Transnacionalidade e História de Vida: Uma mulher hindu de regresso a Maputo
Conheci M.[1] em 2001 na Quinta da Vitória, bairro de construção informal
localizado perto do aeroporto internacional de Lisboa. Tinha emigrado
recentemente de Moçambique para Portugal, em virtude das últimas cheias em
Maputo, poucos meses depois de uma das suas filhas ter vindo também para
Portugal, para o mesmo bairro. Outra filha, a mais velha, já vivia na Quinta da
Vitória desde 1992, ano em que casou. M. é de origem indiana, mas todos os que
travam conhecimento com ela notam os seus traços africanos. É muito dedicada à
religião, e muitas vezes assiste o mahraj (grosso modo, oficiante de rituais)
[2] em diversos tipos de rituais. Conheci-a no decurso da minha pesquisa sobre
o período final do colonialismo português em Diu.
Ao fim de vários anos de contacto permanente com M., começou a parecer-me cada
vez mais urgente escrever a sua história de vida. M. é daquelas pessoas a
quem os antropólogos costumam chamar informantes privilegiados. Além de me
fornecer constantes informações sobre os contextos e temáticas que estudei
junto de várias famílias hindus em Portugal e no Reino Unido, colaborava,
muitas vezes sem se aperceber, na minha aprendizagem da etnografia. Ajudou-me a
colocar em perspetiva hipóteses que pareciam ajustadas de início, mas que com
as suas histórias e ensinamentos se foram complicando e me levaram a repensar
as formas como procurava dar sentido aos dados etnográficos. A mistura de
trabalho e amizade complexificou aquela que inicialmente via como uma pesquisa
de curta duração, transformando-a num conjunto de trabalhos sobre vários
aspetos das comunidades hindus-gujaratis. O conjunto dos dados para dar a
conhecer o percurso de vida de M. parte sobretudo de entrevistas realizadas com
o fim de obter informações sobre o seu trajeto pessoal, e também de anotações
no diário de campo que acompanharam a minha relação com ela nos últimos onze
anos.
O pai de M. era tradutor de português-gujarate nas visitas dos administradores
coloniais às aldeias de Diu (e não só) e foi autor de um precioso dicionário de
transliteração entre as duas línguas para gujaratis que precisassem de saber
português. M. nasceu em 1945 em Goghla, uma aldeia que pertencia ao território
de Diu. Tem quatro irmãos. Os pais emigraram para Moçambique muito cedo e ela
foi estudar para um colégio interno fora de Diu, ficando ao cuidado de uma tia
quando regressava a Goghla de férias. Emigrou aos treze anos para Moçambique,
tendo ali vivido a transição de Goa, Damão e Diu para a União Indiana, em
dezembro de 1961.
Casou com quase trinta anos, em 1974, depois de alguns pedidos de casamento mal
sucedidos. Esta situação salienta desde logo uma exceção à regra entre as
raparigas indianas, que casavam cedo, em uniões preferencialmente pensadas
pelos pais de ambos os noivos. Nesta medida, M. desafia duplamente a literatura
clássica sobre as tendências familiares dos hindus em diáspora e, no seu mundo,
desafia os pais, que a veem primeiro namorar e depois casar sem a sua
autorização. Um relacionamento escorreito entre M. e os pais ficou desde logo
hipotecado. O marido não tinha trabalho quando casaram. Tinha servido o
exército português na guerra colonial. Antes e depois do casamento, M.
trabalhou numa pequena loja de alfaiataria no centro de Maputo, a alfaiataria
Bindu, localizada na Avenida Ho Chi Minh, numa zona de concentração residencial
hindu. A loja é hoje uma sapataria gerida por um chinês. M. e o marido tiveram
seis filhos, dos quais três morreram ainda bebés (dois meninos e uma menina),
ficando com três filhas. M. teve os filhos todos em escadinha, como costuma
dizer, e trabalhou sempre até ao último dia de gravidez, custava muito. Em
1974-1975 as lojas ficaram muito baratas, fáceis de vender e comprar e os
africanos tomaram conta de tudo, disse, resumindo assim o processo de
africanização.
As condições de vida começaram a piorar para os indianos. O marido foi colocado
em Salamanga como padre (palavras suas) e foram viver para lá. Salamanga fica a
uma hora de caminho depois de se passar o rio de barco para Catembe, a sul de
Maputo. Desde o início do século XX que muitos hindus vão lá prestar devoção a
um guru que apareceu no local vindo numa mala, no rio. Dizem diversos relatos
que Matma Bapa era um santo que andava à procura de um sítio para ficar.
Aportou em várias zonas costeiras, de norte a sul do país, mas gostou mais de
Salamanga. Assim como apareceu, desapareceu, mas deixou muita devoção pelo
caminho. Hoje em dia o templo de Salamanga é lugar de peregrinação para os
hindus residentes em Moçambique. É como Fátima ouvi muitas vezes, pois aquilo
que se pede ao santo será cumprido. O templo de Ram foi erigido em 1906. Para
entrar no nicho onde está o altar de Matma Bapa há que baixar a cabeça. A
representação do santo recebe dos devotos incenso, flores e cocos, tal como
as demais divindades, mas a oferenda preferida são panos brancos de algodão
para vesti-lo honradamente, como a um brâmane.
M. aprendeu a executar todos os rituais com o marido. Mais tarde, em Portugal e
em Leicester, veio a ser respeitada pelos seus conhecimentos aprofundados em
vários domínios da religião, dos preceitos rituais à cosmogonia, passando pela
astrologia hindu. No início dos anos noventa, o marido morreu de doença
prolongada e as condições de vida pioraram. As filhas tiveram de deixar os
estudos relativamente cedo e todas começaram a trabalhar.
Em 1992 a filha mais velha casou com um homem hindu-gujarati que tinha emigrado
para Portugal no início dos anos oitenta, no contexto das migrações mais
intensas para Portugal, concomitante com o agravamento das condições de vida de
M. e das filhas. Todas mantiveram passaporte português. Em Maputo, M. deu aulas
de gujarate e de inglês aos alunos da comunidade hindu da cidade. No início dos
anos 2000, a filha mais nova veio para Lisboa viver com a irmã, e cerca de um
ano mais tarde, a outra irmã e a mãe vieram também para Lisboa. Mudaram de casa
várias vezes, da Portela para Santo António dos Cavaleiros e de novo para a
Portela. Na Portela, a família vivia numa habitação de construção informal
alugada a outro agregado familiar que aguardava realojamento em habitação
social. A instabilidade desta situação levou-as a mudar de casa várias vezes
dentro do bairro. Durante dois anos viveram ainda em Santo António dos
Cavaleiros, em apartamentos alugados, mas depois regressaram à Portela, a outra
casa alugada a uma família por realojar.
