Africanos e Afrodescendentes no Portugal Contemporâneo: Redefinindo práticas,
projetos e identidades
Africanos e Afrodescendentes no Portugal Contemporâneo: Redefinindo práticas,
projetos e identidades
João Vasconcelos*
*Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa
joao.vasconcelos@ics.ul.pt
Os artigos reunidos neste número dos Cadernos de Estudos Africanos chegaram-nos
em resposta a uma call for papers lançada a 15 de fevereiro e encerrada a 1 de
junho de 2012. Pretendemos com essa convocatória recolher e publicar resultados
de pesquisas sobre a situação presente de populações naturais ou provenientes
de África estabelecidas em Portugal, incluindo os respetivos descendentes.
As contribuições selecionadas dão conta de partes desse universo muito amplo e
heterogéneo, que no seu conjunto resulta da acumulação de três levas
migratórias diferenciadas[1]. A primeira foi a migração laboral iniciada por
volta de 1960, ainda no quadro colonial, que teve como destino principal a
construção civil e as obras públicas na Área Metropolitana de Lisboa, e que
trouxe sobretudo cabo-verdianos, primeiro homens e depois mulheres, tendendo
estas a empregar-se no nicho do trabalho doméstico. A segunda leva decorreu da
descolonização pós-25 de Abril de 1974 e foi a de maior escala, trazendo à ex-
metrópole cerca de quinhentos mil retornados. A maioria destes era de origem
metropolitana, colonos e quadros técnicos e administrativos brancos que tinham
migrado para Angola e Moçambique, em grande número a partir os anos quarenta
[2]. Mas dois em cada cinco retornados (para estes o uso do termo obriga a
aspas) haviam nascido em terras de África, tendo uns ascendência metropolitana
e outros africana, asiática ou mistura de várias. É este o caso, por exemplo,
de muitos filhos de trabalhadores braçais cabo-verdianos nascidos em Angola ou
de indianos estabelecidos em Moçambique. A partir de finais da década de 1980,
a migração laboral africana e, em menor número, aquela que é motivada por asilo
político, voltou a aumentar. O período de relativa prosperidade e crescimento
económico que se verificou em Portugal até 2007, em boa parte derivado da
integração do país na União Europeia, aliado a fatores externos, dinamizou o
mercado de trabalho e proporcionou a vinda não só de africanos dos PALOP (em
especial de Cabo Verde, Angola e Guiné-Bissau), mas também, em menor número, de
alguns outros países africanos e, sobretudo, do Brasil e de países do Leste
europeu como a Ucrânia e a Roménia. Neste último fluxo, os imigrantes africanos
apenas perderam o seu peso relativo em relação aos imigrantes de novas
proveniências, representando mesmo assim cerca de metade da população imigrante
total, proporção que, no espaço europeu, só tem paralelo em França[3].
Em resultado destes fluxos migratórios acumulados, a população de origem
africana e afrodescendente em Portugal é numerosa embora difícil de
quantificar, uma vez que as estatísticas de imigração e relativas a
estrangeiros residentes no país não dão conta da enorme parcela daqueles que
possuem nacionalidade portuguesa. A título meramente indicativo, só os
nacionais de países africanos que residiam em Portugal em 2009 eram cerca de
cento e vinte mil, na sua larga maioria provenientes dos PALOP[4]. O grosso
desta população concentra-se na Área Metropolitana de Lisboa, reside em bairros
sociais ou em bairros de autoconstrução, e tem empregos pouco qualificados e
mal remunerados: os homens na construção civil e as mulheres no trabalho
doméstico ou em empresas de limpeza e restauração. Os mais jovens tendem a
alcançar qualificações escolares mais elevadas que as dos seus pais, e neste
aspeto, tanto quanto no que respeita ao acesso ao mercado de trabalho, o perfil
dos afrodescendentes em Portugal é idêntico ao do conjunto dos jovens que se
encontram nas mesmas condições sociais[5]. Um dos primeiros sectores nos quais
a crise económica que se instalou em Portugal desde 2008 se começou a fazer
sentir foi o da construção, o que tem levado milhares de homens ao desemprego e
alguns, com melhores qualificações e mais sorte, a migrarem para outros países
europeus onde ainda conseguem trabalho (como França, Luxemburgo e Reino Unido)
ou para Angola, onde a procura de mão de obra na construção civil e nas obras
públicas tem aumentado, tal como noutros sectores laborais mais qualificados. O
trabalho doméstico também se ressente já da conjuntura económica atual, devido
ao empobrecimento da classe média que recorre a ele.
