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EuPTHUHu1645-37942015000200001

EuPTHUHu1645-37942015000200001

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN1645-3794
ano2015
Issue0002
Article number00001

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Municípios e Poderes Locais em África: heranças e metamorfoses em tempos de incerteza NOTA EDITORIAL Municípios e Poderes Locais em África: heranças e metamorfoses em tempos de incerteza

Augusto Nascimento*, Eugénia Rodrigues**, Paulo Jorge Fernandes*** *Centro de História, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade 1600-214 Lisboa, Portugal. UID/HIS/04311/2013, anascimento2000@yahoo.com **Centro de História, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade, 1600-214 Lisboa, Portugal. UID/HIS/04311/2013, sazora@sapo.pt ***Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Av. Berna, 26 C, 1069-061 Lisboa, paulojorgefernandes@sapo.pt

Este número dos Cadernos de Estudos Africanos reúne textos sobre poderes locais em África. A ideia de publicar este número surgiu durante a realização do Congresso Internacional Municípios e Poderes Locais em África - Séculos XVI- XXI, que decorreu entre 4 e 6 de Novembro de 2014 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Após a chamada de contribuições, a submissão de artigos ocorreu entre 21 de abril e 30 de junho de 2015. Foram submetidos onze artigos científicos e uma recensão. Dos artigos propostos, seis foram aceites para publicação e os restantes artigos foram recusados em resultado dos pareceres dos referees.

Não constituindo um propósito da chamada, o facto é que os artigos selecionados acabaram por focar territórios das antigas colónias portuguesas, hoje Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (doravante, PALOP). Sublinhe-se, nem sempre os veios históricos se mostram descodificáveis e nem sempre as filiações históricas parecem relevantes. Tratando-se de poderes locais, esta assunção é particularmente pertinente por estarmos a lidar com uma miríade de contextos sociais e de situações políticas a que as diversas estruturas e formas de poder local tiveram de se adaptar. E tal assunção ainda o é mais quando se discute África, que passou por uma profunda transformação política e social nas duas derradeiras centúrias. E, desta feita, em África como no mundo, deparamos com um processo de mudanças de consequências consabidamente incertas.

Constituía propósito desta chamada de artigos analisar formas de poder local construídas em África, assim como as que foram para transpostas em resultado das interacções com outros continentes e, em particular, da colonização europeia. Em África, o poder local, residindo em pequenas comunidades de parentesco e articulando, por vezes, várias autoridades, desempenhou um papel relevante na reprodução social, garantindo a ordem e a representação da sociedade. Os detentores desse poder assentavam a sua legitimidade em formas tradicionais de autoridade, estruturadas segundo regras consuetudinárias derivadas da comunidade. Em determinados períodos da história e em certas regiões de África, essas comunidades foram incorporadas em Estados mais vastos, mas permaneceram a base da organização das sociedades. A colonização nem sempre elidiu o papel das autoridades tradicionais. Na generalidade dos impérios europeus, sob formas variadas, as chefias tradicionais foram integradas na base dos aparelhos administrativos coloniais, mesmo que estes tivessem subvertido o seu processo de escolha e a sua base territorial. Frequentemente, as autoridades tradicionais serviram de intermediárias entre as populações e os poderes imperiais.

Apesar de confinada a ilhas, pontos costeiros e algumas povoações localizadas nas rotas para o interior, a acção colonizadora conduziu à replicação dos modelos de governação vigentes na Europa. Entre as modalidades de poder local transpostas pelos impérios europeus para África em diferentes momentos da história, estão os municípios, que coexistiram ou se justapuseram aos poderes locais africanos. Uma vez instituídos, os poderes municipais albergaram elites coloniais que, pugnando por interesses locais, interpelavam quer o poder imperial na Europa, quer os seus representantes sediados nos territórios africanos. Ademais, os municípios ofereciam a possibilidade de participação política, sobretudo às elites urbanas, sendo, também por isso, instâncias de gestação de identidades próprias.

No caso do império português, os municípios foram criados logo após o início do processo de colonização de África, ainda no final do século XV. Charles R.

Boxer (1981) considerou que as câmaras constituíram um pilar da sociedade colonial, afirmando uma continuidade que os altos funcionários não podiam assegurar (Boxer, p. 263). A questão do poder municipal na África colonizada pelos portugueses na época moderna não tem sido ignorada pela historiografia, integrando algumas monografias sobre antigas colónias (cf., por exemplo, diversos estudos em Albuquerque & Santos, 1995-2002; Matos, 2005). No entanto, são ainda em escasso número as investigações que incidem especificamente sobre os municípios, contando-se alguns estudos sobre territórios específicos (cf., por exemplo, Ferronha, 1998; Guedes, 2012; Neves, 2009; Pires, 2013; Rodrigues, 1998; Teixeira, 1990) ou análises sobre o poder municipal no império português (Bicalho, 2001; Boxer, 1965).