Uma das irmãs casou no início de 2003 e teve uma filha. A outra tem também uma
filha, mas sem casamento, o que preocupa a mãe. Em 2004, uma das irmãs foi
viver para o Reino Unido, na cidade de Leicester, e mais tarde outra irmã e a
mãe juntaram-se-lhe. Leicester tem um longo historial de presença sul-asiática.
Muitas famílias hindus-gujaratis que emigraram de Portugal para o Reino Unido
no início dos anos 2000 escolheram Leicester para viver. Outras já viviam em
Wembley e Southall, nos arredores de Londres. Reading é outra cidade cada vez
mais falada entre a população. Mas em meados dos anos 2000, Leicester assistiu
a um acréscimo rápido de famílias vindas da Portela e de Santo António dos
Cavaleiros. Para os que vieram da Portela, a razão prendeu-se com o facto de se
sentirem cansados de esperar pelo realojamento ou por outra solução
habitacional. A oferta de emprego e a sedimentação da comunidade religiosa em
Leicester contribuíram em muito para darem esse passo. Foram estes os fatores
que conduziram à terceira migração de M. e das duas filhas mais novas.
Ao chegar a Leicester, foi diagnosticado a M. cancro da mama. A doença deixou-
a muito em baixo, provocando sentimentos de incerteza perante as opções de vida
das filhas e dela própria, e levando-a a acelerar o cumprimento de desejos
pessoais e familiares, de forma a poder ir embora descansada. Depois da
operação e dos tratamentos, M. foi recuperando aos poucos a saúde e a vontade
de viver, começando também a insistir no desejo de passar a velhice numa
instituição religiosa para não dar trabalho à família.
Ao nível das condições de vida gerais em Leicester, a melhoria viria finalmente
a verificar-se, mas no início elas eram piores do que em Lisboa, uma vez que
tinham de partilhar um quarto que era alugado a uma família que por sua vez
estava a alugar uma casa, verificando-se uma situação de sobrelotação
habitacional. Deste modo, em prol do prestígio simbólico que o Reino Unido
detém no contexto da diáspora hindu-gujarati, M. e as duas filhas mais novas
sujeitaram-se a condições de vida iniciais semelhantes às que tinham encontrado
nos países onde previamente viveram, menos valorizados pela diáspora.
Apesar das dificuldades iniciais vividas no Reino Unido, a verdade é que a
oferta de emprego é melhor e mais diversificada; o acesso à habitação promovida
pelo Estado tem listas de espera mas esta não ultrapassa um ano; para quem
pretenda alugar a senhorios privados, a oferta é igualmente grande; finalmente,
a oferta educativa e os transportes são eficazes. As filhas encontraram
rapidamente emprego, embora a situação habitacional tenha tardado um pouco mais
a estabilizar. Uma das filhas viu-se coagida a viver um período de cerca de
seis meses numa casa partilhada com outras famílias que aguardavam uma casa de
habitação municipal com rendas reduzidas e possibilidade de acesso a subsídios.
A outra filha e a mãe viviam numa casa alugada a um senhorio. Desde a chegada
ao Reino Unido até há cerca de três anos, M. hesitou entre viver com uma das
filhas ou sozinha, uma vez que tinha esse direito social. Mas o prolongamento
da residência em Leicester ensinou-lhe que a forte concentração residencial de
famílias hindus na cidade, e especificamente no seu bairro, não corresponde
diretamente a uma vida social intensa no seio da sua comunidade. É certo que a
elevada concentração de templos na cidade e o grande número de habitantes
hindus contribui em muito para o bem-estar social e cultural das famílias
gujaratis residentes, mas a convivialidade não se estabelece no mesmo grau que
em Lisboa ou Maputo. Como é repetido entre a população hindu proveniente de
Portugal a residir no Reino Unido, aqui ninguém tem tempo. Assim, M. optou
por viver com uma das filhas e seu marido. Desta forma, usufrui de companhia e
está disponível para acompanhar as netas sempre que necessário.
Panos de fundo transnacionais
O contexto desta história de vida não pode ser entendido sem dar conta das
redes transnacionais hindus e, mais concretamente, dos hindus que passaram por
Moçambique e Portugal antes de emigrarem para o Reino Unido. A
transnacionalidade constituiu-se nas últimas décadas como um conceito precioso
na literatura sobre migrações. Inscrito por Basch, Schiller e Blanc em 1994, e
desenvolvido criticamente por Nancy Foner (1997), desde então tem contribuído
para descrever e analisar uma grande parte das populações migrantes. A
perspetiva mais comum acentua as vantagens adaptativas nos países de destino
relativamente às necessidades de melhoria das condições de vida nos países de
origem como fator central na decisão de emigrar. Mas a tónica da
transnacionalidade recai sobre os grupos que, além da instalação nos países de
destino, mantêm redes ativas nos contextos nacionais de origem. Nos últimos
vinte anos o conceito ganhou lugar cativo nos estudos de migrações, e as formas
de ser sujeito transnacional, bem como os contornos daquilo a que se pode
chamar uma população transnacional, foram sendo objeto de crescente
complexidade analítica e conceptual.
Um dos debates mais ricos acerca da transnacionalidade diz respeito aos tipos
de pertença e às variantes nas redes estabelecidas. A escala urbana ganha
particular relevo neste debate, uma vez que os sujeitos transnacionais, além de
se moverem entre países, vivem e movem-se entre cidades com ofertas cada vez
mais específicas (Schiller & Çaglar, 2009, p. 178), desde os tipos de
comércio às políticas urbanas ou à oferta local educativa, habitacional,
cultural e religiosa. Schiller e Çaglar alertam para o facto de os estudos de
migrações e transnacionalidade raramente equacionarem os atores sociais em
causa como cidadãos residentes em cidades; nesse sentido, as autoras promovem
um debate que acrescenta finalmente o referente urbano ao referente nacional,
inscrevendo-o na equação da transnacionalidade (Schiller & Çaglar, 2011).
