Sociedade Felupe: Desintegração ou transformação social?
ARTIGO ORIGINAL
Sociedade Felupe: Desintegração ou transformação social?
Felupe society: disintegration or social transformation?
As dinâmicas internas das sociedades rurais africanas são fortemente
condicionadas por dinâmicas externas. Maioritariamente dependentes de sistemas
agrícolas de subsistência e governadas por sistemas de tipo segmentário, as
sociedades rurais africanas não partilham as lógicas e os códigos dos
sistemas centrais. Confrontadas com factores adversos, que comprometem o
equilíbrio dos seus sistemas produtivos e, por arrastamento, a sua organização
económica, social e política, são forçadas a reestruturar-se e adaptar-se,
tentando assegurar a sua sobrevivência (Sigrist, 2001).
Contudo, actualmente, a força invasiva das dinâmicas da globalização impõe às
sociedades rurais africanas um maior esforço de adaptação. A globalização gera
uma grande diversidade de fluxos de ideias, informação, capital, bens, pessoas,
etc., que são promotores de mudanças bruscas e originadores de turbulências que
contribuem para, de forma por vezes radical, induzir transformações
significativas na vida económica, social e política das populações afectadas e
mesmo, nalguns casos extremos, pôr em causa a própria sobrevivência quotidiana
de sectores populacionais particularmente desfavorecidos (Schiefer, 2002).
As alterações rápidas de contexto, socioeconómicas e ambientais, desafiam as
capacidades das sociedades para responder aos vários tipos de choques naturais
e socioeconómicos. A mudança brusca de parâmetros decisivos, como o custo dos
alimentos e as políticas de migração, forçam as suas dinâmicas de subsistência
e pressionam a sua capacidade de resiliência. As sociedades rurais africanas
como a sociedade felupe (um subgrupo joola), detentoras de sistemas produtivos
tradicionais, assentes em pequenas unidades familiares e dependentes de
monoculturas, encontram-se ainda mais fragilizadas para enfrentar as
turbulências provocadas nas suas dinâmicas internas. No entanto, existem
dinâmicas de mudança, mesmo nas sociedades onde os sistemas parecem vulneráveis
ou insustentáveis (Batterbury, 2007).
As dinâmicas de mudança são complexas e muitas vezes negativas. Diversificando
os meios de subsistência, intensificando ou não a produção agrícola e/ou
adoptando novas estratégias de sobrevivência, as sociedades rurais africanas
reinventam-se, tentando assegurar a sua continuidade (Temudo & Schiefer,
2004).
Este artigo tem como objectivo abordar algumas das mudanças e transformações
sociais, ocorridas nos últimos anos, nas dinâmicas internas da sociedade
felupe, ou joola-ajamaat, uma sociedade rural localizada no noroeste da Guiné-
Bissau. Pretende-se, com suporte em consulta bibliográfica e informações
recolhidas durante trabalhos de terreno efectuados em 2009 e 2012, aferir de
que forma o novo mundo global tem interagido e condicionado a estabilidade e
resiliência da sociedade felupe.
A sociedade felupe: uma sociedade alicerçada e centrada na orizicultura
Estabelecida na região mais oeste de Casamança, Senegal, na área compreendida
entre a Gâmbia e o rio Cacheu, na Guiné-Bissau, a sociedade agrícola Joola
detém um sistema produtivo assente em pequenas unidades familiares que
desenvolvem uma economia de subsistência. Esta sociedade, de cerca de meio
milhão de elementos (Tomàs, 2009, p. 131), é constituída por diversos subgrupos
muito heterogéneos que, dedicando/empenhando a totalidade das suas ferramentas
agrícolas, da sua experiência e do seu engenho ao serviço da orizicultura
(Pélissier, 1966, p. 710) e mantendo vivas muitas das suas tradições
ancestrais, partilham uma dupla identidade espacial e cultural. A primeira
advém de uma adaptação específica e exímia ao meio, espelhada pela técnica de
cultivo de arroz[1], que marca e influencia a organização social, religiosa,
económica, cultural e política. A segunda justifica a primeira construindo toda
a orgânica da sociedade em torno da cultura que melhor aproveita o meio, a
orizicultura. A junção destas duas identidades, ou a intimidade desta população
com o meio e a organização social daí resultante, é reconhecida no apelidar os
Joola de a sociedade do arroz. De facto, o arroz é o corpo e a alma desta
sociedade: é a base da alimentação; a primeira refeição de um recém-nascido é
uma papa de arroz; a posse de arrozais e de celeiros cheios de arroz são
sinónimos de riqueza e prestígio; a fixação da maior parte das tabancas
dependeu da localização dos arrozais; as cerimónias religiosas exigem a
oferenda de arroz e vinho de palma; os mortos são enterrados com uma provisão
de arroz; as manifestações sociais e as cerimónias religiosas dependem do
calendário agrícola do arroz; o arroz tem quinze designações diferentes
conforme o tipo de semente ou estado: plantado, acabado de colher, com ou sem
casca, armazenado, cozinhado, etc. (Bayan, 2010, pp. 25-30).