Nesse quadro, o artigo de Arlindo Caldeira, Dimensão sócio-política do município de Luanda durante o século XVII, constitui uma contribuição relevante para o conhecimento dos municípios em território africano. Partindo da escassa documentação disponível, o autor analisa uma das mais antigas experiências de transposição de instituições do poder local da Europa para África, a da câmara de Luanda. Como o autor salienta, essa transferência caracterizou-se pela acomodação do formato europeu ao contexto local, o que conferiu uma feição própria ao município luandense. Estabelecida no final do século XVI, a câmara de Luanda esteve associada ao projecto de conquista portuguesa de Angola, constituindo um ponto de apoio à guerra que as autoridades coloniais empreendiam no interior, em articulação com o tráfico de escravos. O senado da câmara desempenhou um importante papel político, reforçado pelo facto de lhe competir a designação dos governos provisórios de Angola ou de a própria câmara poder assumir o governo interino da colónia.

Neste artigo, Caldeira analisa, para o século XVII, certamente o período menos conhecido da história da cidade, a composição social dos moradores, a pequena oligarquia em que eram recrutados os executivos camarários. Descendentes dos primeiros colonizadores, os membros dessa elite constituíam um grupo relativamente fechado, cuja reprodução social era, fundamentalmente, assegurada pelo casamento com europeus recém-chegados. A sua riqueza assentava no tráfico de escravos, que acumulava com a da exploração de propriedades agrícolas nos vales dos rios Bengo, Dande e Cuanza e o desempenho de cargos régios.

Diferentemente do que então se notava nas ilhas atlânticas de São Tomé e Príncipe (Pinheiro, 2005) e Cabo Verde (Neves, 2009; Teixeira, 2005) e, mais tarde, em Luanda os mestiços não tinham representação no senado municipal ou, pelo menos, ela não era significativa. Durante seiscentos, o senado municipal teve um relativo sucesso na defesa da sua autonomia política e dos interesses dos moradores, quer face ao poder central, em Lisboa, quer perante os governadores, como o evidenciam diversos episódios analisados pelo autor. As relações com os governadores foram particularmente marcadas por frequentes conflitos, decorrentes da disputa de competências e do papel de cada uma destas instâncias de poder na definição dos interesses da colónia. Provavelmente, esse êxito pode ser relacionado com a importância do papel que Luanda desempenhava no contexto da economia do Atlântico Sul enquanto fornecedora de escravos.

A par da guerra aberta que governadores e moradores usaram tão eficazmente em Angola, e combinando-se com ela, os tratados de vassalagem foram um instrumento de dominação das chefias africanas. Genericamente chamados sobas nas fontes portuguesas, esses chefes constituíam a face visível do poder local nas sociedades africanas com que os portugueses lidavam. Buscando tirar partido do seu papel, os portugueses estabeleceram parcerias com esses chefes, que se tornaram colonial intermediaries (Candido, 2013, p. 53) ou, noutra formulação, co-managers of the colony, mostrando the shared nature of the power in Angolan territories under Portuguese control (Ferreira, 2012, p. 38).

Como vários estudos mostram, o papel dos sobas era fundamental no controlo português de várias regiões, provendo carregadores e soldados, disponibilizando alimentos, garantindo a colecta de impostos e a segurança aos comerciantes que transitavam pelas suas terras. Em todo o caso, os sobas também beneficiavam da aliança com os portugueses contra a hostilidade de adversários internos e externos (Candido, 2013; Ferreira, 2012; Heintze, 2007; Miller, 1988; Santos, 2005).

Usando os autos de vassalagem assinados por chefes locais e as cartas patentes que lhes eram concedidas pelo governo de Angola, Ariane Carvalho da Cruz, em ‘Sempre vassalo fiel de Sua Majestade Fidelíssima': Os autos de vassalagem e as cartas patentes para autoridades locais africanas (Angola, segunda metade do século XVIII), escrutina a relação entre os sobas e as autoridades portuguesas. Nessa medida, avalia a incorporação de cargos africanos na estrutura administrativa portuguesa e o que tal significava no tocante à coexistência de poderes e hierarquias políticas como condição sine qua non para a manutenção da colónia que os portugueses chamaram Reino de Angola. Na sequência de outros trabalhos, Cruz mostra como as autoridades portuguesas e os chefes africanos adoptaram reciprocamente valores e práticas políticas que não eram originariamente as suas. Conquanto as relações estabelecidas através desses autos fossem desiguais, a autora argumenta que os sobas não eram actores passivos dessa relação, jogando também interesses próprios na sua participação na estrutura política colonial.

