de fundar uma monarquia tutsi
independente, quer entre os intelectuais bahutu. Estes, apoiados por sectores
progressistas da Igreja Católica belga, aspiravam a um Estado independente,
liderado pela maioria hutu. Por outro lado, em 1955 as mudanças ocorridas quer
no cargo de vice-governador, quer na direcção da Igreja, com a nomeação de um
novo vigário do Ruanda, produziram também uma profunda alteração na situação,
nomeadamente na santa aliança triangular, pois quer o novo vigário, quer o novo
vice-governador eram profundamente favoráveis à causa hutu.
É neste contexto político-ideológico que surge, em 1957, um documento,
Manifeste des Bahutu, redigido por nove signatários bahutu, entre eles Grégoire
Kayibanda, dirigido à administração colonial belga, denunciando a exploração
histórica dos Batutsi sobre os Bahutu, a situação de desigualdade social entre
os dois grupos étnicos, a condição de estrangeiros e de colonizadores dos
Batutsi (pois segundo o Manifesto não são originários do Ruanda), e pedindo à
administração belga para alterar a situação e proceder a mudanças democráticas
com vista à preparação da independência. Estes signatários tinham várias coisas
em comum, sete deles eram originários da região de Gitarama, tinham todos
estudado na mesma missão católica, e estavam todos fortemente ligados à Igreja
que, na verdade, apoiava o Manifesto.
O Manifesto provocou uma forte reacção do Conselho do País, órgão consultivo
criado com a reforma de 1952 e fortemente dominado pelos Batutsi e pelo mwami.
A divisão étnica Hutu-Tutsi passou a ser pública e oficialmente assumida e a
elite tutsi reagiu contra a reclamação dos signatários do Manifesto,
proclamando a sua natural e histórica superioridade. Em consequência desta
reacção, o movimento hutu rapidamente se radicalizou, dando origem a dois
partidos políticos pró-Hutu, o PARMEHUTU (Parti du Mouvement de
l'Emancipation Hutu), criado em 1959 em Gitarama e liderado por Grégoire
Kayibanda e outros intelectuais bahutu signatários do Manifesto e originários
da mesma região, e a APROSOMA (Association pour la Promotion Sociale de la
Masse) criada em 1957, na região de Butare, e transformada em partido em 1958,
liderada por Joseph Habyarimana Gitera, um dos signatários do Manifeste des
Bahutu, mas que não fazia parte do grupo de Gitarama. Por sua vez, a elite
dirigente tutsi cria, em 1959, um partido político, a UNAR (Union Nationale
Ruandaise), que apesar de ser multi-étnico é fortemente dominado pela
aristocracia tutsi. Alguns intelectuais e moderados batutsi criariam um outro
partido, o RADER (Rassemblement Démocratique Ruandais). Este último nunca teve
grande expressão e sempre foi visto como uma tentativa de criação da
administração belga de uma via moderada tutsi.
Este processo de radicalização mútua entre Bahutu e Batutsi tem o condão de
rapidamente dividir as águas, ou seja, por um lado fomentar a nova aliança
Hutu-Igreja Católica-administração belga, e por outro radicalizar e
marginalizar os Batutsi e o mwami, que a partir daí encaram quer a Igreja
Católica, quer a administração belga como inimigos da sua causa, causa essa que
se torna cada vez mais clara que só pode ser a independência e a criação de uma
monarquia. Por outro lado, para a facção tutsi a ONU é cada vez mais a única
aliada e a instituição que os pode levar à independência.
Esta radicalização atinge uma espécie de clímax em 1959. Primeiro, com a morte
do mwami Mutara III, na cidade de Bujumbura, nas vésperas da sua deslocação à
sede da ONU, para participar numa ronda de conferências sobre a independência
do Ruanda-Urundi. Morte que ficou envolta numa teia de rumores sobre um
presumível assassinato do rei. Aquando das suas exéquias em Kigali, o poder
tutsi, através dos conselheiros políticos da corte, os birus, elege um novo
mwami, Kigeri V, sem consultar a administração belga, no que ficou como uma
afronta ao poder colonial.
Segundo, algum tempo depois deste incidente, milícias bahutu iniciam uma
campanha de violência no norte do país contra as populações batutsi, seguindo-
se uma resposta igualmente violenta dos Batutsi, organizados em torno do mwami
e da sua aristocracia, e enquadrada pela UNAR. Nesta onda violenta de acção-
reacção a administração colonial belga, através das forças de segurança e do
exército, acabaria por intervir e actuar sobretudo contra as milícias da UNAR,
em parte desmantelando-as e destituindo as suas chefias, que na maioria eram os
chefes de chefferies e de sous-chefferies. Estes tumultos de 1959 provocaram o
primeiro grande movimento de refugiados batutsi, que se estima em cerca de
25.000.
Em 1960 a administração belga decide implementar uma nova reforma
administrativa no Ruanda. Desaparece a classificação de sous-chefferies, e no
seu lugar criam-se 229 comunas, e surgem 10 prefeituras. Ainda em 1960
organizam-se as primeiras eleições comunais, que o PARMEHUTU ganha com uma
esmagadora maioria de mais de 70% (Lugan, 1997, p. 406). Também em 1960, a
administração belga decide formar um governo provisório no Ruanda, oferecendo o
lugar de primeiro-ministro ao líder do PARMEHUTU, Grégoire Kayibanda. Nesse
mesmo ano, o mwami Kigeri V acaba por decidir-se pelo exílio.
No início de 1961, em face dos fortes desentendimentos entre a Bélgica e a ONU
sobre a data da realização das eleições legislativas no Ruanda13, a
administração colonial belga no Ruanda decide outorgar a autonomia político-
administrativa interna do território e confiar ao governo provisório a
administração e a preparação das eleições legislativas. O governo provisório
proclamaria pouco depois a independência unilateral e a criação da República do
Ruanda, a 28 de Janeiro de 1961, precisamente em Gitarama, onde se situava o
bastião e a base social de apoio primária do PARMEHUTU e do governo provisório.
