Islão Ambivalente: A construção identitária dos muçulmanos sob o poder colonial
português
Islão Ambivalente: A construção identitária dos muçulmanos sob o poder colonial
português
Mário Artur Machaqueiro*
*CRIA - Centro em Rede de Investigação em Antropologia / FCSH-UNL
maarma@fcsh.unl.pt
Abstract
This article wishes to contribute to the study of the historical processes that
have been spotting Muslim populations as favourite targets for political
analysis and governance. Based on Portuguese and French archives, the article
tries to uncover the most conspicu ous identity representations that ideologues
and members of Portuguese colonial staff built around the Islamic communities
of Guinea-Bissau and Mozambique. It shows how those images were related to
strategies designed for ruling Muslim populations within the colonialist frame,
especially after the outbreak of colonial wars. The main argument of this text
is that the semi-peripheral position of Portugal in the world-system gave its
identity representations and strategies, namely those regarding colonized
Muslims, a character that was deeply ambivalent.
Keywords: Islam, Muslims, Portuguese colonialism, colonial war, identities,
ambivalence
Este artigo debruça-se sobre a forma como o poder colonial português
administrou o Islão no plano material e no plano simbólico, focando
especialmente o período das guerras coloniais na Guiné-Bissau e em Moçambique
(1963-1974), duas regiões onde os grupos muçulmanos tinham (ou podiam ter) uma
especial relevância para as estratégias de preservação do sistema de poder.
Deter-me-ei nas representações identitárias que diversas figuras do aparelho
colonial construíram em torno desses grupos. As políticas por elas inspiradas
estarão também no centro da minha atenção. Tentarei relacionar a dimensão
imagética, cultural e politicamente elaborada, com as estratégias mais gerais
por meio das quais certos portugueses imaginaram a sua própria identidade
nacional, como "europeus" e como povo "colonizador" ou "imperial".
É possível distinguir, ainda que a traço grosso, dois tempos nas relações do
colonialismo português com o Islão e com as populações muçulmanas. Dos anos 40
do século passado, e mesmo antes, até à primeira metade do período da Guerra
Colonial (1961-1965), os muçulmanos foram percepcionados, predominantemente,
como ameaçadores e incontroláveis. Ideólogos, missionários católicos,
militares, agentes da polícia política e antropólogos ao serviço do sistema
colonial descreveram como os muçulmanos estavam empenhados em derrubar o poder
português e em consagrar os objectivos do "pan-islamismo". Nesta perspectiva,
as populações "animistas" da Guiné e de Moçambique eram consideradas como
aliados potenciais dos interesses coloniais. Contrariamente ao Islão, visto
como impermeável aos valores portugueses ("ocidentais"), as religiões "nativas"
africanas não eram levadas a sério pela ideologia colonialista. Pensava-se, por
isso, que os "animistas" seriam muito mais influenciáveis pela pregação
católica e pela propaganda oficial do regime.
O final dos anos 60 assistiu a uma reviravolta importante nestas concepções.
Tal deveu-se a uma curiosa conjugação de factores. Por um lado, os novos ventos
ecuménicos do Concílio Vaticano II levaram a que certas figuras da Igreja
Católica em Portugal encetassem uma aproximação às comunidades muçulmanas,
renunciando tacticamente a uma evangelização mais agressiva. Em Moçambique esta
reorientação foi protagonizada, a partir de 1966, pelo então Bispo de Vila
Cabral (actual Lichinga), D. Eurico Dias Nogueira, e sabemos hoje que ela teve
o apoio discreto do Ministério do Ultramar e do próprio Salazar2. Do lado da
administração propriamente dita, a nova estratégia foi também adoptada graças
ao conhecimento entretanto adquirido que se começou a disseminar entre os
"especialistas", em grande parte devido à actuação de uma figura singular:
Fernando Amaro Monteiro. Orientado pelos serviços de intelligence, aos quais
Amaro Monteiro pertenceu, e adoptado pelo Governo-Geral de Moçambique, o novo
rumo pautou-se por privilegiar uma aliança com as lideranças muçulmanas locais,
no pressuposto de que estas haviam ganho gradualmente a consciência do que
teriam a perder em futuras nações africanas reguladas por regimes marxistas
"ateus". A isso acrescia a constatação de que os "animistas" estavam a aderir,
em crescente número, aos movimentos nacionalistas, ficando assim perdidos para
a "causa" portuguesa (Cruz, 1968; Vieira, 1971). Esta nova perspectiva de
enquadramento do Islão foi, portanto, motivada essencialmente por factores
pragmáticos: provocar um desequilíbrio de forças favorável à posição portuguesa
no quadro da guerra que se estava a travar.
As duas etapas na abordagem colonial dos muçulmanos não estiveram, na verdade,
separadas por uma fractura intransponível. Foram várias as continuidades da
primeira para a segunda. Além disso, nenhuma se mostrou verdadeiramente
unidimensional: em cada uma coexistiram imagens opostas do "muçulmano",
positivas e negativas. Cada uma foi, pois, marcada pela ambivalência, entendida
aqui como a flutuação dos afectos, de amor/ódio, entre os pólos por eles
investidos. É ela que constitui o objecto das análises que se seguem.
Islão e negros africanos: uma afinidade "natural"
A construção portuguesa do "muçulmano ameaçador" remonta, pelo menos, ao século
XIX, quando os portugueses se viram obrigados a legitimar as suas pretensões
imperiais em África e a definir o seu lugar dentro do novo projecto
colonialista europeu, ocupando efectivamente as possessões territoriais de
Guiné, Angola e Moçambique (Telo, 1994). Já no seu famoso relatório de 1893,
António Enes citava, entre as causas do atraso de Moçambique, "a invasão,
incessantemente renovada, da província pelos Asiáticos, densos e vorazes como
os gafanhotos (...) e que nem servem, como esta praga, para adubar o solo que
devastam" (Enes, 1946, p. 51). O tema da "praga", aqui associado à
"esterilidade", é um artefacto retórico muito frequente quando se trata de
pintar o "outro" com as colorações mais negativas. Uma variante metafórica
desse tema, usada por Enes, é a do alastramento vegetal imparável, imagem desta
feita aplicada a uma facção desses incómodos asiáticos, aquela que correspondia
precisamente aos muçulmanos (Enes, 1946, p. 212).
