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EuPTHUHu1645-37942015000200003

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variedadeEu
ano2015
fonteScielo

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Sempre vassalo fiel de Sua Majestade Fidelíssima: Os autos de vassalagem e as cartas patentes para autoridades locais africanas (Angola, segunda metade do século XVIII) ARTIGO ORIGINAL "Sempre vassalo fiel de Sua Majestade Fidelíssima": Os autos de vassalagem e as cartas patentes para autoridades locais africanas (Angola, segunda metade do século XVIII) "Always faithful vassal of his most faithful Majesty": The vassalage treaties and the letters patents for African local authorities (Angola, second half of the eighteenth century)

Os autos de vassalagem em Angola if_!supportFootnotes]>[1]endif]> Em Angola, ainda no século XVIII, o comércio de escravos e a exportação atlântica eram beneficiados pela guerra entre africanos, ressaltando a importância da análise da dinâmica interna e histórica da África para a compreensão dos fatores que predispuseram as sociedades africanas a manter ou vender escravos. O aumento das guerras, a instabilidade política, as relações políticas de vassalagem tecidas entre súditos portugueses e africanos podem ter contribuído para o crescimento do comércio nesta região. Apesar de a escravidão estar presente na África, mesmo antes da chegada dos europeus, percebemos que as instituições foram modificadas tendo como parâmetro o tráfico de escravos. Práticas de undamento e relações de vassalagem foram apropriadas tanto por portugueses como por africanos, ainda que com interpretações distintas if_!supportFootnotes]>[2]endif]> . As cerimônias de undamento ocorriam nas sucessões de sobas if_!supportFootnotes]>[3]endif]> falecidos, em destituições de sobas por causas justas, casos em que os macotas if_!supportFootnotes]>[4]endif]> eram responsáveis pela eleição de novo soba (Parreira, 1990, p. 106). O undamento tinha grande significado simbólico-político, pois autoridades portuguesas utilizavam a cerimônia quando os chefes africanos se submetiam, mas realizando o auto de vassalagem. Carlos Couto (Couto, 1972, pp. 252, 253) afirma que as eleições eram realizadas na presença de um capitão-mor, que representava o governo da província. Após a eleição, o vassalo era undado na capital Luanda, jurava fidelidade à coroa portuguesa e recebia uma patente que o legitimava perante seu povo como autoridade instituída. Ao retornar ao seu presídio ou província de origem, o capitão-mor lhe dava posse do governo do sobado. Desse modo, a cerimônia de undamento era vital nas relações entre autoridades portuguesas e africanas.

Diversos parâmetros de hierarquia social e da estrutura política africana foram inseridos, apropriados ou modificados na e pela administração portuguesa, mas a recíproca também é verdadeira if_!supportFootnotes]>[5]endif]> . Por isso, ao longo deste trabalho, aspectos de natureza militar serão analisados na perspectiva de apropriações possíveis, que, por exemplo, não havia incompatibilidade entre undamento e vassalagem.

Um aspecto que pode auxiliar a compreensão da dinâmica do comércio de escravos são as relações de vassalagem entre portugueses e africanos. Conforme indica Beatrix Heintze (Heintze, 2007, p. 389), a condição de vassalo estabelecia uma relação de dependência entre dois homens livres, o vassalo e seu senhor. O vassalo devia fidelidade, obediência e era obrigado a prestar serviços ao seu senhor, enquanto este era obrigado a dar proteção e sustento. A vassalagem era uma instituição antiga na Europa Ocidental, com uma série de procedimentos simbólicos que geravam um contrato de reciprocidade entre as partes envolvidas.