Perante a impotência da ONU, e da potência tutelar, face ao "golpe de
Estado hutu", a Bélgica decide então realizar ainda nesse ano um
referendo sobre a monarquia e simultaneamente eleições legislativas, que seriam
novamente ganhas pelo PARMEHUTU, com mais de 70% dos votos. A Assembleia
Legislativa daí resultante redigiu então a Constituição da nova República e
elegeu Grégoire Kayibanda como primeiro presidente. A independência foi
declarada oficialmente a 1 de Julho de 1962.
Um mono-Estado, em diferentes sentidos
Em 1962, na altura da independência, calcula-se que a diáspora tutsi para o
estrangeiro, sobretudo o Uganda, se cifrava já em 100.000 pessoas. No exílio
(Uganda, Congo, Burundi, Tanzânia e Europa), as comunidades batutsi intentam
organizar vários movimentos de guerrilheiros, conhecidos por inyenzi, cujo
propósito é o de derrotar militarmente o regime, fazer regressar os refugiados
de 1959 e instaurar uma monarquia tutsi. Contudo, a sua acção incipiente e
desorganizada, quer a partir do Uganda, quer do Burundi, mais não faz do que
desencadear reacções violentas do governo contra as comunidades batutsi no
Ruanda14. Assim, a cada acção dos guerrilheiros inyenzi, as forças armadas
ruandesas respondem brutalmente contra as populações batutsi, como sucedeu
especialmente nos anos de 1963 e 1964. Por outro lado, este processo serviu de
leitmotiv para o governo ruandês ilegalizar a UNAR e o RADER, e perseguir os
seus dirigentes que ainda se encontravam no país.
Como reacção aos massacres, sobretudo de 1963 e 1964, uma parte considerável da
população tutsi fugiu para o exílio. Os números apontados para este êxodo
variam imenso, e por exemplo Bernard Lugan aponta a cifra de 200 a 300.000
refugiados (Lugan, 1997, p. 436), e André Guichaoua, citando um relatório da
ACNUR - Cruz Vermelha Internacional de 1964, fala mesmo em 336.000 (Guichaoua,
1995, p. 339). A guerrilha inyenzi desaparece nesse mesmo ano.
Resolvido o problema tutsi, o regime ruandês volta-se para si mesmo e inicia um
processo de purificação e regionalização interna. Instituindo um regime de
partido único, o PARMEHUTU. Ilegalizando a APROSOMA e perseguindo os seus
dirigentes; muitos deles são detidos, ou morrem misteriosamente. Por outro
lado, quer no aparelho do partido PARMEHUTU, quer no aparelho do Estado,
inicia-se um processo de regionalização, centrado na prefeitura de Gitarama,
núcleo do partido no poder, dando preferência aos Bahutu provenientes desta
prefeitura, em detrimento do resto do país, com particular incidência para a
prefeitura de Butare (centro de apoio da APROSOMA) e as prefeituras do norte,
Gisenyi e Ruhengeri. Deste modo, a clique dominante do PARMEHUTU, originária de
Gitarama, inicia um processo de controle hegemónico do partido-Estado e da
sociedade ruandesa, eliminando quer o "inimigo" tutsi, quer os
"inimigos" internos de outras prefeituras. Do ponto de vista do
desenvolvimento económico e social, o regime privilegiava sobretudo as regiões
do centro-sul, Kigali, Gitarama, Gikongoro.
No período entre 1964 e 1973, as relações entre Batutsi e Bahutu manter-se-iam
relativamente calmas. No entanto, do ponto de vista social, a situação era
completamente adversa para os Batutsi. Sem acesso ao ensino, a lugares
administrativos, e com uma grande repressão sobre os comerciantes batutsi,
estes viam-se subordinados a uma nova ordem sociopolítica, que não aceitavam, e
ciclicamente decidiam-se pelo exílio (sobretudo no Uganda e no Burundi).
A aparente acalmia na relação entre os dois grupos seria violentamente alterada
em Março de 1973. O regime hutu ruandês, bastante fragilizado por dissensões
internas, entre Bahutu de Gitarama e de outras prefeituras, e em profunda crise
económica, decide responder internamente aos violentos confrontos ocorridos no
Burundi (onde a minoria tutsi domina o Estado desde a independência),
confrontos esses nos quais se estima que cerca de 100.000 camponeses bahutu
foram massacrados pelo exército tutsi. O governo ruandês decide responder e
organiza uma série de massacres de população tutsi, com especial incidência nos
estudantes e professores universitários, funcionários do aparelho estatal e
comerciantes. Pela primeira vez, a comunidade internacional e a ONU reagem
violentamente contra o governo de Kayibanda. Aproveitando-se deste momento
difícil do governo, um grupo de militares originários das províncias do norte,
liderados por Juvenal Habyarimana, um oficial do exército da prefeitura de
Ruhengeri que tinha sido nomeado ministro da Defesa, organiza um golpe de
Estado.
Este golpe termina oficialmente com o regime da I República. O novo regime,
conhecido como II República, rapidamente institui uma nova ordem política,
ilegaliza o PARMEHUTU, elabora uma nova Constituição e inicia um novo ciclo de
partido único, o MRND (Mouvement Révolutionnaire pour le Développement). E a
história pós-período colonial volta a repetir-se. Desta vez são as gentes do
norte, das prefeituras de Gisenyi e Ruhengeri, que são privilegiadas no
aparelho administrativo, nas forças de segurança, nos negócios e na educação.
Políticos e intelectuais originários do sul, e partidários do PARMEHUTU, morrem
misteriosamente, como o ex-presidente Kayibanda15, fogem para o exílio, ou são
apenas marginalizados pelo regime. O poder de Estado e do partido único
concentra-se numa pequena clique pessoal e familiar em torno do Presidente e da
sua esposa, clique essa conhecida pelo nome de akazu, pequena cabana. O novo
regime, à semelhança do regime anterior, promove o regionalismo, em detrimento
da etnicidade.