Sujeitos a diferentes condicionamentos históricos – expansão mandinga,
distintos poderes coloniais (França e Portugal) e estatais (Senegal e Guiné-
Bissau), entre outros – os Joola desenvolveram algumas diferenças na estrutura
social, económica e religiosa. Uns, à cultura do arroz, adicionaram a do
amendoim; outros, a cultura do caju. Uns detêm uma organização social do
trabalho assente em classes de idade e género com estatutos igualitários,
outros desenvolveram uma forte hierarquização social, marcada por estatutos
masculinos e femininos, primogénitos e cadetes, que alterou a divisão do
trabalho agrícola, sendo o arroz
(cultura de consumo) cultivado apenas pelas mulheres e o amendoim (cultura de
renda) pelos homens. Uns adoptaram o Islão, alguns o Catolicismo e outros
mantêm a religião tradicional, Awassen-au (Marzouk, 1993, p. 485).
Um destes subgrupos Joola, formado por cerca de vinte e cinco mil indivíduos
(Journet-Diallo, 2000, p. 82) estabelecidos na ponta extrema do noroeste da
Guiné-Bissau e uma faixa estreita do sudoeste de Casamança, constitui a
sociedade joola-ajamaat, ou felupe segundo a identificação assumida pelos
próprios. A fronteira entre o Senegal e a Guiné-Bissau, com a implicação
inerente de línguas, cultura, administração e leis estatais diferentes, não
constitui, para os Felupe, um efectivo significado de separação. Pelo
contrário, o sentimento de pertença a um grupo transfronteiriço é reflectido
pela existência de intensas relações de interdependência e de complementaridade
desenvolvidas pelas actividades económicas e sociais (trocas comerciais muito
fortes, casamentos recorrentes entre pessoas de um e outro lado da fronteira,
circulação de pessoas e bens geralmente sem entraves, etc.) e, no plano
político e simbólico, pelos diferentes reinos independentemente do lado da
fronteira onde se situam (Bayan, 2010, pp. 31-33).
Bem adaptados ao meio – área muito irrigada, com muitos mangues e palmares e um
solo ferruginoso rico em matérias orgânicas, meio propício à orizicultura – e
detentores de um conjunto de saberes e técnicas que, durante séculos, lhes
permitiu assegurar as suas necessidades alimentares, religiosas e de valor de
prestígio (Almeida, 1955, p. 622; Silva, 1960, p. 38), os Felupe mantêm ainda
muitas das suas características tradicionais. De facto, se a fixação da maior
parte das povoações desta sociedade dependeu, no passado, da localização dos
arrozais, actualmente, a posse destes e de celeiros cheios de arroz ainda são
sinónimo de riqueza e de prestígio e as manifestações sociais e cerimónias
religiosas mantêm-se dependentes do calendário agrícola do arroz.
Sistema produtivo cativo de muitos braços e bom tempo
A sociedade felupe desenvolve uma economia de subsistência com um sistema
produtivo assente em pequenas unidades familiares e vocacionado principalmente
para a produção de culturas alimentares para autoconsumo e de pequenos
excedentes, escoados através de um sistema de troca que privilegia redes de
parentesco e de aliança, complementado com a produção em pequena escala de
culturas comerciais e pela pesca. Grande parte dos trabalhos agrícolas,
especialmente os grandes trabalhos de preparação das bolanhas, são efectuados
em associações, constituídas com o objectivo único de entreajuda e, devido à
especialização do trabalho, organizadas por género e idade.
No entanto, a partir da década de 1970, as duas maiores fragilidades do seu
sistema produtivo – exigência de mão-de-obra numerosa e estável e dependência
de um regime pluviométrico forte e prolongado – agudizaram-se, alterando o
equilíbrio alimentar até então conseguido[2]. Por um lado, após a
independência, circunstâncias diversas estimularam a migração temporária e o
êxodo rural, iniciadas com a luta pela independência, reduzindo a mão-de-obra
necessária para a preparação das bolanhas e para a manutenção dos diques. Por
outro lado, a diminuição do número de meses de chuva, inerente à alteração do
regime pluviométrico, não permite a lixiviação correcta dos solos, favorecendo
a acumulação de sal e diminuindo drasticamente a área produtiva.