Ainda segundo a autora, o termo designava o laço que unia um súdito nascido num território do Estado, ao seu soberano e que lhe impunha o dever de lealdade e fidelidade. Na África, Heintze caracteriza como pseudo-vassálicos os contratos estabelecidos entre o rei de Portugal e os sobas, autoridades políticas africanas de Angola. Para Catarina Madeira Santos (Santos, C. M., 2005, p. 125), o fato de a Europa dos séculos XVII e XVIII não ser uma sociedade feudo-vassálica não impediu a utilização residual de relações de vassalagem em determinados contextos coloniais. A partir do momento em que se formalizavam tratados de vassalagem com poderes africanos, o Estado português fazia um reconhecimento tácito da legitimidade da outra parte. Era uma relação recíproca, no sentido de reconhecimento da autoridade do poder africano, ao mesmo tempo que implicava um reconhecimento e uma inserção de autoridades africanas na administração portuguesa, apesar de grande parte da historiografia reconhecer este contrato como uma relação de sujeição de estados africanos perante autoridades portuguesas, ou seja, tratava-se de uma reciprocidade assimétrica, como será abordado adiante, mas assimetria não é sinônimo de unilateralidade.

, porém, que se atentar para a periodização dos autos de vassalagem.

Recorrentes no século XVII, são lacunares para a primeira metade do século XVIII e retomados na segunda metade do setecentos (Carvalho, F. M., 2013; Heintze, 2007). Ora, a retomada da instituição, num dado contexto do século XVIII, por si , revela aspectos significativos. Primeiramente, tratava-se, em tese, de um momento de reordenação da concepção de sociedade. Em meados do século XVIII, prevalecia em Portugal uma acepção de monarquia corporativa (Hespanha & Xavier, s/d), mas com o reinado de D. José I (1750-1777) e a administração de Sebastião José de Carvalho e Mello (Marquês de Pombal), buscou-se reforçar o poder central da coroa em detrimento dos poderes locais, atingindo até o que alguns chamam de razão de Estado if_!supportFootnotes]>[6]endif]> . Todavia, os próprios autos de vassalagem demonstram que os poderes locais, mesmo os fora do âmbito da administração portuguesa (como os sobados), não refluíram, proporcional e necessariamente, ao reforço do poder central da coroa (Cruz e Silva, 2004). Ao contrário, foram retomados, atestando as persistências e/ou reinvenções de Antigo Regime no pombalismo em Angola, sugerindo limites do poder português e negociação com poderes africanos, sem que nada disso implique a ausência de uso da força. Em termos lógicos, o problema reside num quase paradoxo. Se se aceita a ideia de debilidade do poder político português if_!supportFootnotes]>[7]endif]> , como pôde ser possível que a dominação portuguesa tenha se efetivado, predominantemente, pela força militar? Alguma negociação foi realizada, o que não escapou inclusive à formalidade dos autos de vassalagem.

Assim, supomos que poderes africanos também buscavam vantagens nas relações de vassalagem. Interessante é que a própria terminologia foi adotada pelos africanos quando se expressavam por escrito, quando se autodenominavam vassalos de alguma autoridade (Heintze, 2007, p. 391). No ultramar, o termo vassalo podia ser aplicado como resultado do exercício de poder assimetricamente negociado, pois tornar-se vassalo do rei de Portugal implicava num procedimento legal, documentado, de aceitação voluntária das condições impostas, inclusive a de prestar auxílio militar. Do mesmo modo, por parte do vencedor, havia a promessa de proteção e a investidura (ibid.).

Os tratados de vassalagem desempenhavam um papel determinante na política em Angola, bem como nas relações comerciais estabelecidas nessa região e pressupunham compensações materiais e obediências. Para Catarina Madeira Santos (Santos, C. M., 2005, p. 124), as relações de vassalagem se configuravam como um tipo de enquadramento político-jurídico ao qual os potentados se viram submetidos, um tipo de relação que permitia a integração de poderes locais, sem o uso da força. Igualmente, para Flávia Maria de Carvalho (Carvalho, F. M. de, 2013, p. 19), as possessões territoriais eram administradas pelos sobas que foram personagens fundamentais para a condução de projetos políticos portugueses, sendo intermediários e fornecedores de escravos destinados ao comércio atlântico (Cf. também Santos, C. M., 2005; Santos, M. E. M., 2003).