Contudo, do ponto de vista económico, o país conhece neste período um enorme
desenvolvimento e modernização. O Estado, graças à cooperação internacional e
ao apoio do BM (Banco Mundial) e do FMI (Fundo Monetário Internacional),
investe na construção de infra-estruturas rodoviárias, sanitárias e
educacionais; na modernização e industrialização das principais produções
agrícolas, o chá e o café; e na crescente urbanização, necessária face à enorme
pressão demográfica no mundo rural16. Para evitar pressões e acusações da
comunidade internacional, o Estado institui um regime de quotas, que permite
aos Batutsi acederem, de modo controlado, ao sistema de ensino público e ao
aparelho administrativo e político. Aliás, no período de 1974 a 1990 a questão
tutsi parece estar resolvida no país, pois não existem relatos de massacres
significativos, e as comunidades batutsi recebem algum apoio do Estado.
No entanto, a partir de 1985, com a introdução de programas de ajustamento
estrutural e de liberalização económica, o país conhece uma progressiva
recessão económica, com uma acentuada queda das exportações, aumento do
desemprego, e um clima de denúncias de corrupção de Estado, e da akazu que
controla e domina quer o tecido político, quer económico. O regime intensifica
a repressão política e instala-se um mal-estar social generalizado.
Entretanto, em 1979, no Quénia, um grupo de refugiados batutsi de 1959/1963
funda um movimento político denominado RANU (Rwandese Alliance for National
Union), cujos principais objectivos são os de dar a conhecer internacionalmente
a condição de refugiados das comunidades batutsi no exílio e de pressionar o
governo ruandês para o retorno dos refugiados. Este movimento rapidamente
adquire aderentes em todas as comunidades de exilados espalhadas pelos países
limítrofes.
No Uganda, no final dos anos de 1970 e primeira metade dos anos 1980, o regime
do presidente Milton Obote desenvolve uma campanha contra as populações hima,
do centro do país, e contra as comunidades de refugiados batutsi, considerados
como seus parentes étnicos e aliados. Esse processo faz com que, na segunda
metade dos anos 80, uma grande quantidade de jovens batutsi, refugiados de
segunda geração no Uganda, se junte ao movimento rebelde armado de Yoweri
Museveni. Com a vitória de Museveni, estes jovens batutsi são guindados a
postos influentes nas forças armadas ugandesas, e adquirem uma enorme
experiência de guerrilha. Entre eles estão Fred Rwigyema e Paul Kagame.
Contudo, a influência tutsi junto de Museveni e a posição social que estes
Batutsi adquirem, faz reacender uma forte reacção dos outros grupos sociais
ugandeses, obrigando o próprio Presidente a distanciar-se deles e a destituí-
los dos seus cargos.
Este grupo de ex-militares ugandeses adere inicialmente à RANU, mas entra
posteriormente em dissensão por não estar de acordo com a linha mais
conservadora deste movimento que sempre optou por uma via negocial com o
governo ruandês para resolver a questão do regresso dos refugiados17. Ao
contrário, estes jovens ugandeses defendem uma via mais dura, militar, e criam
em finais de 1989 um partido político, o RPF (Rwandese Patriotic Front)18, ao
qual se juntam vários políticos da RANU, assim como jovens batutsi de vários
países da diáspora, e mesmo alguns bahutu dissidentes do regime do MRND19. O
RPF cria igualmente um braço armado, RPA (Rwandese Patriotic Army), cujos
guerrilheiros ficam conhecidos por inkontanyis20.
Neste contexto, o RPA lança, em Outubro de 1990, um violento ataque contra o
Ruanda, atacando principalmente as prefeituras de Byumba e Kibungo, na região
nordeste e leste do país. Este avanço militar do RPA só não sai vitorioso
devido à intervenção militar de pára-quedistas franceses, e de uma força da
guarda presidencial zairense, vindos expressamente para apoiar o regime de
Habyarimana. Apesar de derrotado, o RPA reorganiza-se no Uganda, continua a
lançar sucessivas ofensivas fronteiriças, e em 1991 chega mesmo a ocupar uma
pequena faixa no norte do Ruanda, nas prefeituras de Ruhengeri e Byumba21. Esta
guerra e os factos consequentes vieram demonstrar que os propósitos e
objectivos do RPF não eram apenas os de promover as condições do regresso dos
refugiados batutsi, mas sim constituíam uma estratégia para alcançar o poder e
o controle do Estado ruandês (Gichaoua, 1995, p. 243).
Ao mesmo tempo que tem que resolver esta nova questão, o regime de Habyarimana
sofre grandes pressões internacionais desde o final dos anos de 1980 no sentido
de operar mudanças políticas, acabar com o regime de partido único e instituir
um regime multipartidário. É a época dos ventos da transição para a democracia,
que varre certos sectores políticos ocidentais e atinge fortemente os regimes
ditatoriais ou de partido único africanos. Habyarimana, e a sua entourage
política, a akasu, vêem-se obrigados a ceder às pressões internacionais, e a
partir de 1991 o regime abre-se ao multipartidarismo. É elaborada uma nova
Constituição e constituído um governo de unidade nacional (governo de transição
democrática), e surgem em cena vários partidos, de entre os quais se destacam:
o MDR (Mouvement Démocratique Républicain), o PSD (Parti Social-Démocrate), o
PDC (Parti Démocratique Chrétien), o PL (Parti Libéral) e o CDR (Coalition pour
la Défense de la République). O CDR é na verdade um partido que resulta de uma
cisão no partido-Estado, o MRND, a partir de uma ala extremista ultra-hutu, que
vai incorporar alguns dirigentes do ex-partido único e elementos próximos da
akasu22.
A democracia e o genocídio foram forjados no mesmo cadinho
A ofensiva de 1 de Outubro de 1990 do RPA produziu um efeito ambíguo no regime
de Habyarimana. Se, por um lado, constituiu um dos factores decisivos para a
abertura política do regime, por outro lado motivou uma radicalização de certos
sectores extremistas bahutu (intelectuais, políticos e militares). Essa
radicalização, provocada pelo medo de perder o poder absoluto por parte de uma
minoria que controlava o aparelho de Estado, conduziu à formação do CDR e das
milícias populares extremistas, os interahamwe ("aqueles que combatem
juntos"), controladas pelo MRND, e provavelmente por membros da akazu. As
milícias interahamwe eram constituídas essencialmente por jovens desempregados
bahutu e enquadradas militar e politicamente por altos responsáveis do Estado e
das Forças Armadas. Estavam organizadas em grupos, com base na organização
administrativa das comunas, e em geral era o próprio bourgmestre, ou presidente
da comuna, o responsável máximo de cada grupo. Entre 1992 e 1993, os
interahamwe foram acusados de diversos massacres de comunidades batutsi,
sobretudo no norte, na província de Ruhengeri e no sul, na região de Bugesera.