No século XVIII, trocavam-se autos de vassalagem por cartas-patente, que ratificavam, por vezes periclitantemente, relações moldadas tanto pelo uso da força quanto, igualmente, pela negociação que não podia deixar de atender ao facto de as chefias africanas acabarem como sustentáculo do laço colonial e suporte do tráfico de escravos. Apesar do que continham de assimétrico, os autos de vassalagem poderão ter suportado chefias de unidades políticas africanas, decerto sem simultaneamente deixar de suscitar alterações na forma como tal poder (cuja legitimidade decorria de formas tradicionais de autoridade, estruturadas segundo regras consuetudinárias derivadas da comunidade, e do que comportavam de crucial para a reprodução social dessas unidades políticas) era exercido por chefes linhageiros, que garantiam a regulação dessas unidades políticas.

Para os europeus, até que ponto o reconhecimento das chefias africanas mas igualmente do direito consuetudinário local era crucial para a preservação do laço colonial? Se as chefias africanas, ao fazerem concessões que corroíam a igualdade de posições face aos europeus, foram perdendo poder, não tendo antecipado a avassaladora imposição do colonialismo a partir do final do século XIX, também as autoridades portuguesas se debatiam frequentemente no tocante à conveniência das modalidades do exercício da sua justiça e da conformidade ou adequação desta às demandas locais.

O liberalismo oitocentista, herdeiro do universalismo das Luzes, confrontou-se com os desafios que a uniformização da justiça, conquanto num processo gradualista, colocava em Angola, onde, como nos demais territórios do império português, o pluralismo jurídico e, portanto, a aceitação da justiça local constituíam a norma. Plano de aplicação da presumida supremacia civilizacional europeia, a administração da justiça deveria reger-se pelo clausulado processual e penal transposto de Portugal. Mas, cedo, os colonos abdicariam de tal propósito, por venalidade ou pela percepção dos elevados custos políticos e económicos da disseminação do direito europeu em terras onde, por causa do costumado direito sobre as pessoas em detrimento do direito sobre os bens, processos e sentenças emanadas do direito português pareciam improfícuas.

Na realidade, em meados de oitocentos, à extensão, decretada por Lisboa, dos princípios do liberalismo assimilacionista às colónias (cf., por exemplo, Silva, 2009) obstavam várias circunstâncias locais, não apenas as (alegadas) matrizes culturais prevalecentes entre os africanos, mas, igualmente, quando não sobretudo, os interesses de agentes da administração colonial apostados em rendibilizar a sua posição. Tais agentes da administração colonial podiam, com maior ou menor verdade, justificar o recurso a formas expeditas de administração da justiça, segundo eles, mais eficazes porque compreendidas pelas populações sujeitas. Sob esta discussão estava em jogo quem mandava em quem e com que instrumentos.

O texto de João de Castro Maia Veiga Figueiredo, A questão das ‘Ouvidas', ou a disputa entre autoridades civis e militares pelo julgamento de causas gentílicas na Angola de meados do século XIX, ilustra como, no caso das tentativas de reforma do aparelho administrativo e da prática da justiça em Angola, a noção de missão civilizadora esteve embebida de vários significados. O autor analisa, particularmente, as acções de julgamento, no século XIX chamadas de ouvidas, as quais se filiavam nos tribunais de mucanos, actuantes em toda a colónia nos dois séculos anteriores no juízo de causas envolvendo direitos dos africanos e que tinha a sua origem em instituições locais (Candido, 2013; Ferreira, 2012; Santos, 2005). Se, a dado passo, a missão civilizadora tendeu à substituição do arbítrio dos militares nos presídios e noutras zonas de administração militar pela justiça dos civis, mormente a municipal, tal também significava o preterir da justiça africana em favor da disseminação das leis emanadas da metrópole. Porém, a disseminação da justiça enformada pelo assimilacionismo liberal esbarrava, não apenas nos costumes locais, ditos bárbaros, mas igualmente nas vantagens, caladas, da contribuição da aplicação de tais códigos nativos para a produção de força de trabalho escravizada. Para coibir, entre outros abusos, esse benefício material, sugeriu-se a aplicação morigerada de castigos correcionais.

Na circunstância, a idealização e a prescrição de formas processuais de justiça ditas da terra acabariam por ser usadas para reforçar uma predominância dos militares em detrimento da administração civil para que, segundo aqueles, faltava gente. E, vamos dizer, vontade daqueles que apostavam em observar preceitos africanos para majorar a sua posição. Fosse como fosse, as circunstâncias políticas e sociais alterar-se-iam drasticamente em finais de oitocentos.