As abordagens antropológicas das populações sul-asiáticas em diáspora
contribuem para esta literatura de diferentes maneiras. Existe já uma vasta
produção no contexto anglo-saxónico, que retrata as migrações sul-asiáticas
para os países do leste africano, anteriormente colónias britânicas, e
posteriormente para a antiga metrópole. Esses estudos, embora se refiram
sobretudo a processos de adaptação à sociedade de acolhimento (e.g. Ballard,
1994), retratam também os contextos urbanos onde as populações imigradas
residem[3]. Como oportunamente refere Karen Olwig, as migrações dizem mais
acerca do papel que os lugares, os destinos e os percursos ocupam na vida das
pessoas do que acerca de processos de integração (Olwig, 2007, p. 21). Entre os
sul-asiáticos, os hindus-gujaratis ocupam um lugar central nos estudos de
diáspora e de transnacionalidade (Knott, 2000; Rutten & Patel, 2003;
Vertovec & Wessendorf, 2005, entre outros), tanto devido à longevidade das
suas migrações, como aos trajetos plurais entre o subcontinente indiano, a
África Oriental e a Europa.
A grande maioria dos hindus residentes em Portugal apresenta percursos
semelhantes aos que encontramos no contexto pós-colonial britânico, muito
embora exibam particularidades decorrentes do contexto colonial português. A
literatura sobre o contexto português é cada vez mais vasta, apesar de a sua
inscrição na literatura internacional se ter vindo a verificar lentamente. Este
corpo de trabalhos foi iniciado em 1990 por Susana Pereira Bastos, com um
estudo encomendado pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil sobre o então
bairro de construção informal Quinta da Holandesa (Bastos, 1990). Aí, Bastos
descreve pela primeira vez a presença de hindus em Portugal, destacando algumas
características no âmbito das práticas religiosas, mas analisando sobretudo a
família e a casa, uma vez que o estudo procurava responder às necessidades de
conhecimento de populações que iriam ser realojadas em breve. Bastos continuou
a produzir a mais vasta obra sobre hindus em Portugal e em Moçambique, não
esquecendo os outros polos da diáspora, ao longo dos últimos vinte anos. O
trabalho de Jorge Malheiros (1996) retrata a instalação de populações de origem
indiana na Área Metropolitana de Lisboa, registando pela primeira vez dados
estatísticos sobre a população. Na década de 2000, a estes juntaram-se outros
autores que vêm contribuindo igualmente para detalhar o conhecimento sobre as
populações hindus em Portugal[4].
Muitas famílias hindus-gujaratis residentes em Portugal emigraram inicialmente
de Diu (Gujarate, Índia) para a África Oriental ao longo da primeira metade do
século XX. Mas a presença de indianos em Moçambique inscreve-se não só no
contexto do colonialismo português na Índia (Goa, Damão e Diu) como também no
contexto do colonialismo britânico (Leite, 1996), nomeadamente de cidades como
Porbandar e Rajkot, só para mencionar as origens mais comuns, e é a partir do
Gujarate britânico que partem maiores contingentes para todo o leste africano,
Moçambique inclusivamente. Depois de 1975, quando da independência de
Moçambique, o processo de africanização dos serviços e o agravamento da guerra
civil provocaram, no médio prazo, uma nova corrente migratória. Uma parte das
famílias voltou para a Índia, mas milhares escolheram a ex-metrópole para
viver. Esta migração deu-se sobretudo no início dos anos 1980, havendo registos
da chegada de famílias hindus a Portugal desde 1976. As famílias foram viver
para áreas residenciais e seguiram padrões específicos no que toca ao acesso à
habitação, tal como aconteceu no Reino Unido depois das independências dos
países da África Oriental.
Em termos resumidos, distinguem-se três padrões de residencialidade inicial na
Área Metropolitana de Lisboa. Por um lado, há os que foram viver para bairros
de construção informal, nomeadamente o já referido bairro Quinta da Holandesa,
e também o bairro Quinta da Vitória, na Portela de Sacavém. Por outro lado,
regista-se uma grande concentração residencial em Santo António dos Cavaleiros
(Loures, a norte de Lisboa), uma freguesia que oferecia, na zona suburbana
contígua à capital, casas a baixo custo. Finalmente, existe um terceiro grupo
de hindus-gujaratis que não obedece à concentração residencial, estando antes
disperso por toda a Área Metropolitana de Lisboa. Podemos num primeiro relance
diferenciar estes grupos quanto ao nível económico, ou quanto à pertença de
casta, mas os estudos de pormenor põem em causa estas distinções generalizantes
(Lourenço, 2009; Cachado, 2012).
Para lá da contextualização dos percursos migratórios dos hindus-gujaratis nas
últimas décadas, importa referir que a associação entre a África Oriental e o
subcontinente indiano é muito mais antiga do que este contexto migratório
múltiplo e que vários estudos o têm referido e analisado. Desde pelo menos
Kuper (1960), que estudou a população hindu em Natal, que as migrações e
interações comerciais e culturais no Índico vêm sendo objeto de análise[5]. No
âmbito da produção académica portuguesa, o contexto mais estudado tem sido o
das relações comerciais. O estudo de Ávila e Alves (1993) analisa a integração
dos comerciantes indianos em Portugal. Joana Pereira Leite, no campo da
história económica, analisa as migrações do subcontinente indiano para
Moçambique no quadro das relações comerciais que tiveram lugar no final do
século XIX e início do século XX em toda a costa leste africana, com o Raj
britânico a dirigir uma elevada mobilidade (Leite, 1996). Nuno Dias (2009)
relativiza uma parte das conclusões retiradas pela produção académica anterior,
sobretudo as dos trabalhos que analisam a migração a par das relações
económicas. Tal como os demais autores, encontrou dificuldades estatísticas na
análise das sucessivas migrações, mas através dessa lacuna na informação
disponível verificou que não poderia tecer conclusões que permitissem apelidar
as populações em causa como migrantes económicos tout court, ou especialmente
propensos à mobilidade transnacional (Dias, 2009, p. 268).