Por seu turno, Beatrix Heintze (2007, p. 398) diferencia os vassalos voluntários dos vassalos conquistados; na maioria dos casos, a condição de vassalo era imposta aos chefes angolanos após uma derrota militar. Raros eram os casos em que, por motivos políticos ou econômicos, os chefes angolanos se tornavam vassalos, mas, mesmo nesses casos, as condições do contrato eram ditadas por portugueses. Após as derrotas militares, esses chefes eram obrigados a assinar um tipo de documento, elaborado pelos funcionários da Coroa, no qual se estabeleciam acordos mútuos, porém com distintas funções (Carvalho, F. M. de, 2013, p. 75). Fazia parte do acordo que portugueses prestassem auxílio militar em caso de ataques contra seus vassalos, enquanto os sobas se encarregavam do pagamento de tributos, de dar livre acesso aos comerciantes autorizados pela coroa em suas terras e prestar auxílio militar.

Vejamos, então, como era um contrato de vassalagem. Em anexo, a transcrição, na íntegra, de um contrato datado de 8 de julho de 1765. Na prática, o contrato de obediência, sujeição e vassalagem possuía de seis a sete artigos e incluía elementos relacionados à religião, ao comércio e aos termos de submissão, salientando que a economia era inseparável da política (Polanyi, 1966). Um dado importante neste documento é a presença de embaixadores e tradutores. De acordo com Beatrix Heintze (2007, p. 400), um chefe africano que pretendia ou era forçado a se tornar um vassalo da coroa portuguesa dirigia-se ao governador de Angola, muitas vezes por um intermediário, que podia ser um tendala if_!supportFootnotes]>[8]endif]> , um capitão-mor de um presídio próximo ou um embaixador. Este procedimento evidencia uma prática da autoridade local do chefe africano, apesar de estar se tornando um vassalo, e demonstra que os capitães-mores eram figuras importantes nas relações entre os governadores portugueses e os sobas (Carvalho, F. M. de, 2013, p. 79).

O potentado Holo Marimba Goge estava, por meio deste acordo, obrigado a executar todas as reais ordens expedidas pelos governadores do reino de Angola, caso contrário seria tratado como rebelde. Outro aspecto importante é a admissão obrigatória que o vassalo teria que dar aos missionários para exercitar publicamente o Culto Divino. A presença de carregadores devia ser facultada e se condenava o embaraço ao comércio e as desordens, sob pena da realização de castigo, que podia ser uma guerra. O escrivão era figura importante nestes contratos, sendo o responsável pela regulação destas relações entre súdito e a coroa. É provável que tal função fosse a de manter o bom funcionamento do comércio conforme interesses dos súditos portugueses, de implementar a política de governo e atuar na comunicação com Luanda (Heintze, 2007, p. 418). A proteção estava evidenciada no artigo 6o, na condenação dos delitos cometidos pelos brancos, bem como no mau procedimento do escrivão. O documento é assinado pelos embaixadores em nome do referido potentado, mas este devia se apresentar a cada seis meses para o então governador em questão, Dom Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho. O documento foi ratificado e assinado com uma cruz pelo potentado.

Tratava-se de um documento declaratório, um documento escrito, uma prova complementar dos atos simbólicos verbais realizados, que tinha como aspecto principal os deveres para com o rei. Um dos principais deveres era o apoio militar para a consolidação dos interesses da coroa portuguesa em Angola. Para Beatrix Heintze, esta era uma obrigação tão evidente que nem era mencionada no contrato, mesmo sendo uma das principais características da vassalidade, pois eram pessoalmente obrigados a tomar parte, com certo número de homens armados, no exército português, sempre que fossem solicitados, formando conjuntamente com os escravos dos europeus, a guerra preta (2007, pp.411, 413).