De acordo com o Ministério da Agricultura da Guiné-Bissau a superfície de arroz
de mangal diminuiu, nos últimos anos, cerca de 20% devido à má distribuição das
chuvas no espaço e no tempo (como citado em Medina, 2008, p. 15). Esta
alteração do regime pluviométrico e diminuição da área produtiva, aliada à
diminuição da mão-de-obra e à debilidade dos sistemas agrícolas tradicionais,
reduziu a produção de arroz, tornando-a insuficiente para suprir as
necessidades alimentares, obrigando à compra deste cereal para colmatar o
défice de arroz cultivado. De facto, nos últimos anos, a produção anual de
arroz na Guiné-Bissau, que tem correspondido a cerca de 65 kg por pessoa, tem
sido insuficiente para satisfazer a necessidade interna, cerca de 130 kg por
pessoa, obrigando à compra do arroz em falta no mercado externo (Barry, Creppy
& Wodon, 2007). O valor da importação deste cereal, cerca de 1/3 das
importações alimentares, reflecte bem a sua importância na dieta alimentar da
população deste país (Ba, 2007; Bock, 2009; Medina, 2008).
Com uma produção de arroz insuficiente para cobrir as suas necessidades, os
Felupe socorrem-se da produção hortícola, praticada pelas mulheres, e da
fruticultura, praticada pelos homens, para a obtenção dos rendimentos
essenciais à compra do arroz em falta. No entanto, a sua comercialização
revela-se muito precária porque limitada ao acesso a pé das mulheres felupe aos
mercados das povoações mais próximas. O acesso aos mercados de Bissau e de São
Domingos, a cidade mais próxima do território felupe, assim como o acesso de
comerciantes externos (de Bissau ou Senegal), é condicionado pelo mau estado
das estradas, agravado durante a estação das chuvas, altura em que são
praticamente intransitáveis, pela consequente falta de transportes e pela
inexistência de centros de armazenamento. Porém, as povoações situadas junto à
linha da fronteira, como é o caso de Budjim, desenvolveram redes comerciais que
permitem vender os produtos no lado contrário da fronteira onde são produzidos,
apesar do forte policiamento aí existente devido às movimentações dos rebeldes
do Mouvement des Forces Démocratiques de la Casamance (MFDC)[3]. Esta permuta
transfronteiriça permite também o acesso a uma maior diversidade de produtos.
A adopção de culturas de renda, amendoim e caju, foi outra das estratégias para
a obtenção do arroz em falta. No entanto, estas culturas concorrem na
utilização dos terrenos de cultivo, alterando o equilíbrio da dieta alimentar
felupe, e permitem um acesso apenas aparentemente mais facilitado a
rendimentos, pois deixam os produtores muito dependentes das directivas do
governo guineense, impostas pelas flutuações bruscas de preços e de mercado.
O amendoim, que nas primeiras décadas do século passado foi uma cultura de
exportação geradora de rendimentos, detém actualmente um peso pouco
significativo na balança comercial da Guiné-Bissau (Ba, 2007; Bock, 2009;
Medina, 2008). Devido a isso, o controlo estatal à sua venda é hoje mais
reduzido, o que permite aos Felupe efectuarem a sua venda no Senegal por melhor
preço, fazendo uso da malha de redes estabelecida entre as suas povoações dos
dois lados da fronteira e entre estas e as povoações dos outros subgrupos
Joola, mas limitados a pequenas quantidades dependentes da capacidade
individual de transporte.
Bem diferente é a cultura do caju. Desde a década de 1990 que a castanha de
caju é o principal produto de exportação da Guiné-Bissau, correspondendo a
cerca de 90% do total das suas exportações (Barry et al., 2007). A comodidade
do trabalho exigido por esta cultura que, por se limitar essencialmente à
colheita, também exige menos mão-de-obra que o arroz, os rendimentos obtidos e
o preço relativo generalizado entre a castanha de caju e o arroz (1 kg de
castanha de caju por 1 kg de arroz) foram factores importantes para a promoção
da difusão desta cultura, espelhada pela taxa de crescimento médio anual de
cerca de 16% (Ba, 2007; Bock, 2009; Medina, 2008). Além da venda da sua
castanha, a cultura do caju é também favorável pelos rendimentos obtidos com a
venda do vinho e da aguardente produzidos a partir do fruto.
Os Felupe vendem o vinho e a aguardente nos mercados locais e também no
Senegal, fazendo uso das suas já referidas redes comerciais transfronteiriças.
Já para a castanha, esta estratégia é difícil de adoptar pois, como é o
principal produto de exportação, o exército guineense é colocado na fronteira
durante toda a campanha, impedindo assim o seu transporte para o Senegal
(Bayan, 2010, pp. 40-45).
O início do período de colheita do caju é anunciado pelo governo guineense, que
também fixa o preço de venda de referência da castanha de caju. A sua venda é
efectuada por três vias: venda do produtor ao comerciante/colector, que
trabalha no sector apenas durante a época da colheita (de Abril a Julho), com
um volume de transacção reduzido (de 50 kg a algumas toneladas); venda directa
do produtor ao grossista estabelecido nas principais cidades; e venda do
produtor directamente ao exportador ou ao comprador indiano, os principais
importadores da castanha de caju (Ba, 2007, p. 66).