É neste momento de crise e de mudança nos fluxos migratórios com eixo em
Portugal, de empobrecimento generalizado da sociedade portuguesa, de
abrandamento da imigração e aumento da emigração, tanto nos estratos sociais
baixos como nos médios, entre trabalhadores pouco e muito qualificados, e numa
conjuntura na qual Angola, uma das ex-colónias africanas, se torna destino de
migração laboral diversificada, contando hoje com cerca de cem mil portugueses
residentes, número cinco vezes superior ao de angolanos residentes em Portugal
[6], que os artigos aqui reunidos vêm oferecer cada um o seu retrato da
presença africana neste país.
A crise económica é abordada por Samuel Weeks no seu artigo sobre as práticas
de ajuda mútua entre os imigrantes laborais cabo-verdianos na Área
Metropolitana de Lisboa. As práticas de entreajuda pautam a vida quotidiana em
Cabo Verde, sobretudo em meio rural, e compreendem desde o djunta mon (juntar
mãos), trabalho cooperativo intensivo em picos do ano agrícola, à djuda
(ajuda), que pode ter diversos fins e assumir várias formas. Samuel Weeks
mostra-nos como estas práticas foram transplantadas e adaptadas ao contexto
metropolitano de Lisboa e evidencia a lógica de reciprocidade diferida que lhes
subjaz, enquadrando-as na moralidade própria da economia da dádiva, baseada na
confiança e na obrigação mútuas, e nisso distinta da moralidade da economia de
troca. Para lidar com a escassez de recursos, que se agudiza em tempos de
crise, a entreajuda complementa o sistema de assistência social assegurado pelo
Estado. Samuel Weeks depara-se no terreno com uma discrepância entre a prática
da ajuda mútua, que não dá sinais de enfraquecer entre os cabo-verdianos com
quem conviveu, e a percepção que estes lhe comunicam de que, pelo contrário,
ela se vai tornando menos frequente porque as pessoas estão mais egoístas. Na
sua interpretação, esta discrepância resulta da interiorização de um discurso
individualista burguês em expansão, que, mesmo contra as evidências, leva os
seus informantes a encararem as suas práticas mutualistas como atrasadas e em
declínio[7].
Esta conclusão aproxima-se bastante daquela que Ana Luísa Mourão extrai no seu
artigo acerca da cabo-verdianidade e da africanidade enquanto construções
identitárias entre os cabo-verdianos que moram num bairro de realojamento
suburbano da Área Metropolitana de Lisboa. Em ambos os artigos, percepções da
população cabo-verdiana acerca dela própria são interpretadas como resultado de
um efeito de looping (noção que Ana Mourão toma de empréstimo a Ian Hacking e
que ecoa em muito o pensamento de Foucault), através do qual categorias que se
tornam hegemónicas criam tipos de pessoas que de certa forma não existiam
antes da sua disseminação social e da sua apropriação pelos próprios alvos
[8]. No artigo de Ana Mourão, as categorias em causa são os preconceitos
raciais disseminados na sociedade portuguesa. O argumento da autora, sustentado
numa etnografia muito detalhada, desenvolve-se em dois passos. Primeiro,
evidencia que os descendentes de cabo-verdianos (também chamados de segunda
geração) não se identificam primariamente como cidadãos portugueses, embora o
sejam na sua maioria, mas antes como africanos ou cabo-verdianos, embora pouco
saibam e pouco se interessem sobre Cabo Verde, país que muitos deles não
conhecem e que tendem a ver como atrasado. Para Ana Mourão, este distanciamento
em relação a Cabo Verde parece implicar que, quando se definem como cabo-
verdianos, os jovens fazem-no menos por sentimentos de pertença a um grupo com
referentes de origem e práticas culturais partilhadas, e mais por oposição aos
tugas, a uma sociedade portuguesa da qual fazem parte mas que os
discrimina por preconceito racial.