O pagamento de tributos dos vassalos era considerado uma aceitação visível do acordo, paralelamente à ajuda militar. Além disso, dentre as obrigações dos vassalos, estava o livre acesso de todos os portugueses e seus pombeiros if_!supportFootnotes]>[9]endif]> ao território dos vassalos, o comércio livre, mas com exclusão de concorrência europeia ou africana, o impedimento ao contrabando, o fornecimento de carregadores para o exército, a entrega de escravos fugidos, livre acesso de missionários, a comunicação ao governo de todas as ocorrências conhecidas pelos vassalos, proibição de receber chefes africanos e europeus com intenções hostis, e o impedimento de realizar guerra contra outro vassalo, sem autorização das autoridades portuguesas (Heintze, 2007).

Os contratos de vassalagem estabeleciam uma relação de dependência unilateral entre as autoridades portuguesa e africana. Apesar de pressuporem uma relação de reciprocidade, para Beatrix Heintze (2007, pp. 425-427) não havia concessão de direitos de forma justa para as duas partes. Mas a implementação da manutenção do contrato proporcionou a manutenção das fronteiras dos territórios avassalados, mesmo que para isso houvesse interferência na sua autonomia militar, política, econômica e religiosa. Mesmo assim, estes vassalos obtinham vantagens que eram revertidas a favor de sua autoridade pessoal.

que se ressaltar, não obstante as contribuições de Heintze (2007), que não vigiam princípios de igualdade nas relações de vassalagem, pois as sociedades de Antigo Regime primavam pela desigualdade como princípio. Como sugere a própria autora, as sociedades africanas, na prática do undamento, também não seguiam noções de igualdade contratual, ainda que sua desigualdade fosse diferente das noções de desigualdade europeia. Provavelmente, ideias de reciprocidade assimétricas ajudem a compreender as bases das desigualdades (Levi, 2000). Tampouco as relações de vassalagem eram uma relação entre estados, ainda que formalmente se aluda a estados, mas não menos à pessoa do rei de Portugal. Simbolicamente, pelo menos, havia a pessoalização das relações políticas ou elas assim se conduziam, ainda que as autoridades africanas e o rei de Portugal fossem representados por seus prepostos. De acordo com Joseph Miller:

noções africanas sobre política, muito mais engajadas do que as modernas noções de Estado ou reinos, baseadas em princípios legais abstratos, prevaleceram em outros lugares da África Central, durante toda a época do crescente engajamento com a economia atlântica. Assim ( ) pensavam em metáforas de poderes protetores exercidos por benfeitores (patronos) pessoais e poderosos em favor de clientes leais (Miller, 1999, pp. 52, 53).

Catarina Madeira Santos (Santos, C. M., 2005, p. 128) incorpora outro objetivo na análise das relações de vassalagem, a pretensão de sedentarizar os sobas e os seus súditos em zonas fixas, para impedir a circulação dos mesmos, agregava também a população africana aos presídios onde havia maior necessidade de gente. Por isso, os tratados de vassalagem estabelecidos depois de guerras recolocavam as autoridades africanas na posse de suas terras, mesmo com deveres instituídos nos acordos. Esta política estava relacionada ao tráfico de escravos, que, em um território em paz e com relações de aliança estabelecidas entre súditos portugueses e africanos, a concorrência estrangeira se afastaria e as trocas e tributos estariam garantidos (p. 134). Sendo assim, os autos de vassalagem do século XVIII, diferentes dos analisados por Beatrix Heintze (2007) para o seiscentos, visavam reforçar a política de territorialização if_!supportFootnotes]>[10]endif]> .

Cartas patentes e as autoridades africanas Ora, se não vigorava a superioridade militar europeia em Angola (Thornton, 2004), as conquistas militares contaram também com a participação de autoridades africanas. As alianças entre agentes da coroa e africanos não estavam expressas apenas nos contratos de vassalagem, mas também nas patentes recebidas pelos africanos, que se tornavam, mesmo que momentaneamente, súditos portugueses. Isso comprova que africanos faziam parte da administração portuguesa e que as relações não eram engendradas somente por meio da violência, mas por negociações, apropriações, reconhecimento e legitimação.