Assim, no discurso de Enes já eram bem notórios muitos dos lugares comuns da
retórica islamofóbica sobre a influência muçulmana em África, posteriormente
reproduzidos por tantos ideólogos e antropólogos coloniais. De acordo com uma
vertente do "darwinismo social" em voga nos finais do século XIX, a alegada
"simplicidade" do Islão estava em sintonia com o "tipo antropologicamente
inferior" a que correspondiam os negros africanos (Martins, 1978, p. 262),
ajustada, portanto, às suas limitações "naturais" (Enes, 1946, p. 214).
Esta essencialização do Islão, enquanto religião congenial aos africanos,
estava tão enraizada no imaginário colonialista que a encontramos em textos
produzidos na fase final do domínio português em África, como, por exemplo,
nesta Informação de 1967 emitida pela delegação da PIDE em Moçambique:
Em flagrante contraste com a Religião Católica e duma maneira mais lata com as
religiões cristãs, a teologia islâmica reveste-se de um carácter simplista.
[...] O islamismo não exige dos fiéis uma adesão ao conceito metafísico da
vida, mas apenas que pautem a sua existência de acordo com normas de carácter
mais pragmático do que moral, rejeitando simultaneamente o princípio cristão do
destino ascensional do Homem3.
A competição de poder que opunha a administração portuguesa à influência
islâmica retirava algum ganho simbólico da desvalorização retórica do Islão
sempre que o comparava às "virtudes" do cristianismo. Uma tal imagem
identitária poderia receber uma legitimação "científica" ao se transferir a
afinidade "natural", quase pseudobiológica, entre o Islão e a África negra para
uma conexão mais "cultural". A antropologia veio servir esse desígnio. José
Júlio Gonçalves, que fez parte da sua carreira académica no seio da antiga
Escola Colonial, entretanto rebaptizada como Instituto Superior de Estudos
Ultramarinos, publicou em 1958 um estudo que foi considerado, durante vários
anos, a única referência de autoridade sobre o Islão na investigação científica
portuguesa (Macagno, 2006, p. 90; Vakil, 2004, p. 26). Este texto estava
impregnado de preconceitos e estereótipos, a começar pelos que essencializavam
a ligação dos negros africanos ao Islão. Essas ideias vinham, no entanto,
envernizadas com um toque etnologista: "Certas afinidades entre o modus vivendi
dos muçulmanos do Norte de África e da Arábia e o dos negros africanos dão um
maior poder de penetração ao Islamismo" (Gonçalves, 1958, p. 69). Neste
particular, para explicar por que motivo a religião islâmica havia sido tão bem
sucedida em África, Gonçalves recorria a um tema sexual que parecia obcecar
estes "islamólogos", traindo as suas ansiedades quando confrontados com a
sexualidade aparentemente "aberta" das populações negras: eis que o Islão
tolerava a poligamia como uma instituição africana milenar, e, segundo os
"especialistas", essa razão maior esclarecia o laço supostamente natural entre
os negros e a religião de Maomé.
Em tudo isto, os ideólogos portugueses seguiam de perto os trilhos
argumentativos de outras tradições coloniais, e, mais particularmente, da
escola francesa, que opunham um "Islão negro", "superficial", "ignorante" e
"sincretista", a um "verdadeiro" e "profundo" Islão indiano/asiático/árabe,
considerado a principal, se não a única fonte da cultura islâmica em África,
não reconhecendo assim as redes especificamente africanas que, séculos antes,
tinham sido responsáveis pela difusão e pela expansão do Islão nas regiões
subsaarianas (Bonate, 2007, pp. 9-12; Dias, 2005; Froelich, 1962; Gouilly,
1952; Harrison, 1988, pp. 94-117; Triaud, 2006, pp. 276-277).
Duas personagens identitárias são discerníveis nesta construção do "Islão
Negro": o "verdadeiro muçulmano" de origem não africana, sobre o qual se
concentravam os receios paranóides dos ideólogos e administradores coloniais, e
o "negro islamizado", visto como superficial ou inautêntico e, por isso mesmo,
como permeável à missionação cristã e manejável pelo poder colonial. São estas
duas figuras do imaginário colonialista que irei analisar em seguida.
O muçulmano-"ameaça"
Numa comunicação com o significativo título A ameaça islâmica na Guiné
Portuguesa, apresentada em 1956 no IV Congresso da União Nacional, António de
Sousa Franklin sintetizou os lugares comuns do "perigo muçulmano": "Sectário de
uma religião superior, dotado de um relativo nível de cultura que o destaca da
população animista, usufruindo de um estádio de vida elevado, o muçulmano
conserva-se igual a si próprio e repele quaisquer influências da nossa
civilização" (Franklin, 1956, p. 9). O escândalo aberto pela presença dos
muçulmanos entre nós, ou nas "nossas" colónias, deriva, ontem como hoje, da
percepção de que eles recusam reconhecer qualquer superioridade à "civilização
ocidental". Isto foi e tem sido recebido como um intolerável golpe no "nosso"
orgulho identitário. Como podiam os muçulmanos debaixo da dominação colonial de
França não querer tornar-se franceses, ou como podiam os islamizados da Guiné
atrever-se a proclamarem-se, não portugueses, mas árabes? (Franklin, 1956, p.