As relações comerciais desenvolvidas no secular cruzamento do Índico fazem no
entanto salientar outras dimensões, entre as quais se destacam os cruzamentos
étnicos. Se os sinais exteriores de africanidade são evidentes numa parte das
populações de origem asiática presentes no continente africano, eles são
contudo raramente equacionados na literatura. Já no que toca à presença
africana na Índia, apesar de escassamente analisada, conta com contributos
importantes, como os de Edward Alpers (2000) e Beheroze Shroff (2008). Os
autores referem a invisibilidade da presença de africanos na Ásia do Sul na
literatura e analisam-na, embora não tanto as posteriores deslocações, de novo
para África, depois para a Europa, no contexto da diáspora sul-asiática.
Importa notar que estes cruzamentos étnicos não se fazem apenas num sentido. A
longevidade das relações entre os dois lados do Índico conduziu a situações
variadas, entre as quais a emigração da Índia para o leste africano de sul-
asiáticos de ascendência africana, seguindo afinal a tendência diaspórica. Ou
seja, assim como muitos africanos emigraram ao longo dos séculos para a Índia,
e aí se cruzaram, as migrações da costa ocidental da Índia para a costa
oriental africana refletiram necessariamente esses cruzamentos. Em diversos
romances, V. S. Naipaul (e.g. 1979) retrata esta mistura e seus contornos de
interação cultural. Também Marta Jardim observa o suposto racismo inerente ao
hinduísmo, pondo-o em causa, trazendo precisamente para análise os contextos
familiares hindus em Moçambique (2006, pp. 96-98). Mas o interesse da
literatura académica pelas populações mistas, de origem familiar africana, com
naturalidade indiana e emigrando no contexto da diáspora para o leste africano,
é ainda limitado face à visibilidade da presença africana na Índia em geral.
Uma das populações mais focadas na literatura dedicada à presença africana na
Índia são os sidis, uma casta de pescadores de origem africana, presentes na
costa ocidental do subcontinente indiano e que se encontram também em Diu,
embora não constituam a única população de origem africana na Índia. Entrando
brevemente no trabalho de campo etnográfico, importa aqui referir que a
expressão mistos é utilizada por famílias onde a presença de ambos elementos
' africano e asiático ' é assumida sem qualquer complexidade identitária. Ao
contrário, aqueles para quem a presença de traços africanos na família provoca
incómodos, tendem a não utilizar a expressão mistos, nem qualquer outra,
porque não é assumida (não propriamente ocultada mas apenas não assumida/
presente). Existem assim outras castas de pescadores e de estivadores com longo
historial de cruzamento do Índico. No caso em apreço neste artigo, estamos
perante uma família karva. No entanto, não trazemos para este artigo um debate
sobre a alteração de estatutos de casta e das próprias castas em contexto de
diáspora. O que pode ser interessante referir é que a família em causa refere-
se aos karva como uma casta de navegadores, reivindicando um estatuto diferente
do de pescadores ou de estivadores.
Transnacionalidade e história de vida
Uma das formas mais eficazes de conhecer os meandros da diáspora hindu-gujarati
é através das histórias de vida singulares ou familiares, já que as famílias
transnacionais têm laços nos vários polos da diáspora. As sucessivas migrações
decorrem, para além do clássico factor da vontade de melhorar as condições de
vida, de situações específicas nos países de onde os emigrantes partem. A
história recente do cruzamento do Índico e da mobilidade transnacional múltipla
decorrente é composta por um conjunto de episódios nas vidas das famílias que
saíram da Índia para África e de lá para as ex-metrópoles, episódios esses que
correspondem a momentos de tensão política ou social nos contextos nacionais
onde elas viveram.
Estas famílias podem ser apelidadas de transnacionais não só pelos trajetos e
pelas pertenças entre vários países, mas também porque decorreram grandes
transformações ao longo das suas vidas, como é o caso da passagem de regimes
coloniais para pós-coloniais. Ou seja, viveram processos de independência, com
uma parte da família num país e outra parte noutro, situações que acarretam um
conjunto de mudanças, desde a ambiguidade da nacionalidade dos que, como os de
origem sul-asiática, não são nem colonos das metrópoles nem autóctones dos
países recém tornados independentes, até à instabilidade política dos países
recém formados, por vezes em guerra, como foi o caso de Moçambique. No curto a
médio prazo após as independências, muitas famílias optaram por viver nas ex-
metrópoles, onde encontraram condições de vida melhores. No caso dos que
emigraram para Portugal nos anos 1980, a decisão de voltar a emigrar chegou no
final dos anos 1990. Muitos seguiram a tendência alargada da diáspora hindu-
gujarati para o Reino Unido. Como já aflorado anteriormente, as motivações para
esta nova vaga migratória passam pelas redes familiares estabelecidas em várias
cidades britânicas, pelo poder simbólico de viver no Reino Unido baseado na
sedimentação das comunidades religiosas (Bastos, 2005), pela qualidade do
ensino superior, e finalmente pelas vantagens sociais (notavelmente superiores
às do sistema social português).
A opção metodológica pelas histórias de vida familiares para melhor contar
estes processos complexos de transnacionalidade não é nova, mas não é muito
comum. Destacaria aqui os trabalhos de Gijbert Oonk (2009) e de Karen Olwig
(2007). Estes autores têm-se dedicado ao estudo das diásporas através das
histórias de vida. Oonk tem estudado a diáspora sul-asiática (Oonk, 2007), com
particular destaque para os percursos prolongados na costa leste africana.
Recentemente publicou um livro ilustrado sobre a história de uma família de
origem indiana, com um percurso estável enquanto comerciantes e com grande
influência económica sobre muitas outras famílias sul-asiáticas no leste
africano. Olwig, por seu lado, trabalha com famílias caribenhas que migraram
várias vezes e acompanha sobretudo três famílias nos seus percursos. Na sua
abordagem, salienta que as relações familiares desempenham um papel central nas
redes migratórias (Olwig, 2007, p. 12), mais do que esperado tendo em conta os
percursos individuais de mobilidade social ascendente dos migrantes. Mas além
das famílias, a autora destaca a importância dos lugares de instalação,
temporária ou permanente, onde as aldeias e cidades jogam papéis mais decisivos
do que os países (Olwig, 2007, p. 15). Nesse sentido, Olwig está próxima de
Schiller e Çaglar (2009) na inclusão dos referentes urbanos na equação da
transnacionalidade, deixando os processos identitários relacionados com os
países no plano mais conjuntural. E as histórias de vida surgem como enfoque
ideal para análises detalhadas sem perder de vista os panos de fundo nacionais.