Devido aos referidos condicionalismos de transporte e armazenagem, os
produtores felupe dependem da primeira via e, como tal, raramente conseguem
vender ou trocar a castanha de caju pelo valor fixado pelo governo. Ainda
assim, o aumento dos rendimentos obtidos com a venda da castanha de caju,
adicionado aos rendimentos da venda do vinho e da aguardente, permite-lhes o
acesso a bens e serviços, contribuindo para a melhoria das suas condições de
vida. Reflexo disso é o número crescente de comerciantes ambulantes que,
percorrendo de bicicleta o território felupe durante a estação seca,
comercializam produtos importados como lanternas, telemóveis, colchas,
cortinados, etc., assim como o número também crescente de jovens felupe que
prosseguem os seus estudos nas cidades de São Domingos e Bissau.
Migração, uma estratégia falhada?
A migração felupe é predominantemente sazonal e direccionada para os centros
urbanos guineenses mantendo, por isso, um contacto muito directo com a povoação
de origem. Com a independência da Guiné-Bissau deu-se início a uma primeira
geração de migrantes para o Senegal, mais especificamente para Casamança, onde
permaneceu durante cerca de uma década. Este fluxo resultou do ajuste de
contas entre antigos combatentes do Partido Africano para a Independência da
Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e apoiantes do exército colonial português, que
penalizou severamente os Felupe pelo apoio prestado ao exército colonial
português durante a luta pela independência. Com a reconciliação trazida pelo
golpe de Estado de Nino Vieira[4], os Felupe libertados ou regressados do
Senegal não retornaram às suas povoações de origem, preferindo instalarem-se em
São Domingos e seus arredores, uma cidade que devido à sua localização –
situada a 7 km da fronteira, no eixo viário Bissau-Ziguinchor – oferece mais
oportunidades de obtenção de rendimentos.
O percurso destes migrantes permitiu-lhes criarem redes dos dois lados da
fronteira que beneficiam a população rural felupe. Os que se instalaram nos
arredores de São Domingos mantêm a sua actividade de agricultores, mas centram
a sua produção agrícola em produtos para venda no mercado desta cidade que,
devido à grande proximidade da cidade senegalesa de Ziguinchor, e ao número de
cerca de três mil visitantes, desenvolveu na sua periferia um mercado de
abastecimento e de redistribuição de maioritariamente produtos manufacturados e
comercializados por senegaleses (Ba, 2007, pp. 34-44).
Os Felupe residentes na cidade de São Domingos são funcionários públicos ou
comerciantes. Uns e outros deslocam-se às suas povoações de origem durante a
época da lavoura e para as diversas cerimónias religiosas. Os que se dedicam ao
comércio estabeleceram redes entre as povoações felupe, o mercado de São
Domingos e os comerciantes senegaleses que aí se deslocam, permitindo às
populações rurais o acesso a produtos manufacturados e favorecendo o escoamento
dos seus produtos agrícolas.
Os migrantes felupe seguintes são maioritariamente sazonais, constituídos por
jovens do sexo masculino, que têm de se deslocar para São Domingos ou Bissau
para completar os seus estudos, e por um número crescente de jovens mulheres
que, migrando para Bissau, trabalham essencialmente como domésticas para ajudar
a família, amealhar dinheiro para o casamento ou para custear as suas despesas
de educação. O seu número é de tal maneira significativo que os guineenses
referem que existe uma empregada felupe em todas as casas de Bissau, fazendo
dos Felupe os detentores de todos os segredos da sociedade de Bissau,
especialmente os da elite guineense.
No passado, a migração sazonal foi uma dinâmica integrante da sociedade felupe.
Efectuada pelos homens, durante a época seca, para a recolha de vinho de palma,
que posteriormente era vendido pelas mulheres aos senegaleses, estava integrada
no ciclo da orizicultura e constituía um contributo importante para a economia
das famílias. Actualmente, a migração sazonal não coincide totalmente com o
ciclo orizícola. Efectuada por jovens que se deslocam para a cidade para
prosseguirem os seus estudos ou em busca de melhores rendimentos, o seu retorno
é limitado ao período de férias escolares ou laborais que, mesmo que
coincidente com a época da lavoura, é insuficiente para satisfazer as
exigências do sistema orizícola felupe de mão-de-obra numerosa e estável. Esta
perturbação do sistema orizícola deixa os Felupe dependentes dos rendimentos
obtidos com a venda da castanha de caju. Com os preços desta e do arroz
fortemente condicionados pelas flutuações do mercado mundial, a migração
sazonal vai-se tornando, cada vez mais, dinâmica desintegrante e potenciadora
de insegurança alimentar.