À conquista colonial de finais de oitocentos até inícios de novecentos sobreveio, a par da sujeição da população africana, a edificação de cidades e a dinamização das existentes, algumas das quais governadas por municípios (cf., por exemplo, Cahen, 1989; Coquery-Vidrovitch, 1993), nos quais se foram gerando elites coloniais que, pugnando por interesses locais sobretudo comerciais e de gestão da mão-de-obra africana , interpelavam tanto os governos das nações colonizadoras, quanto os seus delegados nas colónias.

Independentemente dos resultados obtidos, a gestão municipal oferecia a possibilidade de participação política, sobretudo às elites urbanas. Ademais, atida a interesses próprios, a vida municipal tornava-se cadinho de gestação de identidades próprias, não nacionalistas, mas, a espaços, avessas à identificação com a nação colonizadora ou, pelo menos, com as suas políticas.

A feição racista e, subsequentemente, ditatorial do colonialismo português não trouxe apenas a desqualificação dos africanos, o grosso dos quais foi reduzido à condição de indígena e sujeito a uma justiça expedita assente, se necessário, na violência potencialmente irrestrita. Tal como na generalidade da África governada por potências europeias (cf., por exemplo, Boone, 2003; Manning, 1998), acarretou também um esquema dual de modelos de administração do território, que se articulava com as barreiras raciais apostas entre colonos e colonizados. Nos espaços que vieram a ser constituídos colónias portuguesas, a transposição do modelo de governação municipal soçobraria ou, pelo menos, perderia vitalidade política face aos imperativos políticos do colonialismo.

Dito de outro modo, a instituição municipal definhou, fosse por se lhe subtraírem poderes, fosse por não se a ter expandido a todo o território das colónias.

Além da autonomia cerceada pela tutela ditatorial, o regime de governação municipal se aplicava nos espaços urbanos, permanecendo a maior parte do território das colónias dividido em circunscrições regidas por um administrador de circunscrição. Nas vastas zonas rurais, retalhadas em circunscrições, a administração colonial valeu-se das autoridades indigenizadas ou ditas tradicionais para arregimentar mão-de-obra ou arrecadar impostos. Tal como nas demais colónias europeias, as chefias tradicionais foram acopladas à base dos aparelhos administrativos, mesmo que para tal se tenha alterado o procedimento da designação dessas chefias e até o tipo de ascendência sobre o grupo tutelado. Daqui resultou um conglomerado de relações e desempenhos dúbios onde pretensas afirmações de fidelidade política encobriam a tentativa de preservar as comunidades das agruras da dominação ou, diferentemente, a tentativa de majorar ganhos advindos da mediação entre o poder colonial e as comunidades.

Por vezes, a mediação tornava-se um ónus na medida em que não isentava nem da agressividade colonialista nem do ressentimento dos povos (cf., por exemplo, Meneses, Fumo, Mbilana & Gomes, 2003; Oliveira, 2014).

Após as independências, em virtude da desarticulação económica, de conflitos, que impeliam a uma mobilização administrativa de recursos e de subsistências, da cultura centralizadora tributária do poder colonial e do voluntarismo das ideologias, os dirigentes optaram pela centralização do poder, pela predominância do Estado sobre a sociedade e, por conseguinte, pela imposição de uma fidelidade única aos seus concidadãos, a da nação em construção, que passava pela homogeneização social a lograr através da imposição do homem novo.

Ademais, aos olhos dos nacionalistas dos PALOP, a governação local do tempo colonial nem sequer em potência comportava o mínimo laivo de democraticidade e, previsivelmente, não se revestia de qualquer utilidade para a almejada revolução social ou para a verdadeira libertação. A par disso, o odioso da actuação das chefias tradicionais mormente, as criadas ou impostas pelo poder colonial, mas também as prejudicadas por vínculos e práticas que, em cotejo com a ideologia, se perfilavam como serôdios obscurantismos justificava a sua erradicação e, nalguns casos, até a perseguição dos chefes. Com efeito, por via do voluntarismo dos líderes triunfantes, as funções da governação de proximidade e os papéis sociais das autoridades tradicionais foram olhados como fonte de dissensão assente nos localismos ou na etnicidade e avessos ao unanimismo em torno da projectada transformação social, pelo que se justificava a supressão das autoridades tradicionais. Do mesmo modo, atento o projecto de homogeneização social, não se concedia densidade bastante a interesses locais que justificasse uma representatividade política própria (cf., por exemplo, Florêncio, 2010; Lourenço, 2010; Meneses, 2009; Meneses, Fumo, Mbilana & Gomes, 2003).