Para os anos de 1754 a 1763, foram analisadas seis nomeações para autoridades africanas if_!supportFootnotes]>[11]endif]> , uma concedida pelo governador Dom António Álvares da Cunha (1753-1757) e as demais da época do governador António de Vasconcelos (1758-1764). Em 30 de julho de 1754 Dom António Álvares da Cunha concedeu carta patente de dembo if_!supportFootnotes]>[12]endif]> e senhorio das Terras de Gombe Amuquiama a Dom Sebastião Manoel Silvestre, natural destas mesmas terras, e filho de Dom Sebastião Manoel Silvestre e de Dona Lucrécia de António (PADAB, IHGB 126 DVD 8, 13 - AHA, Códice 301 - C-20-2, fl. 8). Tratava-se de uma carta patente de confirmação, pois o provimento havia sido realizado por todos os macotas, sobas e quimbares if_!supportFootnotes]>[13]endif]> deste senhorio, provimento que redundou na deposição de Dom Francisco Manoel Silvestre, pelo seu mau procedimento if_!supportFootnotes]>[14]endif]> . Por estar gozando do dito senhorio, Dom Sebastião Manoel Silvestre pediu ao governador que fizesse a mercê de confirmá-lo no posto. Observação interessante é a afirmação do governador: tendo respeito ao referido e ao mais que se me representou.Não sabemos se esta representação era escrita, ou realizada por meio de intermediários, mas, em qualquer caso, é um indício de apropriação da escrita (lato sensu) entendida como princípios hierárquicos, códigos, valores pelos africanos, no caso apropriação do ato de requerer patentes. Stricto sensu, a escrita podia ser utilizada como um dispositivo de diferenciação. Por corresponder às expectativas de ser fiel como um bom vassalo, Dom António Álvares da Cunha confirmou o dembo no posto, com todas as honras e privilégios, liberdades e isenções próprias do posto.

O dembo e senhorio das terras exercia o cargo, sem carta patente dada pelo governador ou pelo rei, mas respaldado pelos macotas, sobas e quimbares. Porém, mesmo assim buscou a confirmação do governador, que lhe foi concedida. Como se , a dimensão relacional criou identidades militares, quer entre africanos e portugueses (dembo e governador), quer entre africanos (dembo, quimbares, etc.). O posto de dembo se confirmou pela relação entre africanos e o governador. O auto de vassalagem era uma relação recíproca, desigual, mas nem por isso deixava de ser uma troca com benefícios aos africanos, e não era apenas uma imposição unilateral.

Mais ainda, Dom Sebastião Manoel Silvestre conseguiu a confirmação do cargo de dembo e senhorio das terras de Gombe Amuquiama, ainda que se sublinhe na carta que deveria ser fiel como um bom vassalo e condicionado a servir a Sua Majestade. Pelo provimento do governador, Dom Sebastião Silvestre poderia ter honras e privilégios próprios do cargo. Tendo sido o próprio dembo que fez a representação ao governador para conseguir a confirmação do cargo, não poderia residir uma estratégia de ocupar cargos portugueses a fim de aumentar o seu poder local? Da mesma forma, o governador Dom António Álvares da Cunha reconheceu a lealdade de seu vassalo e confirmou a patente. Portanto, é possível afirmar que sociedades africanas participaram da monarquia portuguesa a partir de suas estruturas e hierarquias locais, reconhecendo também as formas de classificação do reino, readaptando-as. Nada disso era, necessariamente, incompatível.