Simultaneamente, o CDR, através do controle de alguns meios de comunicação
extremistas, nomeadamente da rádio Radio-Télévision Libre des Mille Collines e
do jornal Kangura, e de uma aliança estratégica com a tendência Hutu Power,
grupo de extremistas ligados ao MDR, lança uma fortíssima campanha diária anti-
Tutsi, provocando o reacender do sentimento étnico do "inimigo
tutsi", adormecido desde 1973.
Fortemente pressionado do ponto de vista internacional, o regime hutu do
presidente Habyarimana aceita participar em negociações com o RPF, cujos
principais objectivos são: 1) o estabelecimento de um cessar-fogo; 2) a
implantação de um regime democrático e do pluralismo político; 3) o retorno
total e incondicional de todos os refugiados; 4) a formação de um exército
único, conjugando e integrando as duas forças militares em confronto. Essas
negociações, que envolvem todos os partidos políticos ruandeses assim como o
RPF, iniciam-se em Arusha (Tanzânia), em Julho de 1992 (conhecidas como o
Protocolo I). Em Janeiro de 1993 é então assinado um memorandum de entendimento
entre as partes e um acordo de cessar-fogo (Protocolo II).
Contudo, estes acordos de Arusha nunca seriam implementados. Do lado do regime
ruandês há uma forte oposição a eles, por parte de uma coligação partidária
envolvendo o MRND, o MDR, o PL, o PSD e o PDC. O CDR sempre assumiu uma posição
de hostilidade e denúncia das negociações com o FPR. Bem ao contrário, a
assinatura dos acordos provoca mesmo uma radicalização do regime e uma
crispação nacional anti-Tutsi, fomentada pelos meios de comunicação pró-CDR, e
mais uma onda de massacres de comunidades batutsi perpetradas pelas milícias
interahamwe. Do lado do FPR essa radicalização é igualmente notória, e o
partido denuncia o acordo (em causa estava a questão do regresso total e
incondicional dos refugiados, que em 1990 se estimam em 379.00023) e lança uma
nova ofensiva, em Fevereiro de 1993. Esta segunda ofensiva, que chega a 25 km
da capital Kigali, é contrariada uma vez mais pela intervenção de tropas
francesas. No entanto, esta ofensiva tem o condão de forçar novas negociações,
e a assinatura de um segundo acordo, em Julho de 1993, agora sob os auspícios
da ONU. Nesse acordo estava prevista a criação de uma forca de verificação da
ONU, a UNAMIR (United Nations Assistance Mission in Rwanda)24.
Os acordos de Arusha nunca viriam a ser implementados por bloqueios constantes,
ora do RPF ora do MRDN e das facções extremistas bahutu, demonstrando assim que
o que estava em causa era a perpetuação do controle do Estado e da economia por
parte da clique hutu, e a conquista deste por parte do RPF.
Num outro sentido, é preciso entender que a radicalização destas forças
antagónicas também se encontrava bastante influenciada pela situação nos países
vizinhos, e em especial no vizinho Burundi. Neste país a situação política
estava bastante degradada, sobretudo após o atentado contra o presidente
Melchior Ndadaye, em Outubro de 1993, primeiro presidente hutu eleito
democraticamente e assassinado por extremistas do exército burundês, controlado
pela etnia tutsi desde 1963. No Ruanda, este facto vai cindir ainda mais a cena
política entre pró-Batutsi e pró-Bahutu, cisão essa que afecta todos os
partidos políticos e que deu aos extremistas bahutu um leitmotiv para atacarem
e radicalizarem as suas posições anti-Tutsi.
Em consequência, nos inícios de 1994 as milícias extremistas bahutu ruandesas
tornam-se cada vez mais activas, e são responsáveis por diversos assassinatos
de membros da oposição política interna, assim como de dirigentes de grupos de
direitos humanos e de jornalistas. Também aumentam significativamente os
ataques a comunidades batutsi. Os meios de comunicação extremista ruandeses, a
RTLMC e o jornal Kangura, começam a difundir constantemente mensagens claras a
apelarem ao extermínio de todos os Batutsi, considerados como aliados do RPF/
RPA. Estes meios de comunicação social chamavam pejorativamente aos Batutsi de
cafards("baratas"). Um relatório da UNAMIR, de Fevereiro de 1994,
fala claramente da existência de campos de treino para as milícias interahamwe,
e da distribuição de armas a estes grupos. Os observadores internacionais
(UNAMIR, corpo diplomático, ONG, etc.) sentem que existe algo em preparação, no
entanto todos se sentem incapazes de tomarem medidas concretas.
A 6 de Abril o presidente Habyarimana termina uma ronda de conversações, em
Dar-es-Salam, sobre a região Ruanda/Burundi. Nesse mesmo dia regressa a Kigali,
acompanhado de vários conselheiros governamentais, aproveitando uma boleia no
avião do presidente do Burundi, Cyprien Ntaryamira, que também seguia a bordo.
Por volta das 20.20, o avião presidencial faz-se à pista do aeroporto de Kigali
quando é atingido por dois mísseis (SAM 16 Gimlet). Por volta das 0.30 horas,
portanto já no dia 7 de Abril, a Rádio Télévision Libre des Mille Collines
anuncia a morte do Presidente, acusa o RPF/RPA do atentado, e incita os Bahutu
a "cumprirem o seu dever patriótico, e a realizarem uma umuganda
(trabalho comunitário obrigatório)". Imediatamente, grupos de
interahamwe, munidos de listas de nomes25 e enquadrados por forças do exército
e da polícia, colocam várias barreiras, check-points, em quase todos os bairros
da capital, atacando selectivamente as casas dos principais oponentes políticos
do regime, quer sejam de origem hutu ou tutsi. Poucos são aqueles que conseguem
escapar, em face da eficiência do ataque, da surpresa, da organização e
disciplina das milícias e da hora nocturna.
É na noite de 7 de Abril de 1994 que o genocídio começa verdadeiramente.