Diferentemente, a administração local foi entendida como veículo de disseminação das mensagens políticas da cúpula e como um mecanismo de indução da adesão política à projectada revolução social. Mínimas, as delegações de poder eram feitas para promover a homogeneização social e obter a adesão das populações aos propósitos dos dirigentes. Mais do que representar as populações, as autoridades na base da administração respondiam perante os dirigentes pela aplicação das decisões do poder. Tendencialmente transformadas em comissários, não reportavam necessariamente os desejos das populações, por cuja apartação se sentiam responsáveis em virtude de não as saberem convencer, não reportavam cabalmente as suas privações nem davam conta do grau de (in)satisfação social. Os delegados também não dispunham de grande capacidade decisória, conquanto, pela discricionariedade subjacente à verticalização das relações políticas, assim parecesse suceder.

Anos após a destruição da autonomia da administração municipal ou local e após a perseguição às autoridades tradicionais, ainda durante os regimes de partido único, invertendo a aposta anterior, ensaiou-se reconstituir a administração local acenando-se, nalguns casos, com a ideia de eleições, como se fosse possível ter um nicho de democracia incrustado num edifício estatal monolítico e recuperar as autoridades tradicionais, reconhecendo-se-lhes, tacitamente, uma esfera de influência inacessível ao desempenho político formal. Em ambas as vertentes, os dirigentes pensavam na capitalização de dividendos políticos decorrentes do desdobramento e da aparente partilha de poderes. Este duplo movimento foi decididamente ampliado após a adopção da democracia representativa substituta dos regimes de partido único.

Depois da falência destes regimes, a adopção do municipalismo como modelo de governação local não foi um mero retorno à herança portuguesa ou europeia.

Diga-se, nas colónias portuguesas, porque sob tutela ditatorial, a experiência municipal pouco dissera às populações colonizadas. Fosse como fosse, foi à governação local de que havia memória que de alguma forma se retornou. A somar à decorrente da reconstituição do Estado, que deixava de estar hegemonizado pelos partidos da libertação, avultou a expectativa de que a reconstituição da governação local tornasse mais efectiva a aproximação do Estado aos cidadãos, redundasse numa economia de despesas através do ganho de eficácia e do aumento de transparência, suscitasse maior coesão política e ajudasse a aprofundar a democracia, tanto pela maior abertura para a intervenção de organizações da sociedade civil quanto pela participação popular, conquanto limitada, na definição de projectos e investimentos locais por meio dos orçamentos participativos[1].

Segundo J. Oliveira Rocha e G. Jonas Bernardo Zavale, que seguem a teoria prismática de Riggs na análise do percurso das instituições, em O desenvolvimento do poder local em África: O caso dos municípios em Moçambique, a adopção da democracia representativa para a governação municipal em Moçambique baseou-se no modelo dual de administração local estabelecido pelo colonialismo[2]. Os autores salientam que, tal como as publicadas posteriormente, a lei 2/97 assenta no dualismo administrativo, isto é, na implantação de municípios nos principais centros urbanos e na recuperação de autoridades tradicionais nas zonas rurais. Em consequência, restringiu-se a aplicação da governação municipal a um número limitado de cidades e vilas, enquanto a extensão deste modelo de governação local ao restante território segue o princípio do gradualismo. Ainda de acordo com os autores, tal não destoará do ocorrido noutros países africanos, onde várias experiências, que à partida deveriam ter incrementado a representatividade política e a democraticidade da governação local, acabaram como mais uma extensão do Estado centralizado.

Sem embargo da imputação da cópia do modelo colonial, vale a pena enfatizar duas diferenças relativamente a intentos políticos da era colonial, uma, a da democraticidade, outra, a do gradualismo, na medida em que, independentemente do carácter discutível da elegibilidade de cada localidade para a constituição do seu poder autónomo, tem aumentado o número de localidades com governação autónoma. A esta dimensão territorial acresce o gradualismo funcional, isto é, a progressiva transferência de competências e responsabilidades da administração central para a administração local.

Segundo Rocha e Zavale, porventura, mais relevante será o confronto da administração local descentralizada e da administração desconcentrada com a administração comunitária, mormente a protagonizada pelas autoridades tradicionais reabilitadas aquando da inflexão para a implementação da democracia representativa. Teríamos, então, de considerar um Estado heterogéneo, eventualmente potenciador dum processo de fragmentação, sobretudo em municípios controlados por partidos opostos ao poder central, sobretudo se enraizados em culturas locais dotadas de autonomia[3].