Tentativas de adaptação: ajustar estratégias antigas e conceber novas
Perturbadas as dinâmicas internas da sociedade felupe, essencialmente pela
diminuição de mão-de-obra, mas apoiados pelo aumento dos rendimentos obtidos
com a venda da castanha e da aguardente de caju, os Felupe adoptaram novas
estratégias. As associações, tradicionalmente constituídas com o objectivo de
entreajuda para os trabalhos agrícolas, actualmente, e especialmente para os
grandes trabalhos de preparação das bolanhas, prestam serviço a troco de
dinheiro que reverte para um fundo de cada associação. Este fundo é utilizado
para empréstimos aos seus associados em casos de necessidade, como os motivados
por doença, e para custear as necessidades das povoações, como as festas, as
cerimónias religiosas ou a construção de equipamentos sociais.
Em Suzana, a maior povoação felupe, a sobrecarga de trabalho das mulheres,
originada pelo incremento do cultivo do arroz de sequeiro, devido à falta de
mão-de-obra masculina, e pelas culturas hortícolas, foi atenuada com a
construção, pela sua associação, de um infantário que recebe as crianças em
idade pré-escolar até depois do almoço. O salário das educadoras e o almoço das
crianças é também pago pela associação das mulheres. Com as manhãs libertas das
crianças as mulheres podem dedicar-se ao seu, cada vez mais exigente, trabalho
agrícola (Bayan, 2010, p. 78).
Em Sucujaque, uma povoação a escassos metros (1.130m) da fronteira com o
Senegal, a ausência dos jovens para cuidarem do gado foi ultrapassada, no
período entre a colheita e a lavoura do arroz, com a atribuição deste serviço a
indivíduos senegaleses, que propositadamente ali se deslocam. Estratégia
desnecessária durante a lavoura e entre esta e a colheita uma vez que o gado é
fechado para não danificar as sementeiras. Este serviço é retribuído com a
recolha do leite, não consumido pelos Felupe por razões tradicionais.
Em diversas povoações, as suas associações, com o apoio de ONGs que operam na
zona e com o reforço das quotizações dos seus associados, têm vindo a construir
centros de saúde primários. Junto a estes centros são normalmente construídas,
pelo colectivo feminino, maternidades para uma assistência de melhor qualidade
às parturientes, mas mantendo o costume tradicional. Segundo este, as mulheres
dão à luz e residem, até à queda do cordão umbilical do bebé, numa casa de
acesso proibido aos homens, construída longe das outras casas e cercada por uma
paliçada que a afasta dos olhares masculinos. A alimentação é da
responsabilidade das utentes, mas para as parturientes necessitadas o arroz,
que segundo Almeida (1955, p. 630) era retirado do celeiro colectivo da
povoação, é hoje fornecido pela associação das mulheres (Bayan, 2010, pp. 78-
79).
No entanto, constata-se actualmente que a construção da maternidade, junto aos
centros de saúde primários, afastou os utentes masculinos destes centros. Estes
reclamam um centro de saúde primário exclusivamente para homens. Segundo os
resultados provisórios de um inquérito, efectuado pela ONG VIDA (Voluntários
Internacionais para o Desenvolvimento de África)[5] nos primeiros meses de 2012
e ao qual tive acesso durante o meu trabalho de terreno desenvolvido em Abril e
Maio de 2012, esta situação é, aparentemente, devida à não aceitação pelo
colectivo masculino felupe da proximidade destes dois equipamentos.
De acordo com o costume tradicional, as questões das mulheres são interditas
aos homens, não podendo estes participar ou interferir no processo da
maternidade. Esta interdição impede os homens de verem os seus filhos e mesmo
de saberem o sexo das crianças antes da saída destas e das mães da maternidade,
que ocorre apenas após a queda do cordão umbilical. Desta forma, a proximidade
destes dois equipamentos, maternidade e centro de saúde primário, é entendida
pelos homens como uma apropriação do centro de saúde primário pelas mulheres e,
como tal, para eles interdito.
Os Felupe valorizam a formação escolar e asseguram a existência de uma
diferença desfavorável de escolaridade entre eles e as outras etnias, atestada
pela existência de um único deputado felupe na Assembleia Nacional. Acreditam
na necessidade de educar os jovens para que estes possam ocupar cargos
governamentais e administrativos como forma de defesa das suas causas. Para
isso, em 2010, asseguravam, em todas as povoações felupe, o ensino até à sexta
classe por professores, geralmente sem formação ou formação inadequada, pagos
maioritariamente pelas associações através da quotização de cada família de um
valor anual fixo, independentemente de ter ou não filhos a frequentar a escola
(Bayan, 2010, pp. 78-79).