Através de uma história de vida e da viagem de regresso ao país onde a nossa
protagonista viveu mais anos, contamos contribuir para uma literatura renovada
sobre as migrações transnacionais. Neste artigo seguimos a proposta
metodológica dos autores acima referidos, através de uma história de vida
familiar partindo, neste caso, de um sujeito. Assim sendo, importa determo-nos
brevemente nas vantagens e nuances desta metodologia.
As histórias de vida em geral e as familiares em particular são uma aposta
metodológica com longa tradição nas ciências sociais. Não cabe aqui fazer uma
resenha da história do método nem enumerar as suas vantagens e desvantagens[6],
mas tão só notar algumas potencialidades especificamente importantes para o
caso que será apresentado, destacando alguns contributos que consolidam esta
opção.
As convenções clássicas que nos convocam para a importância da relação estreita
entre histórias de vida e história social (Halbwachs, 1925; Thompson, 1978;
Bertaux & Bertaux-Wiaume, 1980; Pujadas, 1992) sublinham a
complementaridade entre ambas; ou seja, se as histórias de vida nos podem
ensinar sobre as conjunturas sociais nas quais se inserem os indivíduos e as
famílias estudados, para compreender uma história de vida em particular é
preciso compreender o contexto histórico social envolvente (Bourdieu, 1989).
Relativamente ao caso apresentado neste artigo, cabe dizer que se começou
precisamente, em trabalhos anteriores, por procurar compreender os processos
históricos e sociais mais amplos. A partir dessa compreensão, uma etnografia
continuada deu lugar e voz a uma história de vida, que acabaria por condensar o
percurso de transnacionalidade de uma população, com pontos nodais nos
processos de mudança acelerada.
A literatura que se dedica a esta metodologia destaca as formas de exposição
das histórias de vida. Até ao alerta sobre a ilusão biográfica de Bourdieu,
muitos autores confiavam nos relatos na primeira pessoa como melhor forma de
contar as histórias de vida. Embora reconhecendo a subjetividade inerente à
metodologia, defendiam que, por dar voz direta aos interlocutores, ela permitia
ao investigador passar para segundo plano na interpretação e deixar os relatos
falarem por si próprios. Esta ilusão não retira mérito a trabalhos como os de
Oscar Lewis (1959, 1970) e de Shostak (1993 [1981]), o primeiro sobre famílias
mexicanas e porto-riquenhas das classes desfavorecidas e o segundo sobre Nisa,
uma mulher !Kung.
Neste artigo são utilizados vários termos de forma aparentemente aleatória, de
história de família a percurso de vida, passando por relato de vida. Isto
verifica-se em virtude de ter recorrido a vários tipos de registo para expor
uma história de vida transnacional. Por um lado, não foi apenas uma mulher que
foi entrevistada para escrever a sua história. A etnografia subjacente a este
artigo refere-se a toda a sua família e aos seus vizinhos nos diferentes locais
de residência. Apesar de ter juntado muitos relatos de vários seus familiares,
não estamos porém em posição de fazer uma história de família tout court. A
história em causa diz muito mais respeito a M. do que a qualquer outro elemento
da sua família. Para a exposição desta tive em atenção a cautela de Paul
Thompson (1978): queremos apresentar testemunhos e argumentar por uma
interpretação histórica, ou preferimos abordar a história através da biografia?
Podemos, consoante os casos, utilizar apenas uma entrevista, coligir várias
histórias, fazer uma análise narrativa a partir de um testemunho ou tratar os
dados orais no sentido de construir um argumento sobre padrões de comportamento
ou eventos do passado (Thompson, 1978, pp. 266-276). Trago aqui o percurso de
vida de M. para o analisar depois no seu contexto histórico e social. A nossa
personagem central percorre os diferentes tempos como quem visita uma exposição
numa atitude distraída, ou seja, as obras presentes na exposição são
importantes mas, sem o visitante que pensa, lembra e destaca cada peça, dizem
pouco.
Para perceber melhor este percurso, importa falar sobre o polo da diáspora onde
M. viveu mais tempo, trazendo por isso para aqui a viagem que realizei com M.
em julho de 2011. Apresento pois de seguida uma etnografia recente, em que M.
revisita o país onde passou a maior parte da vida, Moçambique. Esta última
viagem traz novos elementos a uma vivência de transnacionalidade que parecia
sólida e em tudo semelhante a outras vivências de diáspora.
Um regresso a Maputo
Em 2011, a estabilidade sentida por M. faz com que se decida a revisitar a
família e amigos em Maputo, doze anos depois de ter deixado a cidade.
Moçambique foi o país onde viveu mais tempo, quarenta anos. Surpreendentemente,
nesta viagem realçam-se as características africanas que M. parecia por vezes
querer esconder nos outros países em que viveu. A insistência em trazer
produtos africanos de volta a casa demonstra como, afinal, a sua africanidade
escondida sob a capa de uma religiosidade acentuada, nem sempre se mantém
ausente da sua identidade transnacional. Mas a viagem e, sobretudo, alguns
episódios, ilustram melhor esta dinâmica, bem como a valorização que M. faz das
situações por que passa.
Ao chegar a Maputo, depois da espera pela bagagem e do carimbo no passaporte,
as malas grandes tiveram de passar pelo raio-X. De quem são estas malas? Isto
no mínimo vai para uma multa de cinco mil meticais. Esta abordagem inicial
implicou uma explicação sobre o conteúdo das malas. Na verdade, as malas dos
viajantes hindus a um dos países da diáspora vão quase sempre recheadas de
oferendas a familiares. No caso de M., que viveu tantos anos em Maputo e que
não visitava a cidade havia treze anos, essa necessidade era ainda mais
acentuada. Por isso, M. levava toalhas de mesa de Portugal, saris de Leicester,
entre outras lembranças mais pequenas da Europa para os amigos e familiares que
iria visitar nas três semanas seguintes. Apesar do nosso esforço, tivemos de
pagar uma multa porque eram coisas de mais, não podem vir com tanta
mercadoria'.