Todavia, por um lado, talvez se pudesse pensar em pluralidade em vez de fragmentação e, uma vez demonstrado que os Estados monolíticos não providenciaram a propalada coesão, talvez se devesse acolher a possibilidade de a pluralidade não ser forçosamente avessa à construção da coesão política e da identidade nacional, a qual, de resto, depende mais da socialização num meio embebido de narrativas banais mas corriqueiras e da experiência institucional comum do que de ideologias voluntaristas e da volição dos políticos. Por outro, não se tem assistido à proliferação de vitórias dos partidos de oposição em eleições locais nos países onde elas se têm realizado, mormente em Moçambique (cf., entre outros, Fernandes, 2009, p. 20).

No artigo Os municípios dos ‘outros'. Alternância do poder local em Moçambique? O caso de Angoche, Domingos Manuel do Rosário foca a disputa pelo poder no município de Angoche, elencando a contenda política pela autarquia, a importância dos laços com as estruturas religiosas, as interferências do Estado central na gestão do município, a inépcia da Renamo e um lastro de circunstâncias à primeira vista anómalas como, por exemplo, os contornos da propriedade de poços de água como vectores a considerar na descrição e na definição da hegemonia política neste concelho, um dos poucos que, desde a realização de eleições a partir de 1998, esteve por um mandato entregue à administração da Renamo.

Para o autor, a cooptação das elites locais e do comum da população, islamizada, era uma prática no tempo colonial. Ora, a ter sido assim, a ideologia e a racionalidade do Estado, protagonizadas por um poder assumidamente antagónico ao obscurantismo do tempo colonial, não deixa(ra)m de se acomodar às idiossincrasias locais pautadas ou, pelo menos, expressas pela religião. Logo, após a adopção da democracia representativa e com a eleição dos governantes das autarquias, a disputa política passou pela tentativa de obter a boa vontade de líderes religiosos.

Da parte da Frelimo, a disputa do eleitorado em Angoche deixou para trás a ideologia e passou pela reverência relativamente à religião e aos líderes religiosos locais. Porém, esta atitude não bastou para derrotar a Renamo que, certamente entre outros factores a favor, gozava da empatia dos líderes locais.

Ora, ganhas as eleições em 2003, a Renamo acabou por reproduzir as práticas clientelares, não se distinguindo do que marcara a governação da Frelimo, ao mesmo tempo que era afectada por cisões internas que prejudicaram a imagem da Renamo enquanto alternativa. A acrescer a imbróglios jurídicos relativamente à gestão de recursos locais, um apertado exercício de tutela pelo governo central ajudou a emperrar a governação local. Nas eleições seguintes, a par de várias desilusões semeadas pela Renamo, a indicação de personalidades locais como candidatos permitiu à Frelimo reconquistar o município de Angoche, à semelhança, aliás, do sucedido noutros municípios.

Após as independências, os líderes nacionalistas tenderam à hostilidade para com as autoridades tradicionais, por as suporem adversas aos desígnios da almejada revolução social, a qual validava a ideologia nacionalista, dispensando esta de se reportar a uma especificidade cultural a que teria de prestar homenagem. Naquela conjuntura, o nacionalismo parecia pleno de sentido se acompanhado do propósito de uma revolução social conducente à igualdade futura. Mas, arredando o crédito político e moral automaticamente conferido à ideologia nacionalista, caberia perguntar se, para além de um ideário mobilizador da luta anticolonial, a ideologia nacionalista não acabou sobretudo como um apoio da progressiva imposição dos ditames dos Estados às populações que viviam nos países africanos (sendo hoje substituída nesse velado desígnio homogeneizador pela globalização).

Tendo sido deixadas de olhar com acrimónia pelos dirigentes[4], tendo, ao invés, chegado a ser encaradas como vocacionadas para desempenhos administrativos[5], nem por isso deixa de reinar alguma indefinição em torno das autoridades tradicionais, desde logo por as suas práticas e instituições não serem redutíveis à racionalidade estatal. Ademais cabe perguntar se, apesar de terem sobrevivido às ineptas acções dos Estados, as autoridades tradicionais não estarão em causa por força da acção corrosiva das mudanças sociais? Desde mais de um século que os juízos variam (quando não se sucedem) entre o prognóstico infalível da falência a curto prazo e o resgate da valia política e social das autoridades tradicionais, não raro por quem as proscrevera.

Independentemente das convicções acerca do lugar e papel das autoridades tradicionais, elas pareceram tornar-se numa realidade a ter em conta para a reconstrução social em África e para o desenho de arquiteturas políticas africanas[6].

