Desafios Transnacionais de Segurança em África no Século XXI
Desafios Transnacionais de Segurança em África no Século XXI
Alexandra Magnólia Dias*
*ISCTE-IUL, CEA-IUL
alexandra.dias@iscte.pt
Nas últimas décadas, as dinâmicas da globalização e do transnacionalismo
acentuaram a proliferação e a visibilidade da capacidade de uma miríade de
actores não estatais em desenvolverem e manterem relações transnacionais.
Neste contexto, definem-se enquanto relações transnacionais as relações através
de fronteiras nacionais envolvendo pelo menos um actor não estatal e/ou que não
desenvolva as suas actividades sob a égide de um governo nacional ou
organização intergovernamental (Josselin & Wallace, 2001, p. 19).
O objectivo inicial do presente dossier temático era justamente agregar um
conjunto de artigos que problematizassem as relações transnacionais nas suas
diversas dimensões (económicas, políticas, sociais e culturais) em termos das
suas implicações para a segurança internacional em África. Parte-se do
pressuposto de que a compreensão e a análise das estratégias, das tácticas e da
influência dos actores não estatais em termos do seu impacto nas dinâmicas de
segurança em África requerem uma abordagem multissectorial do conceito de
segurança internacional, designadamente uma abordagem que tenha em conta os
sectores militar, económico, político, social e ambiental.
O presente dossier temático dos Cadernos de Estudos Africanos reuniu três
artigos com um denominador comum, a saber, o enfoque nos movimentos de
população através de fronteiras internacionais, entre Estados Africanos e entre
Estados Africanos e Europeus. De entre a pluralidade de fenómenos
transnacionais com implicações para a segurança em África no século XXI, o
interesse despertado pela problemática das migrações internacionais traduz-se
num distanciamento crítico dos autores. Os artigos de Stephan Dünnwald, Patrick
Figueiredo e Raquel Freitas problematizam a relação entre migrações e segurança
à luz de três estudos de caso face a uma tendência de políticas cada vez mais
restritivas por parte da União Europeia e face à tendência acentuada desde o 11
de Setembro em associar as migrações internacionais ao terrorismo
internacional.
A literatura extensa sobre as migrações internacionais sublinha que esta
abordagem de associar as migrações e a segurança está ancorada numa tendência
de politização do fenómeno que pode ser localizada nos anos oitenta do século
passado. Este não é um fenómeno do pós-Guerra Fria, o que se verificou foi um
acentuar da escala e das implicações políticas para os Estados de destino de
fluxos migratórios. Acresce o facto de o 11 de Setembro ter vindo a reforçar a
securitização dos movimentos de população através de fronteiras internacionais
(Hammerstad, 2010, p. 245).
Em termos da problematização do tratamento das migrações enquanto um fenómeno
transnacional de segurança, as referências predominantes aos fluxos de migração
partem de dicotomias redutoras que não permitem apreender a complexidade nem
das categorias de migrantes, nem da multicausalidade do fenómeno. Os fluxos
migratórios na maioria dos casos prendem-se com motivações complexas e
combinadas para além das dicotomias de migração: forçada/ voluntária; legal/
ilegal; regular/irregular; económica/política; interna/externa. Em particular,
a dicotomia migração legal versus ilegal e/ou clandestina contém um pressuposto
ideológico e aponta para uma criminalização da actividade, contribuindo para
que os Estados de destino se subtraiam a obrigações de Direito Internacional,
nomeadamente de concessão de asilo político, consolidadas pelo regime
internacional de refugiados. Um dos efeitos perniciosos desta dicotomia é a
adopção de mecanismos de controlo cada vez mais restritivos e orientados por
preocupações de política interna e de segurança, conduzindo a um tratamento não
adequado de imigrantes irregulares que são candidatos a asilo político mediante
a aplicação de um conjunto de medidas punitivas e cada vez mais restritivas,
tais como: centros de detenção, remoção do direito de trabalho enquanto o
processo de candidatura a concessão de asilo político estiver sob apreciação e
distribuição de benefícios de pagamento em vouchers em vez de dinheiro (Koser,
2010; Hammerstad, 2010, p. 241). Com efeito, as práticas de asilo tendem a
tornar-se cada vez mais tributárias de um quadro geral de controlo de fluxos
migratórios do Sul global para o Norte global. Esta situação tem contribuído no
entender de alguns para uma crise do regime internacional de protecção de
refugiados (Hammerstad, 2010, p. 244).