Primeiro, através da eliminação de centenas de Bahutu, oponentes políticos e
críticos do regime, e seus familiares. Depois, uma vez concluído este processo,
as milícias interahamwe iniciam o processo de eliminação dos Batutsi, processo
este que um dirigente governamental apelidaria publicamente de solução final, à
semelhança do holocausto judeu. O método utilizado era exactamente o mesmo por
toda a parte: procurar os Batutsi (ou através de listas já elaboradas, ou
através de denúncias de vizinhos, amigos, etc.), e chaciná-los onde quer que se
encontrassem (igrejas
26
, escolas, casas, barreiras nas ruas, etc.). As directrizes para as milícias
eram bem claras, "matar todos os Batutsi, velhos ou crianças".
Primeiro em Kigali, depois por todo o país, durante 90 dias infernais, calcula-
se que entre 750.000 a 1 milhão de Batutsi foram selvaticamente massacrados.
Ao mesmo tempo, e logo a partir do dia 7 de Abril, o RPA (que entretanto tinha
colocado cerca de 600 homens armados em Kigali, com base nos acordos de Arusha)
inicia uma guerra civil contra as forças governamentais. Primeiro em Kigali,
através dessa pequena força, que aos poucos foi ocupando alguns bairros da
capital. Logo de seguida inicia-se a invasão do grosso das tropas do RPA, a
partir do Uganda, onde a maioria dos seus guerrilheiros se encontravam
acantonados. Progressivamente o RPA conquista as províncias a leste do país,
Byumba e Kibungo, e cerca Kigali, que tomba em seu poder a 4 de Julho,
colocando assim um fim ao genocídio na capital. O restante território foi
tombando sucessivamente nas mãos do RPA e em 27 de Julho, Gisenyi, a ultima
cidade em poder das forças governamentais, acaba igualmente por se render à
guerrilha tutsi.
A partir deste movimento militar vitorioso do RPA, cria-se uma onda de milhares
de refugiados bahutu, primeiro das províncias de Byumba e Kibungo, neste último
caso sobretudo na direcção da vizinha Tanzânia, e, depois da queda da capital,
em direcção ao Zaire. O movimento de refugiados conta não somente com milhares
de civis, mas igualmente com uma parte do desmantelado exército governamental,
e das milícias interahamwe, que vão fugindo à medida que o RPA avança na
direcção das fronteiras do noroeste e sudoeste do país, precisamente a zona de
fronteira com o Zaire. Com este movimento formam-se então os campos zairenses
de refugiados bahutu em Bukavu, a sul do lago Kivu, e em Goma (Zaire). Por
outro lado, formam-se no interior do Ruanda dezenas de pequenos campos de IDP
(Internally Displaced People).
Finalmente, uma última palavra sobre o papel da comunidade internacional27
nesta derradeira etapa da história do genocídio e da guerra civil no Ruanda.
Impotente para compreender os factos, e actuar em conformidade com o seu
estatuto, a dita comunidade internacional decidiu retirar-se do Ruanda,
exactamente no momento em que a sua presença era mais necessária. A Bélgica e a
Franca decidiram retirar os seus cidadãos logo no início do genocídio (operação
conhecida por Silver Back - nome dado aos famosos gorilas da montanha). A
própria Bélgica decidiu igualmente retirar o seu contingente de capacetes
azuis28. Face à retirada dos capacetes azuis belgas, em Maio o Conselho de
Segurança da ONU decidiu retirar a UNAMIR. Contudo, a 22 de Junho, o Conselho
de Segurança votou uma moção que atribuía à França um mandato de intervenção
humanitária, denominado Opération Turquoise, já mesmo no final do genocídio e
da guerra civil. As tropas francesas, que tinham estado sempre do lado do
regime de Habyarimana desde o início das hostilidades com o RPA, em 1990,
acabaram por ter um papel preponderante, primeiro, ao ajudarem o derrotado
exército governamental e as milícias interahamwe a fugirem do Ruanda (com
armamento incluído), e em segundo ao criarem, no interior do país, zonas
humanitárias (campos de IDP), que serviram de refúgio a muitos planificadores e
executantes do genocídio.
Uma espécie de regresso ao passado
A vitória do RPF encerrou um ciclo da história pós-colonial do Ruanda, e abriu
um novo ciclo, num contexto social, político e económico profundamente marcado
pelas dinâmicas e consequências do genocídio e da guerra civil, e com o Estado
completamente desmantelado. Por um lado, o êxodo hutu para o Zaire provocou a
derrocada completa do aparelho estatal ruandês. Por outro, a guerra civil e o
genocídio deixaram o país numa situação de profundo traumatismo social e de
profunda disfunção económica. Pode afirmar-se que nessa fase o país encontrava-
se economicamente: a) na dependência total da assistência internacional; b) em
ruptura das estruturas produtivas de bens de consumo e de serviços (estatais,
privados e domésticos); c) obrigado a canalizar os poucos recursos disponíveis
para a esfera humanitária, em detrimento da esfera de desenvolvimento.
Do ponto de vista da estrutura social a situação alterou-se profundamente. Além
da ruptura étnica entre Batutsi sobreviventes do genocídio e a restante
população hutu, o país via regressar cerca de um milhão de refugiados batutsi,
nomeadamente do Uganda e do Burundi. Os Batutsi vindos do Uganda,
essencialmente pastores, instalaram-se na faixa leste do país, sobretudo na
prefeitura de Kibungo, zona de predominância hutu, ocupando vastas áreas com as
suas enormes manadas de gado bovino, e alterando o tecido social da região. Os
Batutsi burundeses instalaram-se principalmente nas áreas urbanas. Dada a sua
maior qualificação educativa e profissional, ocuparam lugares relevantes no
exército e na polícia, no aparelho estatal e no sector económico privado,
sobretudo no comércio. Face a este novo cenário social, os Batutsi residentes
no Ruanda e sobreviventes do genocídio continuaram numa posição desfavorecida,
agora até em relação aos seus outros irmãos batutsi.