17).
No início dos anos 60, não apenas os ideólogos mas também as autoridades
coloniais locais estavam cientes de que o Islão representava, para os
"indígenas" de África, uma estratégia de promoção identitária alternativa e
muito mais atraente do que o catolicismo. Veja-se, por exemplo, um relatório de
1961 do Grupo de Artilharia de Campanha de Nampula: "[...] Os maometanos
consideram-se superiores e decerto emancipados a tal ponto de chamarem
desprezivelmente 'indígenas' aos que não professam os seus ideais
deixando de se considerarem como tais a eles4." Este relatório também
sublinhava, como digno de observação crítica, certos marcadores visuais
exibidos pelos dirigentes nativos muçulmanos: preferiam a "Bandeira do Oriente"
à "Bandeira Nacional" (portuguesa) e apresentavam-se "com trajes tipicamente
orientais". Atitudes inaceitáveis para o assimilacionismo colonial.
O acima citado Júlio Gonçalves tinha já feito considerações sobre um "credo
muçulmano que é, inequivocamente, desnacionalizador e [...] antiportuguês"
(1958, p. 169). Por seu turno, as representações produzidas pelos agentes
coloniais que actuavam no terreno comungavam destas imagens produzidas a um
nível mais "ideológico". Veja-se este relatório militar no qual o carácter
alegadamente não português (ou antiportuguês) do Islão era relacionado com uma
perniciosa intervenção árabe:
[...] O indígena afirma que o maometano não é português! O gentio que pertencer
à religião maometana considera-se imediatamente um indivíduo árabe e sob o seu
poder, renegando a sua pátria sem o mínimo escrúpulo, antes com enorme
satisfação. Mantém e afirma não ser português em qualquer circunstância e essa
convicção não foi formada propriamente por ele, não é fruto do seu poder
imaginativo, mas antes resultado da actuação desintegrante dos agentes árabes5.
Na verdade, a tese de um carácter "anti-português" do Islão era apenas uma
variante de um tema mais geral que percorria esta representação islamófoba '
com todo o peso ansiogénico que lhe era inerente. Esse tema era o da natureza
"desnacionalizadora" do Islão. "Desnacionalizadora" porque empenhada em
transcender todas as fronteiras e fracturas nacionais. Os fantasmas do "pan-
islamismo", de uma "Comunidade dos Crentes" capaz de engolir as nações, tinham
aqui amplo alimento.
O cunho "não português" do Islão foi igualmente sublinhado pelo antropólogo
Jorge Dias, para o qual essa "ameaça" possuía, no contexto multiétnico de
Moçambique, uma face bem concreta: os muçulmanos oriundos da Índia que se
tinham estabelecido nessa colónia, um grupo pejorativamente designado por
monhés6 (Alpers, 1999, p. 167; Bastos, 2008; Dias, 1956, pp. 10-14). Um
relatório transmitido pelo comandante do Regimento de Infantaria de Nampula, em
1959, descrevia o impacto desse grupo sobre os "nativos", queixando-se da
[...] acção absolutamente nefasta para os interesses nacionais, que resulta da
presença do "monhé", que catequiza o indígena imbuindo-o da sua cultura, da sua
religião e da sua história. [...]
O "monhé" luta encarniçadamente contra o casamento cristão, e [...] há imensos
casamentos desfeitos, sem possibilidade de qualquer reatamento, porque ele
actuou, aproveitando a conhecida tendência supersticiosa do indígena7.
Na óptica colonialista, o aspecto insuportável para a auto-estima do
"português" era o facto de os muçulmanos indianos que viviam em Moçambique não
respeitarem as fronteiras que o poder colonial lhes pretendia impor:
Enquanto que várias minorias conservam a sua religião de origem e procuram
mantê-la viva em todos os membros do grupo e nos seus descendentes, o que é
respeitável, os indianos maometanos constituem uma grave ameaça para a
soberania portuguesa pela propaganda constante (entre os indígenas) da fé
islâmica, acompanhada do slogan, que ela é a religião dos homens de cor,
enquanto que o cristianismo é a religião dos brancos (Dias, 1956, p. 2)8.
Assim, Jorge Dias atribuía aos muçulmanos indianos a insinuação de que haveria
um vínculo entre religião e etnicidade (ou "raça"). O cristianismo, cultura com
pretensões ao ecumenismo e à universalidade, via-se assim denunciado como
particular e relativo, atributos que a ideologia colonial gostaria de reservar
para o Islão e para outras fés "inferiores":
[...] O perigo maior não advém do facto dos indianos constituírem uma minoria
étnica, mas sim de procurarem contrariar o esforço de assimilação dos
indígenas, que os portugueses estão a despender, difundindo uma religião em
fase de grande expansão em África, a que insidiosamente chamam religião dos
homens de cor. Esta barreira que procuram estabelecer entre duas religiões,
associando cada uma delas a um pseudo grupo racial ' branco e de cor (negro) '
é altamente perigosa e de graves consequências se continuar a fazer progressos
(Dias, 1956, p. 8).
Como Susana Bastos mostrou recentemente (2008), a visão ansiogénica dos
muçulmanos indianos em Moçambique como um "contra-poder" capaz de minar a
dominação portuguesa não tinha, curiosamente, qualquer correspondência numa
mobilização anticolonial expressiva da parte dos indianos que eram alvo de
caracterizações pejorativas. Com raras excepções, eles mantiveram uma atitude
essencialmente apolítica e, como veremos, alguns envolveram-se mesmo na
colaboração activa com as autoridades portuguesas. Isto acentuou, dentro da
administração colonial, os sentimentos de ambivalência na caracterização do
"outro" islâmico, e, em articulação com isso, uma oscilação nas políticas entre
medidas de rejeição/repressão ' frequentes nos primeiros anos de guerra contra
a FRELIMO9 ' e medidas de aproximação/cooptação.