Outro que requereu a confirmação do posto foi Dom Miguel Afonso do Espírito Santo, natural das Terras de Namboagongo, filho de Dom Silvestre Afonso do Espírito Santo e de Dona Maria Afonso da Silva. A carta patente de confirmação no posto de dembo e senhorio das Terras de Namboangongo foi dada pelo governador António de Vasconcelos em 15 de agosto de 1759 e, como o caso anterior, foi feita uma representação pelo dembo, por ter sido eleito e provido por Dembo e senhorio das ditas Terras de Namboagongo por todos os macotas, sovas, e quilambas if_!supportFootnotes]>[15]endif]> do dito senhorio, ou seja, Dom Miguel estava provido e pediu confirmação do governador ao posto. O motivo desta eleição foi o falecimento do dembo anterior, Dom Francisco Afonso da Silva (PADAB, IHGB 126, DVD 9, 16 AHA, Códice 308 C-21-3, fl. 138v.). Conforme dito, os momentos de sucessão eram propícios à ritualização de instauração de poder e de alianças políticas.

Também filho de Dom Silvestre Afonso do Espírito Santo e de Dona Maria Afonso da Silva, foi confirmado no posto, em 26 de abril de 1762, Dom Manoel Afonso da Silva, natural de Namboangongo, eleito por todos os macotas, sobas e quimbares.

O ocupante anterior e seu irmão, Dom Miguel Afonso do Espírito Santo, foi deposto por culpas graves que lhes deram e me contou pelas inteiras informações que tive serem justas e verdadeiras, pelo que todo o Povo do dito Estado o não queriam nele. E por isso seu irmão recebeu a patente deste posto, gozando de todas as honras e privilégios próprios do cargo. Nove anos depois, em 24 de dezembro de 1771, Dom Manoel Afonso da Silva assinou o auto de obediência e vassalagem por por mão dos seus embaixadores D. Francisco Cazumbu, e D. Pedro Manibundaguenga pelo Estado de Ambuela em que foi nomeado, composto por sete artigos. Neste auto o dembo jurou inteira obediência e vassalagem à coroa portuguesa, cumprindo todas as ordens do governador e do capitão-mor do presídio de Encoge (PADAB, IHGB 126 DVD 9, 16 AHA, Códice 308 C-21-3, fl. 78). O que se observa no caso das terras do dembo Namboagongo é que o contrato de vassalagem perpassa, entre 1759 e 1771, por Dom Silvestre e seus filhos, Dom Miguel e Dom Manoel. O auto legitima a organização do poder do dembo pelo que todo o Povo do dito Estado o não queriam nele.

Um dos pontos abordados neste documento está relacionado à guerra. O auxílio na guerra é jurado, no entanto não farão Guerra a pessoa alguma, sem licença expressa do Excelentíssimo Governador deste Estado. Uma das obrigações firmadas era a de respeitar e obedecer aos missionários e de servirem na missão. Deviam fornecer carregadores gratuitos e tudo o que fosse necessário à subsistência daqueles que passavam nas suas terras em função do Sagrado.

Deviam pagar dízimos por serem cristãos batizados, ou seja, o batismo e o pagamento de dízimos se inserem nas práticas doutrinárias e de tributação da coroa portuguesa (Carvalho, F. M. de, 2013, p. 76). O comércio também é assunto de destaque neste auto de vassalagem conforme o quinto artigo do documento:

Que de nenhuma forma, em nenhum tempo, e por nenhum caso farão Comércio com os povos do Norte, que comerciam com os estrangeiros em Loango, Cabinda, e Molembo; e nem deixaram passar fazendas, ou Escravos pertencentes a este comércio; e todos os que assim passarem com fazendas, ou escravos serão presos, e remetidos via Reta ao capitão-mor de Encoge para proceder na forma das ordens de Sua Majestade, e assim mesmo todas as fazendas, e escravos com que passarem (PADAB, IHGB 126 DVD 9, 16 AHA, Códice 308 C-21-3, fl.

78).

Os povos do norte e a presença de estrangeiros eram preocupações do governo português, sobretudo no que diz respeito ao comércio de escravos if_!supportFootnotes]>[16]endif]> . Nas suas feiras, chamadas sonas, o dembo não poderia consentir comércio com estrangeiros, nem impor tributos aos povos vassalos do rei de Portugal. Este auto é assinado pelos embaixadores, na presença do secretário de estado do governador do reino António Lobo da Costa Gama e do capitão tendala Nicolau de Nazareth, responsável pela leitura e explicação deste documento na língua do país, e também assinou o secretário do dembo, o frei Miguel Francisco de Menezes.