A partir de Fevereiro/Março de 1995 este panorama político-social modificou-se
substancialmente, ainda a um ritmo lento e tímido durante o resto do ano, e de
modo mais significativo a partir de 1996. Essa mudança permitiu aos poucos uma
melhor compreensão da verdadeira natureza do regime: de raiz militarista e de
dominação tutsi. Foram várias as razões que concorreram para esta mudança. Em
primeiro lugar houve uma deterioração progressiva da segurança interna. O
regime hutu deposto em 1994 começou a reorganizar-se a partir dos campos de
refugiados no Zaire, sobretudo nos da região de Goma, no Norte Kivu. Nos finais
de 1994 surgiu um partido político, o Rally for the Return and Democracy in
Rwanda, que começou a reorganizar a resistência hutu a partir dos campos, e a
armar e treinar o antigo exército e as milícias interahamwe, para acções de
guerrilha. As acções desta guerrilha foram intensificando-se ao longo do ano de
1995. Começando por actuar nas prefeituras de Gisenyi e Ruhengeri, nos finais
de 1995 os guerrilheiros já actuavam em todas as prefeituras fronteiriças do
Zaire, e conseguiam mesmo realizar alguns raides na prefeitura de Kigali Rural,
no centro do Ruanda. Os alvos eram sobretudo Batutsi sobreviventes do genocídio
e também membros do aparelho de Estado ao nível local, a maioria dos quais
Bahutu.
Este rápido incremento das acções da guerrilha hutu, a partir dos campos de
refugiados do Zaire, provocou reacções do exército governamental para com as
populações camponesas bahutu, acusadas de cumplicidade com os guerrilheiros, e
simultaneamente aumentou as clivagens políticas e sociais entre Bahutu e
Batutsi em geral29. Com o pretexto de combater a guerrilha hutu, os militares e
os políticos batutsi foram implementando um regime político semi-militarista,
claramente dominado por membros desta etnia. Em segundo lugar, a pressão social
e política exercida pelos civis batutsi sobre os militares e políticos foi-se
acentuando. Por um lado, existia uma pressão de cariz económico que se traduzia
na prática numa pressão judicial. Os Batutsi, quer os novos grupos retornados
do exílio, quer os sobreviventes do genocídio, procuravam alcançar vantagens
económicas tais como terras de cultivo ou pastoreio, casas, negócios, lugares
no aparelho de Estado, etc., detidas por Bahutu. As formas mais rápidas e
eficazes de o conseguirem era acusarem os seus proprietários de terem
participado no genocídio30.
Estas clivagens sociais de expressão étnica viriam a assumir um carácter
público a partir de meados de 1996. Por essa época, com o intensificar da
perseguição às populações de origem tutsi no Zaire, o discurso oficial foi
acompanhando a radicalização da componente tutsi do regime político ruandês. A
utilização dos etnónimos Hutu e Tutsi, até então proibidos na linguagem formal
do regime em detrimento do conceito unificador de ruandês, tornou-se uma
constante, quer entre os membros do aparelho de Estado, quer entre a população
civil.
Do ponto de vista político, em 1996 já o novo regime ruandês mostrava sinais
evidentes de que a famosa reconstrução nacional não era uma prioridade. Mesmo
ao nível dos grupos dirigentes eram notórias as clivagens de expressão étnica,
e o regime assumia cada vez mais a sua natureza militarista e pró-Tutsi. Vários
dirigentes governamentais bahutu eram forçados a demitirem-se, e mais tarde
acabavam por ser acusados de participarem no genocídio. Dos mais destacados
entre eles contam-se os dois primeiros-ministros pós-genocídio, Faustin
Twagiramungu e Pierre Célestin Rwigema, e o próprio presidente Pasteur
Bizimungu. Tornava-se cada vez mais evidente que neste novo regime político
pós-genocídio os dirigentes bahutu eram figuras de fachada, pois o poder era
realmente detido por Batutsi.
Por outro lado, os campos de refugiados no Zaire constituíram desde sempre um
nicho para a guerrilha hutu, e portanto uma séria ameaça à segurança interna do
novo regime político ruandês pós-genocídio. Claro que o problema era bem mais
vasto, uma vez que os campos constituíam um factor de desequilíbrio para toda a
região. Foram aliás estas as conclusões da conferência regional de Bujumbura,
em Fevereiro de 1995, sob os auspícios da ainda OUA (Organização de Unidade
Africana) e do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados).
Desta conferência saiu a conclusão de que os Estados da região e as
organizações internacionais deviam cooperar para facilitar o retorno dos cerca
de 2,7 milhões
31
de refugiados bahutu ruandeses e burundeses. Os governos do Ruanda e do
Burundi desde o início que pediram sistematicamente que os campos fossem
desmantelados. A pressão maior vinha da parte do governo do Ruanda, porque os
refugiados eram maioritariamente Bahutu ruandeses32 que para além de
constituírem uma crescente ameaça à sua segurança interna, entre eles
encontrava-se a grande maioria dos responsáveis pelo genocídio de 1994. Apesar
dos esforços das organizações internacionais, que organizavam campanhas de
sensibilização aos refugiados no sentido de os convencerem a regressarem ao
Ruanda, o certo é que essas campanhas pouca eficácia tinham. A razão principal
residia no domínio que os responsáveis bahutu exerciam sobre os refugiados. Os
campos estavam organizados em círculos concêntricos, com as camadas externas
ocupadas por refugiados vulgares que serviam de autênticos cinturões
protectores aos círculos mais internos, bastiões do poder militar e político
hutu.
Face à incapacidade demonstrada pelas organizações internacionais para tomarem
uma resolução apropriada para resolverem a questão dos campos de refugiados, o
regime político-militar ruandês sempre teve presente que a resolução passaria
muito por uma iniciativa própria. Consciente de que a pressão sobre as
organizações internacionais era por si só insuficiente, a partir dos primeiros
meses de 1995 o exército ruandês foi desenvolvendo acções militares pontuais
sobre os campos: infiltração de agentes do Estado, pequenos ataques por grupos
de comandos, bombardeamentos selectivos, etc. Contudo estas acções não impediam
que o antigo exército hutu e as milícias se organizassem e desenvolvessem
acções dentro de território ruandês. A progressiva escalada das acções destes
grupos bahutu, ao longo dos anos de 1995 e 1996, cimentaram no regime ruandês a
convicção de que a aniquilação desta guerrilha, cada vez mais incómoda, só
seria possível através de uma acção militar directa, e em larga escala, aos
campos de refugiados no Zaire. Mas esta acção não podia desenrolar-se
abertamente, primeiro porque seria vista, do ponto de vista humanitário, como
um atentado aos desprotegidos refugiados civis; em segundo lugar seria vista
como uma invasão de fronteiras e por conseguinte uma agressão internacional do
Ruanda contra o Zaire. O regime político ruandês estava bem consciente das
implicações e das reacções que um tal acto iria provocar internacionalmente.