Algo que estes dois primeiros artigos põem em evidência é, portanto, a
reavaliação e a redefinição de práticas, projetos e identidades por parte de
migrantes e seus descendentes face aos discursos e categorias dominantes na
sociedade portuguesa na qual se inserem e às condições de vida que nela
encontram. A abordagem que Derek Pardue ensaia no seu artigo sobre o crioulo
cabo-verdiano enquanto epistemologia de contato segue em parte a mesma linha
de análise mas chega a conclusões bem distintas. O uso do crioulo, a língua
cabo-verdiana, pelos rappers da Cova da Moura e do Casal da Boba, no concelho
da Amadora, é entendido pelo autor enquanto meio de luta por reconhecimento,
respeito e direitos, contrariando quer a busca de assimilação numa sociedade
portuguesa branca, quer a evasão nostálgica num Cabo Verde utópico. As letras
dos rappers cabo-verdianos de Lisboa esteticizam a subalternidade e a
marginalidade social ao mesmo tempo que condenam a opressão e o sofrimento que
as acompanham. Recorrem àquilo a que Derek Pardue chama cronótopos (adaptando
um conceito da teoria da literatura de Bakhtin, por sua vez adaptado da teoria
da relatividade de Einstein), cápsulas de referentes espácio-temporais ligados
a diferentes contextos significativos da diáspora cabo-verdiana. Através deste
dispositivo, a cabo-verdianidade diaspórica configura-se e vai-se atualizando
como um espaço-tempo partilhado por pessoas física e geracionalmente separadas.
Para Derek Pardue, a própria língua crioula, dominante no rap afroportuguês,
língua de contato plástica e omnívora, facilita a justaposição de cronótopos
igualmente entendíveis e significativos para jovens cabo-verdianos de Lisboa,
de Paris, de Roterdão ou da cidade da Praia[9].
O artigo de Frank Nilton Marcon aborda um outro género musical e de dança cada
vez mais popular entre os jovens portugueses vindos de África e
afrodescendentes[10]. O kuduro, que se estabilizou como género diferenciado na
cena musical de Luanda por volta de 1990, expandiu-se rapidamente para lá das
fronteiras da capital angolana e encontrou em Portugal a banda que mais
contribuiu para o seu sucesso internacional, os Buraka Som Sistema. Frank
Marcon analisa os contextos de produção, circulação e fruição do kuduro na Área
Metropolitana de Lisboa e conclui que eles tendem a coincidir com os bairros
onde se concentram jovens afro-portugueses e que constituem um potencial
elemento de aproximação entre estes. O autor deixa também a sugestão, que
merece ser desenvolvida em futuras pesquisas, de que o kuduro não se confina às
populações afro e que deverá ser estudado como ingrediente de um estilo
próprio de uma certa condição juvenil e relativamente transversal à
diferenciação étnica e racial[11].
Das vivências e expressões das condições juvenis de rappers e jovens envolvidos
na cena do kuduro, o artigo de Augusto Nascimento transporta-nos às
experiências e políticas da condição feminina entre a população santomense da
Área Metropolitana de Lisboa, cuja dimensão, segundo o autor, oscilará entre as
quinze mil e as vinte e cinco mil pessoas[12]. O artigo centra-se na Mén Non
(Nossa Mãe em crioulo forro), nome da Associação das Mulheres de São Tomé e
Príncipe em Portugal, instituída em finais de 2010. Além de historiar o
surgimento desta associação, Augusto Nascimento foca a análise nos depoimentos
de várias mulheres santomenses acerca das suas experiências migratórias e das
suas perspetivas face ao futuro. Um ponto de convergência em todos esses
depoimentos é a importância que construir e conservar uma família conjugal
ocupa nos projetos de vida das santomenses, que são portanto projetos de
realização pessoal através da conjugalidade familiar. As razões da centralidade
deste modelo de família enquanto projeto de vida relacionar-se-ão em boa medida
com a sua idealização normativa, aliada, como refere o autor, à falta de
capital de muitas mulheres para poderem investir em projetos de realização
profissional ou económica. Com base nas suas experiências de vida em Portugal,
as santomenses tendem a encontrar neste país mais entraves àquelas que, em São
Tomé e Príncipe, consideram ser as principais causas da falência dos projetos
conjugais: a poligamia masculina de facto e o abandono por parte dos
companheiros. Esta percepção é invocada por várias mulheres como razão para
preferirem viver em Portugal, apesar da vida dura e das dificuldades económicas
que se acentuam com a crise, e apesar do racismo que por vezes sentem na pele,
em lugar de regressarem ao país natal. Em Lisboa, parece que a própria
precariedade das condições de vida dos santomenses concorre para que os homens
se mantenham mais amarrados às famílias que constituíram.