No tocante às relações dos Estados com as autoridades tradicionais ao longo do tempo, as entidades a que as populações reconheceriam capacidade para preservar, por exemplo, equilíbrios naturais e os próprios laços sociais não vale a pena o Estado ou os seus juristas discutirem lógicas de compatibilidade, avocar-lhes direitos se não conseguirem colmatar com o seu desempenho o que hoje se reconhece ser a esfera de acção reguladora das autoridades tradicionais.

Abundam as questões, a saber, independentemente da valia das funções sociais da regulação providenciada pelos desempenhos tradicionais, pode a integração política, crucial para a coesão nacional, conviver com a proliferação de autoridades tradicionais? E podem estas conviver ou assimilar os neochefes surgidos após as independências? E podem as autoridades tradicionais substituir as autarquias? Presumindo as prováveis motivações dos poderes hegemónicos, cabe perguntar se foi a historicidade e a autenticidade africana ou, em alternativa, o desígnio da preservação do poder a ditar a (inconfessada) preferência pelas autoridades tradicionais em detrimento das autarquias.

O texto de Lúcia Bayan, Régulo e Comité: Acertos e divergências na Secção de Suzana, proporciona uma visão da evolução das formas de poder local no chão dos Felupes, em S. Domingos, Cacheu, na Guiné-Bissau, tendo em vista compreender as adaptações das estruturas do poder local às sucessivas reorganizações administrativas prescritas pelo poder central desde o tempo colonial à actualidade. Numa síntese simplista, do recurso do Estado colonial à mediação das autoridades tradicionais, passou-se, após a independência, à criação de autoridades modernas, que, de acordo com a imperativa racionalidade estatal, estavam fadadas para se sobrepor aos laços e aos procedimentos tradicionais. Mas, como ocorrera no tempo colonial, a sociedade felupe manifestou-se esquiva à intrusão estatal.

Na era colonial, a sociedade felupe conseguiu incorporar o régulo entre as suas autoridades. Através da aparente anuência à interlocução com a autoridade colonial levada a cabo pelo régulo nomeado pelo poder colonial, a sociedade felupe conseguiu preservar a sua estrutura organizacional e política do escrutínio deste poder. Após a independência, a autoridade desenhada pelo novel Estado começou por ser considerada estranha à sociedade felupe, à semelhança, aliás, de muitíssimos outros casos de relação entre Estados e povos. Mas acabou por ser assimilada e integrada nos procedimentos tradicionais, acabando a ser escolhida pelos mais velhos, suscitando, por isso, o descontentamento dos jovens que se achavam mais bem preparados para a interlocução com o Estado.

Ora, nas povoações onde os jovens acederam ao estatuto de autoridade moderna, sucedeu, também a eles, acabarem cooptados para tarefas e estatutos tradicionais, assim se refazendo, ao menos parcialmente, o estatuto e a legitimidade das autoridades tradicionais felupes.

A exemplo do sucedido no tempo colonial, a intromissão do Estado pode revelar- se contraproducente, desde logo por as suas prioridades não atenderem aos modos de composição e de escolha das autoridades tradicionais pelos Felupe. E também por, tal como no tempo colonial na Guiné e tal como hoje sucede noutros contextos africanos, se pretender capitalizar a ascendência tradicional sobre os povos para o desempenho de tarefas administrativas onerosas, entre elas, a da cobrança de impostos.

É possível que a assimilação das autoridades estatais ou modernas pelas sociedades possa ter ocorrido noutros casos. Mais, pode ser que tal dinâmica ainda se faça presente. A ser assim, apesar do anúncio de eleições autárquicas em 2016, talvez se pudesse arriscar vaticinar estarem as autoridades da Guiné- Bissau porventura mais inclinadas a resgatar o tradicionalismo do que a recriar as instituições municipais, de resto, de rala profundidade histórica. Seja como for, não é a rala profundidade histórica nem, talvez, o enraizamento cultural que determina a propensão dos governantes, é antes a suposta vantagem da ausência de competição política dada a presumida disjunção das esferas de ascendência do Estado e das autoridades tradicionais.

Como alhures, a tentação estatal parece ser a de não discutir a razoabilidade e o fundamento da obediência devida à autoridade tradicional em troca dos ganhos para o Estado ou para quem o detém. Em todo o caso, não se pode esperar que o investimento político nas autoridades tradicionais que vai desde a criação e promoção até à remuneração redunde necessariamente num desempenho de tais autoridades a contento do poder central, em maior ou menor grau, distante do tecido social. Nem é de esperar que as populações, independentemente do apego a cosmogonias tradicionais, abdiquem da implementação de estruturas modernas e descentralizadas não mais estranhas do que, afinal, o próprio Estado, no caso da Guiné-Bissau, certamente não por acaso apodado de branco , politicamente competitivas, dotadas de legitimidade política derivada dos interesses próprios dos grupos locais, com capacidade de demandar o Estado nos termos legalmente previstos[7].