À nossa espera estavam R., irmã de M. e nossa anfitriã, e J. e D., sua esposa,
em cuja casa iríamos também ficar hospedadas, mas ao saber que viviam num
quarto andar, M. declinou o convite destes, uma vez que tem dificuldade em
andar e subir escadas. R. é uma conversadora nata. Tem sempre coisas para
contar, por gosto ou necessidade. Descreve, levanta hipóteses, especula,
inquire, relembra. Mesmo grande parte do seu trabalho diário de professora
universitária consiste em falar, pessoalmente e ao telefone. Com ela não há
momentos mortos e com cada história se aprende mais. R. é casada com um
moçambicano, nem hindu nem de origem indiana, por isso a estada em sua casa
revelou, por si só, os meandros das famílias mistas. Através das conversas,
onde muitas vezes entravam também o marido e o filho mais velho, salientou-se a
sua perspetiva e a sua experiência.
Na casa havia criados e isso representou para mim, enquanto investigadora, a
aprendizagem de uma nova linguagem. Eram três criados, uma delas, Dona S.,
havia vinte anos, por isso M. já a conhecia e fizeram uma festa quando se
reviram. Na casa estavam ainda o filho mais velho de R., a sua nora e o seu
neto de nove meses.
Logo no primeiro dia, R. revelou o argumento principal da sua versão da
história aqui em destaque, que passa pela questão do racismo. Premissas
principais: R. e M. são de uma família bastante misturada. M. é hindu e muito
devota. Casou com um brâmane. Mas as feições e o cabelo encaracolado não
desapareceram com a religião. R. refere que quando há insultos a alguém da
família, recebem insultos racistas. É verdade que M. demorou alguns anos a
confiar-me a sua ascendência mista sem constrangimentos, mas nunca falou em
racismo ou outros preconceitos relacionados. Sofri muito, isso sim, sempre
repetiu ao recordar as suas diferentes adaptações no processo migratório.
À chegada organizou-se a entrega das encomendas, que prosseguiu de modo geral
ao longo dos primeiros dias. As ofertas foram-se redistribuindo porque M. se
foi lembrando de mais pessoas além das previstas inicialmente. A tarefa é mais
complexa do que parece à primeira vista. A cada embrulho é dado o nome da
pessoa a entregar; depois, face à necessidade de refazer as ofertas, por vezes
os embrulhos são repartidos em presentes mais pequenos; finalmente, é
necessário fazer uma lista da ordem de entrega, que por sua vez será também
refeita de acordo com a sucessão das visitas. Além dos presentes, há também
algumas pequenas encomendas que outras pessoas pediram para entregar[7].
No dia seguinte à chegada, M. estava aborrecida. Cansada, parecendo mais velha
do que é, não podia andar muito, nem tinha os números de telefone de todas as
amigas. Parece que ninguém sabe que estou aqui. Apesar de ser ainda o segundo
dia, a expetativa de rever as amigas era muito grande. E logo nessa tarde
começaram os encontros. O primeiro foi com N., filho de C., uma amiga de M. com
quem esta chegou a viver uma temporada. N. é gerente dos carregamentos de
telemóvel, que aqui se fazem, por norma, nas ruas. Rapazes novos de colete com
a marca da operadora vendem cartões de vinte, cinquenta, cem, às vezes
seiscentos meticais, que têm um código para introduzir no telemóvel e assim
carregar o saldo. M. e N. estavam muito contentes por se encontrarem. Trocaram
números de telefone. Já era um princípio para encontrar os contactos de outras
amigas. Ainda nessa tarde, passámos na loja Electrobrinde, onde entregámos a
pequena encomenda que o patrão de uma das filhas de M. enviara para o tio.
Seguiu-se outra loja, onde M. se encontrou com T. Era uma loja de roupa que
fazia lembrar as antigas lojas de roupa de Lisboa, com um grande balcão em U e
prateleiras até ao teto. Cabides com os modelos mais atuais, e variedade para
todas as idades. Nessa noite M. começou a pensar em compras. Três semanas
pareciam-lhe pouco tempo, por isso tinha urgência em saber onde eram os
mercados e as feiras. E disse: O que é especial aqui? Capulanas, pau-preto,
tenho de dar voltas, ver novidades. A mala é o centro da viagem. Depois de
esvaziada dos presentes, vai sendo recheada com prendas para o regresso a casa.
Um dia, depois do jantar, as duas irmãs estavam dispostas a conversar para lá
das habituais conversas familiares. Perguntei sobre as castas, não por
curiosidade, uma vez que já sabia a que casta pertencia M., mas para tentar
perceber a sua perspetiva. As explicações sobre as castas são quase sempre
pessoais e dependem muito da experiência de cada família, já para não dizer de
cada pessoa. Neste caso, a mistura entre indianos, africanos e asiáticos conta
na balança dos argumentos, mas também conta a idade de quem fala. É raro um
jovem mostrar juízos de valor sobre outras castas. Pode refutar o sistema de
castas e, por isso, por norma, frente a quem não tem casta, evita desenvolver
considerações sobre as outras castas. Os mais velhos tendem a apontar-se mais
uns aos outros, mesmo quando concordam pouco com o sistema. Têm menos
resistência a ceder ao juízo de valor, que pode incidir sobre uma determinada
casta onde as pessoas não praticam aquilo que dizem que praticam, como por
exemplo relativamente aos hábitos alimentares, ou aquela casta onde eram de uma
maneira na Índia, mas aqui como têm negócios já são doutra. O pai de R. e de M.
era karva, casta de Goghla de pescadores e marinheiros, mas o que interessa,
para elas, é a religião e não a casta. No Reino Unido, muitos casam fora da
casta, dizem, inclusivamente com castas consideradas de baixo estatuto.
Numa noite, R. e M. falaram-me sobre uma grande festa que tem lugar em Goghla,
no dia do Raksha Bandan. O Raksha Bandan (laço de proteção) é mais conhecido
por ser o dia em que se comemora o parentesco classificatório entre irmãos.
As mulheres oferecem uma pulseira aos amigos homens, que simboliza o elo de
irmãos entre não irmãos de sangue. Este é o dia grande do calendário hindu
para os karva. Cada chora (que segundo elas é uma espécie de bairro que
corresponde mais ou menos à linhagem familiar, gotra) tem a sua bandeira, que
nesse dia é deitada ao mar, com um coco. M. lembra-se bem desta festa em
pequenina. A tia dela mandava-a usar uma jóia da mãe na ocasião. Quando foi à
Índia há uns anos atrás, calhou ser o mês de Sravan (mês do calendário hindu
que compreende mais rituais) e também assistiu. O Raksha Bandan tem lugar na
lua cheia do mês de Sravan. Por isso, e por causa do ritual específico do
lançamento do coco ao mar, este dia também é chamado, como especificou M.,
Narieri Punam (lua de coco).