Tal como Augusto Nascimento, Rita Ávila Cachado vem dar voz ao feminino,
conduzindo-nos ao universo de um outro grupo da população da Área Metropolitana
de Lisboa proveniente de África, o dos indo-portugueses do Gujarati
estabelecidos em Moçambique durante o período colonial, a maioria como
comerciantes, que mais tarde se fixaram em Portugal. Muitos hindus-gujaratis de
Moçambique rumaram a Portugal e ao Reino Unido durante o processo de
descolonização, acossados pelo ataque à iniciativa privada, pela guerra civil e
pelo revanchismo e o racismo que marcaram os primeiros anos do pós-
independência. Mas mesmo no período colonial constituíam já uma população
transnacional, unida por redes familiares e comerciais com eixos nos antigos
territórios portugueses na Índia, em Moçambique e na África do Sul[13]. A
transnacionalidade, enquanto condição caraterística desta população, constitui
o objeto do artigo de Rita Cachado. Para guiar o leitor nos seus meandros, a
autora apoia-se na história de vida de uma mulher hindu-gujarati nascida em Diu
no final da segunda grande guerra. Uma visita recente desta senhora a Maputo,
cidade onde cresceu e viveu até 2000, ano em que veio para Lisboa, dá azo a que
se fale de um assunto recalcado em Portugal e noutros territórios da diáspora
hindu-gujarati: o estigma que acompanha a africanidade dos indianos do
Gujarati que viveram em Moçambique, uma africanidade que no caso em estudo,
como no de outros membros desta população, se não materializa apenas em
pequenos gestos quotidianos e no gosto (nos gostos culinários em especial), mas
também na aparência física (feições e cabelo em especial). A questão do racismo
entre hindus-gujaratis com passagem por África adquire, assim, uma relevância
que convida a mais estudos.
A concluir este número, Fernando Arenas oferece-nos uma panorâmica das
representações de africanos e afrodescendentes em Portugal no cinema e na
literatura contemporâneos. Juventude em marcha, de Pedro Costa (último de uma
trilogia de filmes rodados em torno do bairro das Fontaínhas, na Amadora,
antecedido por Ossos e No quarto de Vanda), Zona J, de Leonel Vieira, e A
esperança está onde menos se espera, de Joaquim Leitão, são os filmes sobre os
quais o autor se debruça, numa análise fina e atenta às diferentes formas de
representar o outro africano na sociedade portuguesa. No domínio da
literatura portuguesa mais recente, as obras selecionadas são os romances O
vento assobiando nas gruas, de Lídia Jorge, e O meu nome é Legião, de António
Lobo Antunes. De maneiras diversas, cujo exame ocupa o autor no miolo do
artigo, todas estas obras falam do racismo e da exclusão social, em diferentes
tramas e com diferentes nuances, de que são alvo os jovens afroportugueses. Por
esse motivo, Fernando Arenas considera que o cinema e a literatura em Portugal
têm sido mediadores culturais privilegiados de uma representação eticamente
comprometida do outro africano numa sociedade mainstream branca, que poderá
abrir espaço a uma verdadeira cidadania social (na acepção que Étienne
Balibar deu à expressão) da população afroportuguesa.
No seu conjunto, os artigos reunidos neste número vêm trazer novos contributos
para o conhecimento das populações africanas e afrodescendentes em Portugal,
dialogando com a vasta literatura existente sobre a temática, e também com
literatura internacional sobre imigração, transnacionalismo, juventude, género,
etnicidade, racismo e pós-colonialismo, para a qual trazem importantes
elementos comparativos. Enquanto organizador do número, resta-me agradecer aos
autores que responderam à chamada de artigos com excelentes manuscritos, aos
pareceristas externos que contribuíram com profissionalismo para elevar a
qualidade dos textos iniciais, e à Ana Bénard da Costa, ao João Dias e à Teté
Montenegro, pelo acompanhamento constante e cuidadoso de todo o processo
editorial.