Acerca de África pôde dizer-se que o continente era um complexo social reticular, um caleidoscópio de sociedades em rede, por vezes à margem dos Estados[8]. Porém, tal faceta poderá ter começado a ser alterada. Numa síntese grosseira, aventar-se-á que desde os anos 60, em competição ou para levar de vencida outros suportes de organização dos povos, os Estados africanos não cessaram de pôr em confronto as modernas formas racionais-legais das suas instituições com a realidade de suas práticas autoritárias e patrimoniais marcadas por hábitos pré-coloniais e de tentar equilibrar forças centrífugas e centrípetas[9] nas sociedades que governam (ou tentam governar). Nas várias circunstâncias políticas, as opções por diferentes caminhos podem ter sido determinadas pela preservação do poder e do seu instrumento, o Estado. E certamente tal não deixou de prevalecer quando se enveredou pela democracia representativa[10], mesmo se a liberdade e os direitos das pessoas passaram a ocupar maior espaço no discurso político. Ora, hoje, e tal como em relação à democracia, decresce o entusiasmo no tocante à descentralização enquanto fundamento da organização do Estado. Assim, cabe perguntar se a política de descentralização e de criação de autarquias foi decisão local ou indução externa[11]. No tocante à descentralização, o risco mais notório é o de que os órgãos locais se tornem um contrapoder face ao Estado, desafiando-o, até, em questões nacionais (cf., por exemplo, Guambe, 1998, p. 33). Porém, tal não parece uma hipótese plausível, por exemplo, em Moçambique, onde os desafios à autoridade governamental são de outra natureza entre os quais, conflitos sociais devidos às dificuldades económicas e/ou a revivescência da guerra civil ainda que sob a forma de violência de baixa intensidade , pois que as autarquias não parecem capazes de assertividade política relativamente a questões nacionais.

Em jeito de nota final, os anos 80 e 90, os dos planos de ajustamento estrutural, traduzidos na abdicação dos Estados de funções sociais, abriram a porta ao reconhecimento da participação política dos habitantes, a qual se inscreveu na concretização do objectivo da boa governação, uma das condicionalidades das políticas neoliberais, surgidas, no ver de alguns, em resultado dos fracassos dos ditos ajustamentos estruturais. A ideia de uma influência benfazeja da eficácia económica na boa governação local revelou-se mirífica, desde logo por a eficácia económica não ser uma invariante e, na prática, não poder deixar de atender aos condicionalismos locais, sem o que nunca poderá influenciar no sentido de uma boa governação. Além disto, não deixando o poder local, lato sensu, de ser disputado até pelos governantes que dele parecem prescindir, nos vários desenhos das suas arquitectura e autonomia dos poderes dos e nos Estados impendem ponderações que atendem mais a dividendos políticos do que aos ganhos económicos ou sociais para as sociedades. Desta perspectiva, tanto se reabilitam as autoridades tradicionais, politicamente não competitivas, como se duplicam as estruturas de governação local, com o que se limita o raio de acção dos poderes locais politicamente representativos das populações.

anos se afirma que o Estado pós-colonial está em falência e que cederá lugar uma arquitectura política embebida de valores africanos (cf. Young, 2004). Todavia, podemos estar a laborar num equívoco e a decretar prematuramente, tanto quanto em tempos se fez relativamente às autoridades tradicionais, a queda dos Estados. Em primeiro lugar, não se antevê outra estrutura de mediação das sociedades africanas com o mundo. Em segundo, tal deveria também implicar uma alteração das fronteiras políticas que ninguém pretende sequer prognosticar conquanto tal assome como corolário da sentença acerca da inadequação dos Estados herdados do colonialismo. Terceiro, não se vislumbra quais poderiam ser as estruturas politicamente africanas, tendo de se ter em mente a escassa transitividade de normas e valores que, aplicadas localmente pelos povos e que porventura possam ter escapado à intromissão dos Estados colonial e pós-colonial, sejam aproveitáveis para o governo de sociedades complexas. Entrementes, os Estados vão estendendo a sua acção de enquadramento dos povos, recorrendo, quando julgado útil, à cooptação das autoridades tradicionais. Seja como for, estas estarão porventura mais ameaçadas pela aceleração e imprevisibilidade das mudanças sociais do que pela acção voluntarista e, nalguma medida, intrusiva dos Estados.


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