Depois da sexta classe os jovens têm de se deslocar para São Domingos ou
Bissau, onde existem os graus seguintes de ensino, com propinas pagas pelos
pais de cada jovem. Desta forma, o ensino nas povoações era precário, a
continua-ção onerosa e poucos eram os jovens que completavam a totalidade do
ensino liceal e, consequentemente, menor era o número dos que efectuavam uma
formação profissional ou académica.
Posteriormente, o ensino passou gradualmente a ser assegurado pelo governo
guineense, permitindo às famílias felupe canalizarem as suas contribuições para
custear a continuação dos estudos dos seus filhos em São Domingos ou Bissau.
Esta alteração e os incentivos dados às famílias para a educação das raparigas
permitiram também o acesso destas aos graus de ensino apenas existentes nas
cidades. No entanto, este aumento da saída para a cidade do número de jovens de
ambos os sexos se, por um lado, permite o acesso à educação e formação de um
número maior de jovens, por outro lado fragiliza ainda mais o sistema produtivo
e sobrecarrega os familiares que na cidade recebem os jovens.
Como solução de entreajuda para as mais diversas situações, para interligar as
associações dos jovens de cada povoação, apoiar os estudantes deslocados nas
cidades, combater o analfabetismo e incentivar as raparigas a estudar, os
jovens felupe estudantes em Bissau criaram a AOFISS – Associação Onenoral[6]
dos Filhos da Secção de Suzana. Actualmente a AOFISS reúne várias associações
locais e tem representações em Bissau, São Domingos, Ziguinchor (Senegal) e na
Gâmbia (Bayan, 2010, p. 80).
Esta associação constitui também um reforço das redes felupe já existentes,
utilizadas para os mais diversos fins como, por exemplo, o apoio à migração, ao
comércio ou o acesso aos serviços de saúde senegaleses. De facto, devido à
precariedade dos serviços de saúde guineenses, à grande proximidade de
Ziguinchor e ao apoio das suas redes, é essencialmente aqui que os Felupe se
deslocam quando necessitam destes serviços.
O rendimento obtido com a comercialização da castanha e a aguardente de caju,
aliado à influência de algumas das dinâmicas da globalização, como a descida de
preço de muitos produtos importados, permite à sociedade felupe o acesso a
outros bens e serviços como as comunicações móveis e a energia eléctrica.
A possibilidade de aquisição de telemóveis e de serviços de telecomunicação é
também favorecida pelo acesso facilitado às redes móveis senegalesas, devido à
localização geográfica do território felupe. A utilização deste serviço permite
uma melhor comunicação entre os habitantes felupe dos dois lados da fronteira,
reforçando os laços desta sociedade.
O acesso a energia eléctrica, inicialmente muito oneroso porque dependente de
recursos para a aquisição de geradores e gasóleo para o seu funcionamento,
estava limitado a um número muito reduzido de famílias felupe, circunscrevendo-
se, geralmente, apenas a pequenos comerciantes. Contudo, a baixa substancial do
preço dos sistemas de energia solar, provocada pela presença da China no
mercado mundial, alterou esta situação. Actualmente, o preço de custo de um
destes sistemas na Guiné-Bissau permite o acesso a energia eléctrica a um
número crescente, embora ainda diminuto, de famílias felupe.
Fragilidades actuais: os riscos da dependência do mercado mundial
Os aparentes benefícios da opção do deslocamento da produção agrícola de
consumo local para a cultura de renda do caju, e consequente dependência da
venda da castanha de caju para satisfazer a compra de cerca de 50% do arroz
necessário para garantir as necessidades alimentares, revelam inconvenientes. A
produção de caju, por um lado, permitiu um melhor rendimento e,
consequentemente, o acesso a novos bens e serviços. Por outro lado, o
equilíbrio da segurança alimentar, além de fragilizado pela diminuição da
produção do arroz de sequeiro (um complemento tradicional ao arroz de bolanha
em período de soudure[7]) e pelas turbulências na lavoura do arroz de bolanha,
causadas pelo acesso ao vinho de caju (situação anteriormente não sentida uma
vez que a bebida alcoólica tradicional, o vinho de palma, só é produzido e
consumido na estação seca, ou seja, no fim da lavoura), tornou-se fortemente
dependente da flutuação dos preços do arroz e da castanha de caju no mercado
mundial.
Em relação ao vinho de caju note-se que, ao contrário do vinho de palma, o seu
consumo não é regulado por prescrições religiosas ou tradicionais nem o seu
tempo de preservação é limitado. Sem estes dois condicionalismos, o consumo
deste tipo de vinho é efectuado durante todo o ano e também durante o período
laboral, constituindo-se obstáculo à actividade agrícola. Num sistema de
trabalho agrícola muito dependente de mão-de-obra, como o felupe, todos os
factores que contribuem para a sua redução são indutores do aumento da
insegurança alimentar.