O "islamizado"
Como foi mencionado atrás, para os ideólogos portugueses o tipo de
comportamento "muçulmano" a que os africanos conseguiam aceder era basicamente
superficial e abastardado, porque misturado com culturas locais prevalecentes.
Pensava-se que os africanos tinham as suas identidades exclusivamente devotadas
a uma forma exterior, a um invólucro sem conteúdo. Podemos encontrar um exemplo
desta concepção em Júlio Gonçalves. Segundo ele, as populações da Guiné que
professavam o Islão não eram exactamente muçulmanas, mas "islamizadas". Os
negros de África eram incapazes de alcançar a "essência" de tal religião,
limitando-se a simulá-la ou a mimetizar os seus aspectos exteriores, e apenas
para efeitos de autopromoção identitária:
Os negros islamizados, tomados de autêntica megalomania, exibem, com gosto, os
símbolos da sua superioridade em relação aos seus irmãos de sangue: o balandrau
e o turbante, que, aliás, são mais acessíveis ao seu débil potencial económico
que qualquer vestimenta do figurino europeu (Gonçalves, 1958, p. 73)10.
Melhor poderá compreender o efeito psicológico destas peças de vestuário quem
porventura já tenha visto um aborígene africano "vestido" ao modo tribal, ao
lado de um islamizado imponente, dando-se mesmo ares de falsa majestade; um
rosto tostado, negro, contrastando com o marfim de uns dentes muito brancos,
uma jilaba alvinitente e o turbante igualmente claro! Como é que um pobre afro-
negro não há-de sentir ganas de se desenraizar, mandar os filhos à mesquita e à
escola e tornar-se membro de uma religião que, mesmo implicando alguns
prejuízos, o elevará aos olhos dos seus companheiros de "mucanda"! (Gonçalves,
1961, p. 26).
A sugestão contrabandeada nestes textos pretendia que o africano "islamizado"
não conseguiria ostentar mais do que um Islão fictício, inteiramente centrado
numa visibilidade performativa cujo carácter artificial colidia com a "natureza
primitiva profunda" do negro:
São impressionantes estes negros atraídos pelo prestígio do balandrau. Vivem
por vezes como que obcecados pela sua importância, pouco mais. É vê-los acorrer
aos povoados através dos matagais limítrofes; quando se aproximam das povoações
cessam todas as atitudes naturais, morre a exuberância e aperaltam-se
cuidadosamente. Depois entram com solenidade, muito direitos, falsamente
aprumados! Lembram algum tanto o ingénuo camponês europeu, quando vai à cidade
[...] (Gonçalves, 1961, p. 26).
Note-se a analogia entre "camponeses" e "povos colonizados", tão assídua neste
tipo de construções identitárias e que consiste em equiparar o "primitivismo"
do camponês ao "primitivismo" dos "nativos" das colónias, uns e outros
imaginados sob a mesma representação do "selvagem"11. Um traço comum emerge em
todas estas avaliações do comportamento muçulmano da África negra: interpretado
com base no binómio "natural/artificial", ele não era encarado como uma
manifestação séria ou genuína. Neste caso, a estratégia de poder do discurso
colonial não era, exactamente, negar aos muçulmanos negros a sua visibilidade.
Era simplesmente concebê-la como uma superfície desprovida de qualquer conteúdo
efectivo. De resto, pensava-se que, por detrás dessa "fachada", espreitava
ainda o velho negro infantilizado que António Enes retratara nesse texto
fundador do racismo colonialista português que foi o seu Relatório sobre
Moçambique, publicado em 1893 (1946, p. 75). Os preconceitos eram aqui
inerentes à velha ideia do "Islão Negro": a "islamização" dos africanos não
podia ser senão ostentatória, incapaz de disfarçar um "animismo" obstinado.
Afirmar uma osmose entre nacionalidade e religião era, porém, espada de dois
gumes: enquanto permitia que o "nativo" se auto-representasse como português,
apenas por se ter tornado cristão, também podia aliená-lo de Portugal sempre
que se sentisse muçulmano. Na verdade, o projecto de "nacionalizar" os
"nativos", maneira eufemista de rasurar a sua identidade étnica, estava a ser
desafiado por uma circulação islâmica reconhecidamente mais forte do que a
presença católica portuguesa. Teixeira da Mota, que havia sido Ajudante-de-
campo de Sarmento Rodrigues, em 1945, quando este fora Governador-Geral da
Guiné, escreveu no seu volumoso estudo sobre essa região:
Uma vez um velho Mandinga traduziu numa frase admirável este mesmo conceito, ao
dizer-me que o "Mandinga (islamizado) está para o Árabe, como o Cristão está
para o Europeu". Expressão preciosa que encerra todo o complexo problema da
conversão religiosa, da assimilação, da nacionalização, e que revela que o
indígena tem perfeitamente a noção de estar a ser influenciado e absorvido por
duas religiões e duas culturas distintas, a religião cristã e a cultura
portuguesa, e a religião maometana e a cultura árabe. O progresso da
islamização na Guiné não constitui apenas um problema religioso, porquanto pode
vir a constituir um obstáculo crescente à maior integração do indígena na
comunidade nacional (Mota, 1954, p. 257).