R. e M. contaram mais coisas dos marinheiros. Quando morrem no mar deita-se o
corpo à água ' como acontece em muitos outros contextos culturais ' e depois
faz-se um funeral hindu com pira funerária, em que o corpo é representado por
uma escultura tosca com forma humana, fabricada a partir de um tronco de
bananeira. Os olhos da pessoa são feitos com conchas.
Todos os dias havia novas visitas a realizar. M. falava demasiadas vezes na
última vez que via as pessoas. Considerava esta viagem como uma visita
necessária às pessoas que a ajudaram e a quem ajudou nos anos em que viveu em
Maputo, antes de partir ' ninguém sabe qual é [o]dia, mas essa doença
Apesar dos sessenta e cinco anos, M. tem sempre presente o cancro que venceu,
as tremuras atuais, os nervos, os esquecimentos, a falta de mobilidade que às
vezes se acentua.
Uma das ruas mais visitadas ao longo de toda a estada foi uma rua onde vivem
muitas famílias de origem indiana (mas onde já viveram muitas mais), que
corresponde a uma parte da Avenida Ho Chi Minh. M. trabalhou aqui na
alfaiataria Bindu, como já referido. Os empregados não sabiam da história
recente da loja, apenas que mudou de dono várias vezes. A loja já não tinha os
armários antigos, mas M. reconheceu-a ainda assim: entra-se e o balcão é à
direita, disse, antes de descobrir a loja certa. Atrás era a zona dos
tecidos. Não havia muitos metros de cada tecido, poucos mais do que o
necessário para cobrir cartões, dos quais o tecido pendia cerca de dois palmos,
para dar a ideia à clientela de que era bastante. M. e o marido trabalharam na
loja até 1976.
Um dos principais templos da comunidade hindu fica muito perto da antiga loja,
na Avenida da Guerra Popular, uma perpendicular à Avenida Ho Chi Minh que desce
para o rio. O templo é recente mas a escola da comunidade tem sessenta e poucos
anos, a idade de M., e os primeiros passos da comunidade remontam a 1932. A
visita à escola foi particularmente emocionante para M. Ao entrar no edifício
onde funciona a sala de aulas, M. viu Prayaben, sua antiga colega, a dar uma
aula de gujarate a crianças entre os cinco e os oito anos. Cumprimentaram-se
calorosamente. Perguntaram pela saúde uma da outra, pelos filhos, como corriam
as coisas na escola. Depois chegou Xiina, que foi igualmente professora e agora
é secretária da associação. Passámos ao edifício seguinte, atravessando um
pátio. Ali estava Paulino, moçambicano. Trabalha na comunidade há mais de vinte
anos e disse a brincar que já era meio hindu. Paulino e M. riram-se com o
reencontro, abraçaram-se e falaram de coisas triviais. Chegou também Baraben,
que trabalha igualmente para a comunidade. Gere o material e ajuda nas
limpezas. Conhece bem a antiga professora e as duas mulheres cumprimentaram-se
e puseram a conversa sobre a comunidade em dia. O templo propriamente dito fica
atrás do edifício central de apoio à comunidade. À entrada há um placar
referindo quem contribuiu para a sua edificação, o que é constante nos templos
hindus. A sala principal do templo terá uns quinhentos metros quadrados. Aí, M.
encontrou muitas pessoas que não via desde que saíra de Moçambique e ficou
feliz ' agora já estou contente, como já vi as pessoas. Foram muitas, entre
antigos alunos de gujarate, amigos e amigas, familiares distantes. Uns já
sabiam que ela estava em Maputo, mas para outros foi uma surpresa encontrá-la.
Perguntaram-lhe pelas filhas e quantos netos já tinha.
Um dia ao pequeno-almoço, o marido da irmã de M. também estava presente. Na
conversa dessa manhã aprendi mais sobre os preconceitos locais, a propósito da
palavra monhé, que a nora de R. disse ser um diminutivo de muçulmano e que
era usado apenas relativamente aos muçulmanos, à partida. Os portugueses é que
chamam monhés aos muçulmanos e outros de origem indiana. A expressão insultuosa
para os indianos até há uns tempos atrás era Balavas Piripiri Mangus, uma
expressão muito longa para insulto. Balavas vem de dal, a sopa de lentilhas
confecionada quotidianamente pelos indianos; Piripiri é evidente, e Mangus (não
explicaram) virá de mangustão? As designações com carácter insultuoso que
serviam para diferenciar os indianos uns dos outros eram monhés e banianes,
muçulmanos e indianos comerciantes, embora também haja banianes muçulmanos.
Depois do mata-bicho de sábado, M. foi finalmente a um mercado de artesanato,
que fica ao lado da fortaleza, junto ao mar. Ao chegar fomos abordadas por
profissionais do regateio. O mercado tem novidades e produtos clássicos
turísticos para todos os gostos. Além de curiosa por saber os preços do pau-
preto e do marfim e respetiva autenticidade, M. interessou-se pelas capulanas.
Há-as da Suazilândia, do Quénia, do norte de Moçambique, com padrões grandes e
pequenos, com quadrados. M. regressou a este mercado três vezes durante a sua
estadia e visitou quase todos os dias lojas para comprar capulanas e outras
lembranças de Moçambique. O artesanato moçambicano é mais importante do que por
exemplo as iguarias, que apenas se encontram em Maputo. É certo que M. comprou
vários sacos de caju torrado, mas o seu maior investimento foi no artesanato
moçambicano. Ainda assim, a ida ao mercado central foi uma festa. Há uma grande
extensão de bancas apertadas cheias de legumes e fruta e, em duas ou três
bancas, as delícias procuradas por M., que são o caju torrado, tinziwa e mel
puro de Quelimane. O primeiro não se encontra facilmente em Portugal. Tinziwa
parecem amendoins com a casca de dentro rosada, mas são maiores, esponjosos e
ligeiramente amargos. Eram o pedido especial da filha mais velha de M., porque
não se encontram em Portugal. O mel puro de Quelimane era para a outra filha.
Cada frasco tinha dentro um bocadinho de favo. A senhora que lhe vendeu o mel e
o caju reconheceu-a e fez-lhe uma festa, mas não estava disposta a baixar os
preços e só permitiu um desconto de vinte meticais em quatrocentos e cinquenta.