Dependentes de complexas dinâmicas globais, cada vez mais imprevisíveis, os
preços do arroz e da castanha de caju alteram-se muito rapidamente, não
deixando o espaço necessário à sua adaptação. Desta forma, as alterações
favoráveis de preço dificilmente podem ser aproveitadas e exploradas como forma
de garantir os efeitos das alterações desfavoráveis. Este foi, por exemplo, o
caso da campanha de caju em 2011 que, devido ao conflito que grassava na Costa
do Marfim, o principal produtor africano de castanha de caju, fez da Guiné-
Bissau o destino dos seus importadores indianos. Nesse ano, a Guiné-Bissau
exportou cerca de 174 mil toneladas de castanha de caju, um aumento
significativo face aos valores dos anos anteriores (122 mil toneladas em 2010,
135 mil em 2009 e 109 mil em 2008), arrecadando cerca de 226 milhões de
dólares. Os produtores, ao venderem a sua produção de castanha de caju a uma
média de 333 francos CFA/kg, em vez dos habituais 200 ou 250 francos CFA/kg,
conseguiram um aumento significativo de rendimentos, que lhes permitiu fazer
face ao aumento do preço do arroz importado, 350 francos CFA/kg[8], mas
insuficiente para ultrapassar o grave défice de 2012, provocado pelo golpe de
Estado ocorrido em 12 de Abril de 2012, durante a campanha do caju.
A constante situação de instabilidade: mais um golpe de Estado
Apesar de acostumada à constante instabilidade do Estado guineense e
consequente insensibilidade e inoperância para com as suas especificidades e
dificuldades, o golpe de Estado em Abril de 2012 provocou fortes turbulências
em todos os sectores da sociedade felupe.
Em Maio de 2012 as famílias felupe já sentiam os efeitos do golpe de Estado na
campanha do caju. O bloqueio generalizado imposto pela comunidade internacional
obrigou os bancos a fecharem o crédito aos grandes intermediários,
interrompendo toda a cadeia/fileira de comercialização da castanha de caju.
Devido a esse facto, os comerciantes/colectores, a quem normalmente os
produtores felupe vendem a castanha de caju, não se deslocaram à região felupe
para a comprar. A inexistência de redes comerciais felupe no Senegal para a
castanha de caju, resultante da constante presença do exército guineense na
fronteira durante a sua campanha, também não permitiu aos Felupe o acesso a
redes alternativas para escoar a produção de castanha de caju. Estes factores
tornaram os produtores felupe dependentes dos especuladores que, em Maio deste
ano, compravam a castanha de caju a 150 francos CFA/kg em vez do valor
estabelecido pelo governo de 250 francos CFA/kg.
Além disso, o preço do arroz também aumentou devido à escassez trazida pelo
bloqueio, passando, na mesma altura (Maio de 2012), de 350 para 500 francos
CFA. Desta forma, o preço relativo que vigorava, de cerca de 1 kg de castanha
de caju por 1 kg de arroz, alterou-se substancialmente e o valor da castanha de
caju diminuiu drasticamente, obrigando os pequenos agricultores a aceitarem o
novo valor de cerca de 2,5 kg de castanha de caju por 1 kg de arroz.
Sendo extremamente dependentes do rendimento obtido com a produção de caju,
esta brusca e grande alteração de preços coloca os Felupe em sérias
dificuldades para colmatarem o défice de produção orizícola necessária ao
garante da sua alimentação e obrigações religiosas e sociais. A esta conjuntura
são conjugadas muitas outras turbulências trazidas pelo golpe de Estado,
indutoras do desequilíbrio da organização económica, social e política e que,
ameaçando a estabilidade da sua sociedade, leva os Felupe a um maior
afastamento/desconfiança (ou mesmo antagonismo?) do Estado guineense, a quem
intitulam alulum-âu, o branco.
O golpe de Estado interrompeu o ano lectivo em curso e os jovens estudantes
foram obrigados a retornar às suas povoações. A ajuda inesperada, mas
necessária, que a presença destes proporciona em diversas tarefas, como o
fabrico do vinho de caju ou o desmatar dos campos para a próxima lavoura, não
compensa o esforço assim desperdiçado pelas famílias para custear os estudos
dos seus filhos na cidade. Como exemplo do encargo exigido a uma família,
refira-se que uma formação profissional de três anos na Escola Nacional de
Administração (ENA), em Bissau, importa em cerca de 12.000 francos CFA de
matrícula e um valor anual de propinas de 30.000 francos CFA, perfazendo um
total de 102.000 francos CFA (cerca de 155 ), num país em que o salário médio
nacional corresponde a cerca de 28.500 francos CFA (aproximadamente 43,50 ). A
esta preocupação, juntam-se os mais pequenos, que ainda frequentam a escola da
povoação e que também ficam sem aulas, visto que os professores, anteriormente
pagos pelas famílias felupe, são agora funcionários do Estado. Assim, a rotina
das famílias felupe é alterada, os rendimentos diminuem e o trabalho, das
mulheres em particular, aumenta.