Sousa Franklin, por sua vez, não escondia os maiores receios: "Nada nos garante
que os fulas, mandingas e mais islamizados, que hoje se portam como bons
amigos, não levantem amanhã o estandarte da revolta e não terçam armas contra
nós". Num tal cenário, Franklin pensava que esses "povos de mentalidade sui ge
neris, que se mantêm isolados como ilhas, no meio de outros, através de
séculos, repelindo quaisquer influências estranhas", não teriam "dúvidas em
trair, em dado momento, aqueles de quem receberam amizade, compreensão e
liberdade" (Franklin, 1956, pp. 24-25). Em 1959, alguns relatórios militares
mostravam-se preocupados com a possibilidade de que
[...] muito embora tenham sido as tribos islamizadas, ou facilmente
islamizadas, aquelas que, no passado, nos ajudaram a pacificar a Guiné, serão
precisamente aquelas que agora nos poderão trazer preocupações, dadas as suas
afinidades com as tribos da República da Guiné já emancipadas e com as do
Senegal em vias de apresentarem as suas reivindicações de liberdade e
emancipação12.
Por conseguinte, o próprio "islamizado" não era uma figura inteiramente
tranquilizante para o colonizador. A insegurança e a suspeição como traços
persistentes na interacção do colonizador com o colonizado, formatada por um
tipo inerradicável de relação de poder, conduziram a que a atitude para com o
Islão e os grupos muçulmanos tivesse na ambivalência a sua estrutura profunda.
Ambivalências coloniais na sedução estratégica dos muçulmanos de Moçambique
Numa nota de 3 de Maio de 1946, o Cônsul de França em Lourenço Marques dava
conta de uma visita de dignitários indianos da África do Sul aos seus
correligionários de Moçambique, neste caso maioritariamente ismaelitas. Durante
um banquete oferecido pela comunidade indo-muçulmana local, um desses
visitantes, Abubacar Mussa, proferiu um violento discurso contra a segregação
racial e a política colonial da África do Sul, traçando, em contraste, "um
quadro idílico da vida da comunidade indiana sob a égide portuguesa em
Moçambique, 'onde desejaria ter a felicidade de viver'". Segundo a
nota, este banquete ' classificado pelo Cônsul como a "primeira manifestação
anti-racista" levada a cabo pela comunidade indiana, e, para mais, inspirada
por um ismaelita ' "permitiu à imprensa local uma série de artigos louvando o
liberalismo tradicional da política colonial portuguesa". O autor da nota
diplomática não deixa, porém, de acrescentar que "estes protestos de
liberalismo dissimulam mal uma onda de xenofobia em relação à comunidade
indiana", onda à qual as missões católicas não seriam estranhas, "inquietas
perante o proselitismo frutuoso que os muçulmanos indianos praticam junto dos
indígenas da Zambézia e do Niassa"13. Este documento sintetiza, assim, a
disparidade de sentimentos que os muçulmanos indianos suscitavam no contexto
colonial de Moçambique, disparidade bem ilustrada por um caso particular do
Islão "asiático": a comunidade ismaelita.
Tratava-se de uma comunidade pequena que, em 1953, as autoridades estimavam em
cerca de 700 indivíduos, dos quais 439 tinham nacionalidade portuguesa e 261
eram estrangeiros oriundos da União Indiana14. Dois anos antes, a 21 de
Dezembro, o Aga Khan tinha enviado uma carta pessoal ao Governador-Geral de
Moçambique na qual solicitava a concessão da cidadania portuguesa aos
ismaelitas que tinham migrado para essa colónia vindos da Índia após a
independência desta. Nessa carta, o autor sublinhava a devoção dos seus fiéis à
causa portuguesa. Argumento que parece não ter surtido efeito: nove anos
passaram sem que as autoridades solicitadas assumissem uma decisão definitiva
quanto à naturalização dos ismaelitas. Ao longo desse período, os Ministérios
do Ultramar e dos Negócios Estrangeiros emitiram pareceres que pareciam ir ao
encontro da solicitação do Aga Khan e dos líderes da comunidade ismaelita,
inclinando-se, porém, para um processo de naturalizações individuais, caso a
caso, em lugar de uma naturalização colectiva. A favor dessa opção invocavam
motivos claramente comprometidos com estratégias de fiscalização e de controlo
das populações colonizadas, decorrentes da desconfiança endémica com que o
poder colonial português as encarava. A esse respeito, é sintomática uma
informação política do Consulado de Portugal em Nairobi, de 10 de Setembro de
1953, na qual se fazia referência a "inquietantes" declarações do Aga Khan que
apelavam a que todas as nações muçulmanas do mundo organizassem uma frente
comum na luta contra o imperialismo e o colonialismo15. A inclusão desse
documento era, em si mesma, um argumento contra uma abertura "excessiva" do
acesso à cidadania portuguesa. Em contrapartida, outros textos da administração
portuguesa mostravam-se favoráveis a uma naturalização em massa dos ismaelitas
originários da Índia e residentes em Moçambique, com a sugestão táctica de que
isso traria vantagens na projecção da imagem internacional de Portugal. Em
1960, quando o número de ismaelitas naquela região ultrapassava já o milhar, as
autoridades portuguesas mantinham em suspenso a palavra final sobre o
assunto16.
Estas hesitações, expressivas da ambivalência que temos vindo a referir,
contrastavam com os protestos de lealdade que os representantes dos ismaelitas
foram reiterando ao longo dos anos. Tomemos, como exemplo, o telegrama que
Gulamhussen R. Bangy, presidente da comunidade ismaelita do Niassa, enviou a
Salazar em 1954, manifestando-lhe todo o seu apoio contra as reivindicações de
Nehru relativamente aos territórios de Goa, Damão e Diu, e frisando "o
indefectível patriotismo e a lealdade à nação de todos os ismaelitas que vivem
e tranquilamente labutam na província de Moçambique". O telegrama aproveitava
para lembrar, em surdina, a naturalização que tardava em se concretizar,
invocando "os ismaelitas estrangeiros que nessa portentosa terra se fixaram e
desejam ser portugueses de jure, porquanto de há muito se sentem portugueses
pelo coração e veneram a gloriosa bandeira de Portugal"17. Em Janeiro de 1974,
quando se vivia já o pleno crepúsculo da presença colonial portuguesa em
África, a comunidade ismaelita de Lourenço Marques emitiu um comunicado em que
prestava "homenagem ao Governo Português que estava a dar ao mundo o exemplo
mais digno de uma sociedade pacífica, interessada apenas no bem-estar de todos
os seus membros, independentemente da cor, do credo ou da origem". Esta
declaração desaprovava, nos termos mais veementes, uma declaração proferida
pelo Príncipe Sadruddin Aga Khan, o qual, na qualidade de Alto Comissário das
Nações Unidas para os Refugiados, tinha questionado a "integridade da nação
portuguesa" (ou seja, tinha-se manifestado a favor da independência das
colónias)18.