Demos uma volta pela zona do mercado dedicada ao artesanato. Aí encontrámos um
senhor que conhecia bem M., e ficaram os dois a conversar um bom bocado. Mais
umas bancas e chegámos a outra mercadoria procurada, o marfim. M. e R.
reprovaram os preços adiantados pelo vendedor. Quando vivia em Maputo, M.
visitava este mercado quotidianamente. Além do artesanato e dos produtos
locais, vendem-se legumes e frutas frescas, carne e peixe, e há também lojas
com artigos de higiene.
Numa noite, à semelhança do que ocorreu noutras conversas que tínhamos tido em
Leicester, M. falou da sua vontade de ir para um lar para não dar trabalho,
até porque a partir de determinada altura, se as filhas trabalharem, não dará
para ficar sozinha em casa, a precisar de cuidados que não lhe podem dispensar.
Por isso é preciso ser poupada ' ter uma latinha (mealheiro) para poupar
cinquenta, cinquenta (libras) de cada vez. A irmã não concordou, e vê-se aqui
uma diferença grande entre quem vive na Europa e quem vive em Moçambique, para
quem é muito difícil aceitar que se depositem os mais velhos nos lares ' por
muito bons que estes sejam, incluindo médico em permanência e enfermeiros
especializados. Mas importa lembrar que no Reino Unido é preciso ser muito
abastado para ter empregados domésticos a tempo inteiro, ao contrário do que
acontece em Moçambique.
O dia mais esperado de toda a viagem era o dia de ir a Salamanga, onde M. viveu
com o marido e as filhas por cerca de dez anos, e onde o marido oficiava as
cerimónias religiosas e M. o ajudava. Salamanga fica a uma hora de caminho
depois de atravessar o rio em ferryboat. M. marcou uma cerimónia em honra do
marido e dos seus pais, já falecidos. Convidou familiares e amigos e alugou uma
carrinha com motorista. Nos dias que antecederam a jornada, a irmã e uma amiga
fizeram as compras para o almoço que seria servido depois dos rituais. A
carrinha alugada para levar quinze pessoas partiu antes do amanhecer. O barco
começou a atravessar o rio às seis e quarenta. O sol nasceu então. A travessia
foi curta, em menos de quinze minutos estávamos em Catembe.
Até Salamanga, foi uma hora de caminho. O templo de Salamanga, Ram Mandir, é
espaçoso. O altar mais visitado é o dedicado a Matma Bapa, a divindade que
apareceu em Salamanga numa mala de viagem, na viragem do século XIX para o XX,
tendo escolhido aquele lugar depois de passar pela Ilha de Moçambique e por
Inhambane. Para cumprir a cerimónia, M. e a irmã sentaram-se junto ao mahraj,
bem como um rapaz filho de uma amiga, a representar um filho, uma vez que este
grau de parentesco é essencial para a cerimónia e M. não tem filhos homens.
Atrás ficaram os primos. O altar da cerimónia foi montado à esquerda da
figueira sagrada, do lado sul, como manda o preceito. Nesta parte do ritual, M.
teve finalmente oportunidade de honrar os seus falecidos pais de acordo com o
preceito religioso, o que era muito importante para ela. A segunda parte do
ritual realizou-se dentro de um pequeno templo dedicado à deusa Ambe, onde se
acendeu o fogo sagrado. Terminada a cerimónia, os participantes foram ao rio
deitar os restos do ritual.
O almoço acabou apenas por volta das quatro da tarde e era preciso apanhar o
barco das cinco e meia. M. mantinha-se indiferente à pressa em regressar,
conversando com as pessoas que não via havia mais de dez anos. Protestou quando
foi arrancada da conversa, estava a contar histórias pessoais de quando ali
vivia e era preciso voltar já?!
M. vai parecendo sentir-se mais sozinha. Nos últimos dias antes do regresso
ainda houve tempo para últimas compras, últimas visitas. Torna-se evidente que
M. viveu estas semanas não apenas como uma viagem ao seu passado, como
inicialmente imaginara, mas como uma última viagem.
Notas finais
A etnografia exposta neste artigo pretendeu trazer para o debate a situação
concreta de uma família de origem indiana que, à semelhança de milhares de
outras famílias, realizou um percurso transnacional múltiplo. Em quase tudo, a
história da família em foco ecoa as de outras famílias gujaratis. Atravessando
vários países e correspondentes processos políticos e sociais, optaram por
emigrar mais que uma vez.
Na literatura sobre a diáspora hindu-gujarati, o polo migratório de Moçambique
surge para explicar o contexto económico e histórico que levou a novas
migrações, e surge ainda como contexto de adaptações culturais. Os discursos no
terreno em Portugal e no Reino Unido raramente valorizam a permanência em
Moçambique. Este é referido como o país donde se saiu porque as condições de
vida eram insuficientes, entre outras razões. As referências a Moçambique
aproximam-se quando muito do saudosismo da infância. No entanto, esta questão
tem sido pouco explorada na literatura sobre a diáspora hindu-gujarati, e foi
por isso nosso objetivo abordá-la aqui, através de uma história de vida
particular.
A viagem de M. a Maputo fez despertar emoções que se evidenciaram claramente no
reencontro com familiares e amigos, mas permitiu também vivenciar e verbalizar
o lado africano desta família, de uma forma aberta e descomplexada, ao
contrário do que acontece nos destinos migratórios europeus, Portugal e Reino
Unido, onde a aparência africana é ignorada, se não mesmo censurada, em prol
das referências à religião professada.
A viagem salienta ainda outra coisa, por hipótese mais passível de contribuir
para o debate sobre a transnacionalidade. O regresso de M. a Maputo, após doze
anos de ausência, sublinha a importância que as cidades, mais do que os países,
assumem na vida de uma família migrante. Apesar dos seus sessenta e muitos
anos, M. passou os dias a visitar e a receber visitas e convites de familiares
que souberam da sua viagem. Afinal, foram quarenta anos a viver em Moçambique.
E o seu caso não é único. Muitas famílias hindus-gujaratis portuguesas viveram
mais de uma geração em Moçambique. Não obstante os seus discursos reforçarem
sistematicamente a importância dos novos destinos migratórios em detrimento dos
precedentes, as viagens de regresso dão pistas renovadas para conhecer melhor
os caminhos densos da transnacionalidade.