O modo de ultrapassar este problema foi ironicamente oferecido pelas próprias
autoridades políticas zairenses com o "affair Banyarwanda".
Banyarwanda é uma expressão que significa literalmente "os falantes de
kinyarwanda" (língua do Ruanda), e que se aplica quer às populações
ruandesas, quer às populações falantes de kinyarwanda emigradas33 nos países
fronteiriços, sobretudo no Uganda e na República Democrática do Congo (ex-
Zaire). Neste último país, estas populações encontram-se sobretudo na faixa
fronteiriça ao norte e sul do lago Kivu, e são compostas por grupos de Batutsi,
Bahutu e Batwa.
A história local destas populações varia também segundo algumas clivagens
étnicas originais. Assim, enquanto que as populações de origem hutu se
integraram aos poucos nos grupos locais (através de casamentos, por exemplo), e
foram perdendo alguma identidade cultural e linguística ruandesa, as populações
batutsi foram mais resilientes nesta integração, tendo privilegiado os
casamentos endogâmicos e a identidade cultural e linguística. Por outro lado,
estas populações batutsi, sobretudo as que habitam na região do Sul Kivu,
conhecidas por Banyamulenge34, desenvolveram algum predomínio económico sobre
outros grupos vizinhos, primeiro pelo facto de serem criadoras de gado, e por
participarem e controlarem as redes do comércio de ouro de Uvira.
Estas populações banyarwanda mantiveram relações cordiais com outros grupos
locais, e mesmo com o Estado congolês, até ao advento da rebelião mulelista de
196435. Nessa altura, os Banyamulenge opuseram-se aos princípios pró-comunistas
dos rebeldes e aliaram-se ao denominado Exército Nacional Congolês, de Mobuto
Sesse Seko. A partir dessa época a relação com o Estado zairense e com os
outros grupos locais foi-se progressivamente deteriorando. Em 1972 saiu uma
legislação sobre a nacionalidade zairense, na qual se estabelecia que eram
considerados zairenses apenas os indivíduos de proveniência ruandesa que
habitassem no Zaire antes de 1 de Janeiro de 1950. Contudo, em 1981, o
parlamento zairense aprovou uma nova legislação que retirava as prerrogativas
anteriores, e conferia a nacionalidade zairense apenas a quem provasse que os
seus ascendentes viviam na região antes da Conferência de Berlim. Desde essa
época os Banyarwanda foram na generalidade considerados estrangeiros, e
impedidos de ocuparem cargos públicos.
Com o estabelecimento dos campos de refugiados bahutu, estas populações
banyarwanda, sobretudo as de origem tutsi, passaram a ser ainda mais
hostilizadas e perseguidas. Os refugiados bahutu conseguiram instrumentalizar
membros do exército zairense, do aparelho de Estado e a população em geral (com
a formação das milícias Mai-Mai), num movimento persecutório contra os
Banyarwanda. As primeiras populações a sofrerem foram as do Norte Kivu, nas
regiões de Masisi e de Rutshuru. Na primeira metade de 1996, e em consequência
destes ataques, algumas dezenas de milhares de Batutsi fugiram para o Ruanda.
A guerra banyamulengue e a morte nos campos de refugiados do Kivu
No rescaldo do affair dos Banyarwanda do Masisi, por volta do mês de Maio/Junho
de 1996, em Kigali começaram a circular rumores de que as autoridades zairenses
do Sul Kivu, lideradas pelo comissário de Uvira, Sheweka Mutabazi, estavam a
organizar acções contra os Banyamulenge de origem tutsi. Entre essas acções
incluía-se a elaboração de listagens das propriedades e do gado, a serem
expropriadas. Os rumores deram rapidamente lugar às certezas, com a ONG local
Groupe Milima, dirigida por um banyamulenge, Muller Ruhimbika, e a Amnistia
Internacional a denunciarem vários tipos de atrocidades contra estas
populações. O governo ruandês anunciou então que não iria deixar passar em
claro esta nova inventiva contra os irmãos, e que tomaria acções concretas36.
Ao contrário do que sucedeu no caso dos Banyarwanda do Norte Kivu, que não
ofereceram nenhuma resistência quando foram atacados, os Banyamulenge
organizaram-se militarmente, resistindo ao exército zairense. Em Setembro desse
ano de 1996, os confrontos desenrolaram-se em torno da cidade de Uvira, que
tombou nas mãos dos Banyamulenge no final do mês. Após a conquista da cida de,
a guerrilha banyamulenge dirigiu-se para norte, com o objectivo de atacar os
campos de refugiados bahutu e a cidade de Bukavu.
Nesse momento, o governo zairense de Mobuto Sesse Seko e alguns Estados
europeus, entre eles a França, acusaram o Ruanda e o Burundi de estarem na
retaguarda da guerrilha. O primeiro fornecendo homens e armamento, o segundo
permitindo que a guerrilha criasse bases no seu território. Apesar de o regime
ruandês ter sempre negado qualquer participação, e defendido que se tratava de
uma questão interna zairense, o certo é que para alguns observadores era
evidente que o regime estava fortemente implicado, apesar de em Setembro de
1996 ainda não ser perfeitamente claro quais as verdadeiras dimensões e
propósitos desse envolvimento. Contudo, à medida que a guerrilha avançava para
norte e atacava os campos de refugiados bahutu, ruandeses e burundeses, do sul
do Kivu, tornavam-se cada vez mais evidentes os sinais do envolvimento
ruandês37 e os seus propósitos. Para o regime ruandês, sob a capa de defender
os irmãos tutsi banyamulenge, esta era a oportunidade única de atacar os campos
de refugiados e aniquilar a guerrilha hutu.