Nada disto era suficiente para fixar a administração portuguesa numa atitude
unívoca em relação aos muçulmanos "asiáticos". Um documento dos Serviços de
Centralização e Coordenação de Informações de Moçambique (SCCIM) condensa bem
esta predisposição, oscilando entre os habituais pólos opostos. Afonso Ivens-
Ferraz de Freitas, Director dos SCCIM em 1964, recordava nesse texto os
argumentos que usara, quando Administrador do Concelho de Lourenço Marques em
Março de 1956, a fim de rejeitar uma petição que solicitava autorização para
ser constituída a "Cooperativa dos Shia Imami Ismailia de Sua Alteza Aga Khan".
Por um lado, mostrava-se convencido de que, mais tarde ou mais cedo, as jovens
gerações dos ismaelitas residentes em Moçambique "serão absorvidas pela
ocidentalização", processo que, segundo ele, se encontrava "incomparavelmente
mais avançado" do que nas duas outras comunidades indianas, "a mahometana
propriamente dita" e a hindu. Daí concluía que "tudo o que seja isolar esta
comunidade [a ismaelita] é contraproducente e entravará a absorção que se vai
constatando". Mas, por outro lado, o mesmo Ivens-Ferraz de Freitas afirmava que
"o patriotismo arrogado pelos requerentes não convence". O que neles o
incomodava era um alegado transnacionalismo, a sua pertença a uma comunidade
religiosa e cultural que transcendia todas as fronteiras nacionais e que, desse
modo, vinha perturbar a unidade da "nação" portuguesa:
[...] A comunidade obedece tanto espiritual como politicamente às directrizes
emanadas do seu chefe, o príncipe Aga Khan. [...] Podem ter a nacionalidade
aparente que tiverem mas serão sempre "súbditos de Sua Alteza Aga Khan" e esta
é a sua verdadeira, digamos, "nacionalidade"19.
Em finais dos anos 60, Fernando Amaro Monteiro, Adjunto dos SCCIM, chefe do
respectivo Gabinete de Estudos e o islamólogo mais bem preparado em todo o
aparelho colonial, concebeu o Ijmâ ou "Conselho dos Notáveis", um órgão
islâmico central que a administração portuguesa patrocinaria em Moçambique com
vista a usá-lo para mobilizar a população muçulmana na guerra contra a
FRELIMO20. Ora, Monteiro pensava que esse órgão também serviria para realizar
um desiderato que, em seu entender, deveria estar no centro de toda a política
portuguesa de governança do Islão: afastar os muçulmanos de Moçambique de uma
vinculação a centros externos de irradiação islâmica, dado que estes podiam
apresentar ligações a correntes anticoloniais, alistando os fiéis moçambicanos
na causa da FRELIMO21. A concretização deste objectivo estratégico passava por
duas tácticas. Antes de mais, atrair os muçulmanos das confrarias sufi do norte
de Moçambique, encaradas como mais tradicionalmente "africanas" e, portanto,
mais abertas à manipulação pelo poder português:
O Distrito de Moçambique que constitui sem dúvida o centro de polarização negra
no Norte da Província, representando a maioria da população islâmica e tendo
como fulcro as numerosas confrarias muçulmanas sediadas na Ilha de Moçambique.
Caracteriza-se por uma profunda ortodoxia e riqueza ritual, bem como por uma
amálgama de tradições e práticas eivadas de magia e superstições locais.
Dentro do sunismo, que engloba a maior parte dos islamitas da Província, quer
de origem indiana, paquistânica ou autóctone [...], o Distrito de Moçambique
mantém uma maior imobilidade e uma perfeita simbiose de tribalismo e feiticismo
e, em certa medida, uma boa dose de tolerância e aculturação perante a
influência portuguesa22.
Mas, em articulação com este investimento nas confrarias islâmicas, a
estratégia de Amaro Monteiro também obrigava a contrariar as pretensões
supostamente hegemónicas e centralistas dos muçulmanos de origem indiana e
paquistanesa:
Nas Associações dotadas de estatutos e concebidas à europeia, estão
concentrados vários indivíduos que, não tendo função religiosa, aspiram a um
papel de relevância sobre as comunidades, por processo laico, com variados e
graves inconvenientes. As Associações, se sobretudo unificadas (como pretende,
por exemplo, o Dr. Abdool Karim Vakil (gerente da Casa Coimbra, desta cidade),
conduzirão ao domínio de uma elite de origem asiática sobre o negro e
fabricarão chefes políticos23.