Processo iniciático: as amarras da organização e coesão social
A sociedade felupe é socialmente organizada através de santuários (ukìn-aku)[9]
e gerida por um conjunto de Autoridades Tradicionais legitimadas por uma
complexa cadeia iniciática. Sem autoridade centralizada, nem estruturas
hierárquicas, esta sociedade tem, como símbolo da sua unidade, exclusividade e
incarnação dos seus valores essenciais, uma figura com carácter sagrado e
secreto, detentor dos altares mais importantes, sacerdote[10] máximo, mas com
autoridade restrita, que a representa e identifica perante os outros: o Ây de
Caroai.
O último ây, Abdu Djata, morreu em 2003 e desde então tem sido substituído por
um ây interino que, como tal, não pode realizar um grande número de cerimónias
importantes como a entronização do aramb-âu, o representante do ây em cada
povoação. A entronização do novo ây tem sido impossibilitada, em grande parte,
devido ao conflito na Casamança motivado pelos rebeldes do MFDC. Recorde-se que
o chão da sociedade felupe abrange povoações de um e outro lado desta
fronteira. Além disso, as regras tradicionais desta sociedade exigem que parte
das cerimónias de preparação e entronização do ây sejam efectuadas em povoações
de um lado da fronteira e outras em povoações do lado contrário. Contudo, o
longo período sem ây, e consequente impossibilidade de legitimação do,
naturalmente, crescente número de buramb-abu (plural de aramb-âu), situação
motivadora de instabilidade social, foi agravada pela morte inesperada, em
Junho deste ano, do ây interino, Ernesto Djinut Diatta. Esta irregular e
desestabilizadora situação da sua organização político-religiosa obrigou esta
sociedade a iniciar, este ano, o processo de preparação do futuro ây, apesar do
perigo da presença dos rebeldes do MFDC na fronteira entre a Guiné-Bissau e
Senegal.
Este complexo processo, além de demorar vários anos, exige um enorme esforço
económico de toda a sociedade felupe e, em particular, dos habitantes das
povoações onde se realizam as diversas cerimónias, devido à obrigação
tradicional de assegurar arroz e vinho de palma para as oferendas aos ukìn-aku
e para alimentar os habitantes e os visitantes presentes nas cerimónias.
As consequências do golpe de Estado podem perigar todo este processo. A quebra
de rendimentos e o aumento da insegurança alimentar, provocados pela alteração
dos preços da castanha de caju e do arroz, põem em risco a capacidade de os
Felupe satisfazerem as suas obrigações de arroz e vinho de palma para as
cerimónias. A participação de militares senegaleses na força da CEDEAO,
instalada na Guiné-Bissau após o golpe de Estado, pode ser aproveitada para
combater o MFDC, situação que aumentaria drasticamente a insegurança física na
fronteira e nas povoações situadas muito perto dela, pondo em risco, ou mesmo
impedindo, a realização das necessárias cerimónias[11].
Conclusão
No passado, a sociedade felupe, perante condicionalismos e turbulências geradas
por dinâmicas externas, conseguiu adaptar as suas dinâmicas internas,
garantindo a sua coesão social. Estabelecida essencialmente na Guiné-Bissau, um
país em que, nas últimas três décadas, a instabilidade política tem
enfraquecido fortemente a infra-estrutura produtiva, aumentando a
vulnerabilidade da população, a sociedade felupe reforçou estratégias antigas e
ensaiou novas: diversificou a produção agrícola e, servindo-se da
especificidade da sua organização social, da localização do seu chão (zona
fronteiriça entre a Guiné-Bissau e o Senegal) e dos laços tecidos com outros
subgrupos Joola, reforçou e reestruturou redes tradicionais. Como resultado
conseguiu uma melhoria das condições de vida e, consequentemente, manteve a
coesão social.
No entanto, actualmente, as dinâmicas transportadas pela globalização são mais
fortes e invasivas. Por um lado, a dependência, risco e incerteza inerentes às
flutuações anuais dos preços dos alimentos nos mercados externos fragilizam a
sua economia e dificultam a criação atempada de estratégias de adaptação às
turbulências causadas no equilíbrio da segurança alimentar e, consequentemente,
na estabilidade social. Por outro lado, os fluxos instáveis de influências,
ideias e comércios ilícitos a nível estatal poderão contribuir para a
manutenção da instabilidade política e/ou da insegurança, agravando os
constrangimentos existentes, gerando novas turbulências e fragilizando a coesão
social.
Estas bruscas e agressivas mudanças de parâmetros poderão condicionar
fortemente as dinâmicas de mudança da sociedade felupe e fragilizar a sua
capacidade de resiliência.