O artigo intitulado "Migração e segurança: A gestão europeia das migrações com
origem na África Subsariana" (no original "On migration and security: Europe
managing migration from Sub-Saharan Africa"), de Stephan Dünnwald, realça uma
pluralidade de perspectivas relativamente à concepção, à implementação de
medidas e à operacionalização das actividades de Frontex em relação com o
fenómeno mais amplo da migração irregular de África para a Europa, sublinhando
as ramificações negativas da emergência de uma agenda de segurança vis-à-vis as
migrações. Como Dünnwald ilustra, há uma tentativa de relocação do peso de
integrar os fluxos migratórios para os países vizinhos, pautando-se a actuação
de cada país por se tornar menos atractivo enquanto país de destino mediante a
implementação de mecanismos de controlo e de políticas restritivas de fluxos
migratórios. Os casos de detenção e de abuso, de busca e de salvamento e os
casos de afogamento abundam nas narrativas contraditórias recolhidas junto de
uma pluralidade de actores implicados no fenómeno, quer os migrantes, quer os
agentes de patrulhamento de fronteiras, histórias recolhidas nas zonas
fronteiriças nas margens dos Estados que se tornam terra nullius onde no
entender do autor "os Direitos Humanos e o Direito Internacional se tornam
fluidos em zonas fronteiriças inacessíveis, tornando-se objecto de negociação e
aplicabilidade no contexto local". O autor reúne um conjunto de histórias de
vida e retrata, recorrendo a excertos de entrevistas em primeira pessoa, a
trajectória individual de um conjunto de cidadãos do Mali que se tornam
anónimos nos fluxos migratórios irregulares da África Subsariana para a Europa,
em particular aqueles que tentam a rota do Estreito que separa Marrocos de
Espanha. Em termos de motivações o artigo de Dünnwald é rico em dados originais
que reforçam a tese da pluralidade de causas do fenómeno. Em particular, o
enquadramento histórico do fenómeno em termos da região de origem oferece ao
leitor uma perspectiva original para além das dicotomias rígidas que encerram
os migrantes enquanto legais ou clandestinos.
O artigo intitulado "Muros do Mediterrâneo: Notas sobre a construção de
barreiras nas fronteiras de Ceuta e Melilla", da autoria de Patrick Figueiredo,
oferece ao leitor um conjunto de reflexões acerca das implicações em termos de
política interna e de segurança dos fluxos migratórios, explorados pelo artigo
de Dünnwald, para os dois enclaves em Espanha. De acordo com Patrick
Figueiredo, os "muros" construídos em Ceuta e Melilla revelam uma política de
restrição de movimentos de um dos Estados-membros da UE, acentuando uma "lógica
de circulação controlada onde certos fluxos têm privilégio de passagem através
de fronteiras em detrimento de outros". Para além de analisar o processo de
construção dos "muros", o autor analisa um conjunto de artigos da imprensa
local que revelam a acentuada politização, resistência e contestação à
integração dos fluxos migratórios oriundos de África.
De acordo com Hammerstad, 86% dos refugiados permanecem na sua região de origem
(2010, p. 245), os fluxos migratórios de refugiados tendem a circunscrever-se à
região ou aos Estados vizinhos. Segundo Hammerstad, a análise dos fluxos
globais de refugiados aponta para a necessidade de reforçar o desafio
humanitário que constitui a protecção de refugiados e a promoção de uma
compreensão adequada dos refugiados e do seu direito de procurarem asilo. A
tendência para uma orientação preventiva e restritiva prevalecente deve dar
lugar ao reforço de mecanismos multilaterais de cooperação e ao fortalecimento
dos regimes internacionais de migração e refugiados para reverter a tendência
de criminalização de candidatos a asilo político e de refugiados.
O artigo intitulado "Construção e desconstrução da relação entre migrações
forçadas e desafios de segurança em África", da autoria de Raquel Freitas,
problematiza a ligação entre refugiados e segurança salientando a sua dimensão
transnacional. Raquel Freitas, mediante recurso ao método comparativo, analisa
os fluxos migratórios forçados de deslocados internos e de refugiados na zona
norte da África Central e nos Grandes Lagos e as respectivas respostas por
parte de actores internacionais. O artigo visa responder à questão de quem tem
a responsabilidade de proteger os cidadãos afectados por conflitos, o país de
origem, o país de acolhimento, numa perspectiva que coloca o referente de
segurança não no Estado mas antes no cidadão. Raquel Freitas, à semelhança de
Stephan Dünnwald, sublinha que "a natureza complexa dos fluxos origina
movimentos secundários e não enquadrados nos tradicionais padrões de soluções
estabelecidos pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados". Em
última instância, alguns casos não são considerados e em consequência são
classificados enquanto fluxos irregulares. Por outro lado, a autora chama a
atenção para o facto de num mesmo Estado se verificar uma confluência de
diferentes estatutos de migrantes forçados e populações locais, tendo a União
Africana aprovado em 2009 uma Convenção para a Protecção e Assistência dos
Deslocados Internos em África. Acresce o facto de o próprio asilo comportar
vulnerabilidade para os grupos de migrantes. Com efeito, a autora sublinha que
os próprios campos de refugiados são uma peça fundamental nas dinâmicas
internas e de regionalização dos conflitos nas regiões sob análise, defendendo
que a abordagem regionalista da segurança providencia o enquadramento adequado
para fazer face aos desafios humanitários colocados pela Responsabilidade de
Proteger e garantir a segurança dos cidadãos nos casos em que o Estado falha ou
se transforma no perpetrador de ameaças contra o direito dos seus cidadãos de
definirem a sua vida em condições que não lhes são alheias e para além do seu
controlo.
Os três artigos que compõem o dossier permitem-nos compreender os fluxos
migratórios para além de dicotomias redutoras. Se o artigo de Patrick
Figueiredo se enquadra numa perspectiva em que a ordem internacional tem
precedência sobre a justiça e em que os interesses nacionais dos Estados tendem
a prevalecer, os artigos de Stephan Dünnwald e de Raquel Freitas são
tributários de uma perspectiva em que a pessoa humana é o referente de
segurança.