Num documento de data posterior, Amaro Monteiro recomendava que as associações
islâmicas de Moçambique, de maioria indiana, fossem colocadas sob apertada
vigilância. Para justificar semelhante medida, recorria à velha dicotomia
identitária que distinguia entre uma "massa nativa controlável" e "elementos de
raiz asiática" cuja orientação doutrinária podia chocar com os interesses do
poder português24. As suas posições de desconfiança em relação aos muçulmanos
"asiáticos" não o impediram, contudo, de aconselhar o Governador-Geral Arantes
e Oliveira a envolver Abdool Magid Karim Vakil, que o documento atrás citado
referenciara negativamente, na cerimónia islâmica do Id-ul Fitr, durante a qual
o Governador iria ler uma mensagem dirigida aos muçulmanos de Moçambique como
parte do plano de sedução das populações islâmicas concebido por Amaro
Monteiro, a exemplo do que já fizera o Governador anterior, Baltazar Rebelo de
Sousa (sendo sempre Monteiro a escrever, na sombra, os textos das mensagens e a
cuidar de todos os pormenores encenatórios das cerimónias em que elas seriam
lidas). Amaro Monteiro propunha que o Governador-Geral fosse recebido numa
mesquita por cinco dignitários islâmicos, entre os quais Abdool Karim Vakil, e
que este servisse de elo de ligação com os restantes elementos, podendo também
zelar pelos detalhes respeitantes à cerimónia25. A 1 de Dezembro de 1970,
durante a recepção de Arantes e Oliveira na mesquita, coube a Karim Vakil fazer
o discurso em nome das associações e confrarias islâmicas. As suas palavras
espelhavam a idealização "luso-tropicalista" a que o poder português recorrera
como último avatar da sua ideologia colonial. Desse modo, a administração via-
se confirmada no discurso em que o "outro", devidamente "assimilado" ou
"integrado", lhe devolvia as representações de si própria:
Este gesto de V. Ex.ª [...] vem além de tudo demonstrar mais uma vez o ideal
ecuménico que reina no espírito dos nossos governantes, pois se somos, de
facto, um só povo formando uma só Nação, una e indivisível, nela se integram
todas as religiões, todas as etnias, da Comunidade Lusíada que temos vindo a
construir há séculos na base do amor e tolerância26.
O movimento pendular da ambivalência, no qual as autoridades portuguesas
pareciam agora dispostas a atrair os membros mais destacados da comunidade
muçulmana "asiática" de Moçambique, acabou por conferir a Abdool Karim Vakil
uma posição de relevo dentro da nova entente política. Em 1973, tornou-se o
primeiro (e único) muçulmano a ser nomeado membro do Governo-Geral da região,
facto que mereceu destaque nalguma imprensa internacional, nomeadamente no
Paquistão, e que o poder português procurou explorar nas relações diplomáticas
com os países árabes27.
Persistência das clivagens: o caso dos wahhabitas
A desconfiança com que Amaro Monteiro encarava certas derivas de algumas
associações islâmicas incidiu, sobretudo, no segmento particular dos chamados
wahhabitas. Na década de 60, em Moçambique, eram identificados como tal todos
aqueles que haviam estudado o Islão na Arábia Saudita. O seu protagonismo
crescente no sul de Moçambique podia perturbar os planos para atrair os
dignitários das confrarias sufi do norte. Estas eram, de facto, o alvo
preferencial das críticas produzidas pela Wahhabe, sempre intolerante para com
os desvios supostamente introduzidos pelas confrarias na "pureza" doutrinária e
ritual do Islão. Sujeito à dupla influência do movimento deobandi da Índia e da
corrente inaugurada, no século XVIII, por Muhammad Abd Al-Wahhab na Arábia
Saudita, com a sua intolerância perante o menor desvio em relação à norma
islâmica ' pressupondo a possibilidade de localizar essa norma no meio da
imensa pluralidade que percorre o Islão vivido ', o wahhabismo moçambicano
denunciava as práticas das confrarias islâmicas como uma inaceitável "inovação"
religiosa (bid'a). Tratava-se de uma crítica que misturava as habituais
suspeitas fundamentalistas relativamente ao misticismo e à ritualidade própria
dos sufi com o menosprezo destinado a formas de "sincretismo" religioso, as
quais se julgava caracterizar as ordens muçulmanas do norte de Moçambique. Os
recém-emergentes wahhabitas classificavam-nas sob os epítetos de
"obscurantismo" e de "ignorância" face à "verdadeira" religião islâmica '
categorização que, de resto, partilhavam com a visão orientalista predominante
entre os islamólogos portugueses28.
As colisões entre os dois lados do Islão moçambicano subiram de tom a 10 de
Dezembro de 1971, na mesquita Anuaril Islamo de Lourenço Marques, quando o mais
proeminente representante do wahhabismo local, Abubacar Ismael "Mangira",
ridicularizou dois eminentes khalifas sufi da Ilha de Moçambique, Said Mujabo e
Said Bakr, diante de uma congregação composta por 800 membros. Na sequência
deste episódio, os dirigentes das confrarias e de associações sufi enviaram uma
queixa formal ao Governador-Geral29. A nova política islâmica das autoridades
portuguesas estava a arrastá-las para um conflito identitário e interétnico que
dividia os muçulmanos de Moçambique e que depressa poderia assumir proporções
volumosas, acrescentando-se a uma guerra de desfecho cada vez mais incerto
(Alpers, 1999, pp. 181-182; Macagno, 2006, pp. 100-102; Monteiro, 2004, pp.
110-111).
Na óptica da administração portuguesa de Moçambique, havia agora um "bom
muçulmano" ' imagem nem por isso menos ambivalente ', encarnado na liderança
islâmica da zona norte da colónia, e um "mau muçulmano" associado aos
wahhabitas30. Queixando-se de que, durante anos, as autoridades de Moçambique
tinham negligenciado os seus avisos sobre a relevância e o "perigo" do
wahhabismo em Moçambique31, Amaro Monteiro dispunha agora de meios para
direccionar os instrumentos de controlo sobre essa corrente e procurar inibir a
sua influência.