Contudo, apesar de os campos constituírem a principal agenda do governo
ruandês, cedo se tornou perceptível que o exército zairense era incapaz de
travar militarmente a progressão dos rebeldes banyamulenge. Este facto ficou
comprovado com a tomada da cidade de Bukavu, ainda em Outubro de 1996. Alguns
grupos da oposição zairense ao regime de Mobuto Sesse Seko começaram então a
negociar com o regime ruandês no sentido de se constituir uma frente única que
derrubasse o ditador. Entre esses grupos pode destacar-se as iniciativas do RNS
(Rally for a New Society) e da OAPSK (Organisation des Associations Paysannes
du Sud Kivu).
É desta conjugação de forças e interesses que nasce a ADFLC-Z (Alliance
Démocratique des Forces de Libération du Congo-Zaire). Para a oposição zairense
a ADFLC-Z constituía um excelente meio de derrubar o regime de Mobuto Sesse
Seko, para os Banyamulenge significava a ascensão ao poder no novo Zaire, e
para o Burundi e o Ruanda, sobretudo para este último, era a possibilidade de
levar a cabo os seus objectivos de desmantelar os campos de refugiados e de
aniquilar as guerrilhas bahutu, sem ser acusado de agressão externa38. A
escolha de Laurent-Desiré Kabila para líder da ADFLC-Z parece ter resultado da
necessidade de apresentar um líder verdadeiramente zairense, com longo passado
de oposição a Mobuto Sesse Seko.
Os desenvolvimentos que se seguiram são bem conhecidos. Sem uma oposição
credível, a ADLFC-Z foi avançando para o Norte Kivu, atacando e desmantelando
os campos de refugiados bahutu, e obrigando cerca de 700.000 mil a regressarem
ao Ruanda, em Novembro de 1996, prosseguindo depois a sua marcha vitoriosa até
à capital Kinshasa. Em 17 de Maio de 1997 Laurent-Desiré Kabila autoproclamou-
se presidente da República Democrática do Congo. Uma vez no poder, talvez
pressionado pela necessidade de estabelecer alianças políticas nacionais,
rapidamente acedeu aos sentimentos anti-Tutsi característicos da maioria da
sociedade política e civil zairense, e fomentou uma autêntica campanha contra
os Banyamulenge, recusando-lhes mesmo a nacionalidade zairense. No mesmo
sentido, o novo homem forte da RDC expulsou todos os cooperantes militares
ruandeses. Nessa campanha o novo poder na RDC levou a cabo uma autêntica
depuração étnica no exército, perseguindo e executando soldados banyamulenge e
substituindo as chefias kadogo (nome atribuídos aos militares que não era
katangueses) por homens da sua região natal39.
Em consequência deste processo de formação do novo Estado congolês, sectores
kadogo do exército e da própria ADFLC-Z, opostos ao Presidente e apoiados pelo
Ruanda e o Uganda, criaram em 12 de Agosto de 1998, na cidade de Goma, um
movimento armado de oposição, denominado RCD (Rassemblement Congolais pour la
Démocratie), liderado por Wamba Dia Wamba. A entrada em cena deste movimento
marca o início de um novo conflito armado, cuja internacionalização tem
envolvido países da região.
Este artigo não pretende analisar este conflito, cuja dimensão regional e
internacional é bem complexa, assim como os desenvolvimentos posteriores,
gerando um dos mais violentos e mortais conflitos da história contemporânea
africana.
Estilo epílogo
Neste artigo pretendeu-se demonstrar que a história do Ruanda no pós-período
colonial não se restringe a uma visão simplista de uma sucessão de conflitos
étnicos entre duas etnias distintas e rivais, como usualmente surge relatado,
mas sim à história de sucessivos processos de luta pelo controle hegemónico do
poder de Estado, na qual grupos sociais em oposição utilizam diferentes formas
de identidade social colectiva, por vezes de cariz étnico, outras de cariz
regional, enquanto recurso político para a conquista, e forma legitimada para a
manutenção desse controle do Estado.
O genocídio de 1994 acaba por ser a nefasta conclusão lógica de todo um
processo de massacres, iniciado em 1959, em que a população tutsi foi
sistematicamente utilizada como bode expiatório de diferentes facções bahutu,
em luta pela conquista do Estado. O que sempre esteve em causa, desde a
independência, não foi uma visão etnicizada da questão política, mas antes uma
visão absolutista e hegemónica do poder político, que sempre utilizou recursos
discursivos étnicos como catalisador de violências contra outros grupos em
concorrência pelo mesmo poder. A história dos massacres ruandeses, desde 1959,
não envolveu apenas os Batutsi enquanto vítimas, mas todos aqueles que se
opuseram aos diferentes regimes bahutu, fosse por razões políticas, regionais,
ou outras.
O regime tutsi actual padece igualmente da mesma visão absolutista e
hegemónica, e utiliza o mesmo tipo de discurso étnico, agora pró-Tutsi, para
justificar e manter o seu controle do Estado. É bem verdade que, em certa
medida, o discurso actual até soa legítimo, pois ele parece "representar
a voz das vítimas de um horroroso genocídio". Mas nem as verdadeiras
vítimas, isto é, os poucos sobreviventes batutsi do genocídio, acabaram
favorecidas nesta nova situação, nem a atitude do regime, dominado por Batutsi
refugiados no estrangeiro, para com a população hutu se mostra diferente da que
tinham os antigos dirigentes bahutu. A ruptura étnica atinge hoje verticalmente
a totalidade da sociedade ruandesa, mas ela beneficia apenas aqueles que detêm
o poder de Estado.
Parece ser essa mesma necessidade de manter a todo o custo o controle do
Estado, que tem impelido o novo poder político pró-Tutsi a utilizar todas as
armas para aniquilar o inimigo hutu. A estratégia ruandesa de atacar aos campos
de refugiados fez parte de uma estratégia mais global de controle da
resistência hutu e de manutenção do controle do Estado ruandês. Essa estratégia
acabaria indirectamente por provocar não só o desaparecimento dos campos mas do
regime de Mobuto Sesse Seko. E este tempo e modo despoletaram consequências
específicas e indeterminadas, não só para a RDC, mas para toda a região.