Diga-se, no entanto, que a estratégia por ele delineada não visava a pura e
simples exclusão da corrente wahhabita, mas antes uma tentativa de a inscrever
numa moldura em que estivesse mais diluída, eventualmente enquadrada pelo poder
colonial português. Assim, a 15 de Agosto de 1972, numa cerimónia pública com
grande cobertura noticiosa, para a qual 21 dignitários muçulmanos haviam sido
convidados, sob a batuta de Amaro Monteiro, a fim de se pronunciarem e depois
assinarem formalmente uma declaração que recomendava aos fiéis a tradução
portuguesa de uma versão resumida dos Hadiths de El-Bokhari, quatro dos
dignitários presentes pertenciam à corrente wahhabita. No decurso da discussão
que precedeu a cerimónia pública da assinatura, esses representantes do
wahhabismo votaram em minoria contra o parecer relativo à bid'a que
constava do texto final da Selecção de Hadiths32, mas nem por isso deixaram de
subscrever, juntamente com os outros líderes islâmicos, a recomendação
favorável a essa edição. Como se isso não bastasse, Amaro Monteiro manobrou
para que o discurso principal, feito em nome dos muçulmanos presentes, coubesse
ao Xehe Momade Issufo, de Lourenço Marques, figura importante do wahhabismo
local (e um dos que haviam votado contra o parecer acerca da inovação
religiosa). Esse discurso recebeu o devido destaque no cartaz de propaganda com
que o Gabinete Provincial de Acção Psicológica de Moçambique difundiu, em
Novembro de 1972, a referida cerimónia, que deveria ter constituído o primeiro
passo para a constituição do já citado Ijmâ.
Todavia, a clivagem que opunha os muçulmanos "conservadores" aos "reformistas"
wahhabitas ' ainda que esse "reformismo" significasse o retorno a uma suposta
pureza original do Islão ' estava à beira de escapar ao controlo judicioso
exercido por Amaro Monteiro, fazendo ruir os equilíbrios delicados que este
tentava promover e gerir. Tal clivagem levou o Sharif Said Bakr, cuja
autoridade se estendia a dezenas de ramos da Qadiriyya Sadat (uma confraria
islâmica ou ordem sufista) no norte de Moçambique, a ameaçar que desencadearia,
em poucos dias, uma série de levantamentos violentos em três distritos se a
administração portuguesa cedesse às pressões dos seus opositores wahhabitas
(Alpers, 1999, p. 182; Cahen, 2000, p. 582; Monteiro, 1989, p. 85). É de
realçar que esta declaração, comunicada ao próprio Amaro Monteiro, foi feita
precisamente a 15 de Agosto de 1972, no pleno momento em que se celebrava o
apoio dos dignitários islâmicos à publicação dos Hadiths encenado pelo poder
colonial. Segundo Monteiro, essa ameaça merecia ser levada a sério atendendo à
influência de Said Bakr sobre milhares de muçulmanos. Parecia, pois, que a
concessão, milimetricamente regulada, da auto-estima a comunidades que antes se
sentiam marginalizadas corria o risco de gerar uma situação incontrolável. Daí
que, nas análises retrospectivas que dedicou ao seu plano e à forma como o
mesmo foi mutiladamente implementado pelas autoridades no terreno, Amaro
Monteiro insista na ideia de que teria sido imperioso comprometer e envolver o
mais depressa possível os líderes muçulmanos, entretanto "captados", com os
interesses do poder português. Caso contrário, afirma este autor, aqueles
gozariam de tempo para ver "excessivamente" alimentada a sua auto-estima, e
desse investimento narcísico poderiam retirar uma noção de força própria que os
retraísse face aos objectivos (coloniais e militares) portugueses ou até,
hipótese "temível", os colocasse numa postura decididamente confrontacional e
conflitual em relação à administração portuguesa (Monteiro, 1993, pp. 283-284,
307). Na verdade, a ameaça intempestiva lançada por Said Bakr foi interpretada
por Amaro Monteiro como um claro indício de que as lideranças muçulmanas,
potencialmente cooptáveis, estavam à beira de adquirir uma autoconsciência
demasiado autónoma para os interesses das autoridades portuguesas.
O Ijmâ ou "Conselho de Notáveis" não chegou a ser concretizado, em grande parte
devido às insuficiências estruturais do aparelho colonial português. Estas
consentiram que demasiado tempo se escoasse entre a formulação inicial do
projecto de Amaro Monteiro, em 1965, e o esboço da sua implementação, sete anos
depois. Mesmo assim, e apesar de não ter logrado uma plataforma institucional
que mobilizasse as populações muçulmanas na guerra contra a FRELIMO, a actuação
de Amaro Monteiro, sobretudo graças aos seus contactos directos com líderes
islâmicos, quebrando o gelo e a hostilidade de décadas, permitiu subtrair cerca
de 1 milhão de muçulmanos ao poder de atracção que o movimento anticolonial
poderia exercer. Isso deu um balão de oxigénio, ainda que breve e mal
explorado, às forças portuguesas.
Este resultado explica que, independentemente das complexidades internas que
pudesse revelar, a visão estratégica do Islão moçambicano desenvolvida pelas
autoridades coloniais portuguesas tenha acabado por extravasar para o período
pós-colonial. Quando a governação da FRELIMO acordou, finalmente, para a
questão islâmica nos anos 80 ' depois de ter afrontado os grupos muçulmanos no
contexto das perseguições aos cultos religiosos durante os primeiros anos de
independência ', limitou-se, em grande medida, a inverter a política conduzida
pelos portugueses sem lhe alterar as categorizações que a definiam: enquanto
que os colonizadores tinham procurado reforçar a parceria com as confrarias
islâmicas em detrimento dos wahhabitas, a FRELIMO privilegiou os últimos em
detrimento das primeiras ao patrocinar a criação de um Conselho Islâmico de
âmbito nacional predominantemente composto por líderes conotados com o
wahhabismo (Bonate, 2011). Uma política que replicava, afinal, a antiga
estratégia colonial, ilustrando bem a resistência de certas continuidades
sociais e políticas33.