A ideia de que os Vassalos de Sua Majestade assinaram os autos de vassalagem por imposição bélica pode, neste caso, ser em parte contestada, visto que, antes do auto de vassalagem, Dom Manoel Afonso da Silva recebeu a patente de dembo e senhorio. Significaria esta patente um ato de imposição bélica? Tratava-se de uma relação de interesses mútuos, de acordos consensuais, pelo menos neste caso. A concessão de uma patente pressupõe apoio militar por parte do dembo, da mesma forma que permite acesso aos portugueses a esta região. Ao pedir confirmação do posto, o dembo concorda e busca a inserção na estrutura administrativa e militar do governo português em Angola. O auto de vassalagem pressupõe uma relação de submissão, no entanto o vassalo buscava proteção e em alguns casos vantagens comerciais if_!supportFootnotes]>[17]endif]> .

Para as terras de Caculo Cacahenda, em 1759 foi provido pelo governador António de Vasconcelos, Dom Paulo de Sebastião Francisco Cheque, para o cargo de dembo e senhorio das Terras de Caculo Cacahenda. Filho de Dom Sebastião Francisco e de Dona Madalena de Paulo,

fez representação sobre estar eleito e provido por dembo e senhorio das ditas terras de Caculo Cacahenda por todos os macotas, sobas e quilambas do dito senhorio por deporem a Dom Francisco Sebastião Cheque, que haviam [sic] eleito por seu mal procedimento com que se havia no dito Estado e para haver de lograr o dito senhorio com quietação me pedia lhe fizesse mercê de confirmar nele (PADAB, IHGB 126 DVD 9, 16 AHA, Códice 308 C-21-3, fl. 82v.).

Como nas cartas patentes anteriores, o dembo e senhorio das Terras de Caculo Cacahenda estava eleito pelas lideranças locais, mas fez representação ao governador para o confirmar no posto. O mau procedimento do dembo anterior serviu novamente como justificativa à deposição. Assim, Dom Paulo Sebastião Francisco Cheque pediu a mercê de confirmá-lo no dito posto.

Em 2 de novembro de 1763, António de Vasconcelos concedeu o pedido feito por meio de uma representação de Dom João Afonso da Silva, pela confirmação no posto de dembo e senhorio das Terras de Namboangongo. Filho de Dom Paulo Afonso da Silva, Dom João Afonso correspondia com a fidelidade de um bom vassalo, o que serviu de justificativa para a confirmação. Antes da confirmação estava eleito por todos os macotas, sobas e quimbares, pois o dembo anterior falecera.

Como se , a incorporação de cargos africanos na estrutura militar portuguesa está presente nestas patentes militares recebidas pelos chefes locais. Assim, é possível afirmar que a ascensão social e inserção no império português, por meio dos postos militares, não eram exclusivas dos habitantes do reino ou da América portuguesa. As cartas patentes concedidas para as autoridades locais seguiam um modelo comum, no entanto a presença de alguns membros da hierarquia local (a exemplo dos quimbares, tendalas, quilambas) no reconhecimento da autoridade nomeada não deve ser desconsiderada. Ao nomear, o governador reconhece a existência anterior de uma eleição local que legitimava os nomeados. Desse modo, formalmente, mas não apenas, a carta patente ratifica uma decisão tomada pelas autoridades locais.

Chamo aqui a atenção para algumas características do Estado moderno que podem estar relacionadas a estas concessões locais, pois o reino de Angola pode ser visto como um microcosmo social do império português, sem que se resuma a isso.

A consolidação do Estado moderno português se deu em torno de características afins, como a ideologia do serviço e a recompensa, laços múltiplos de interdependência. Neste sistema de mercês, foi que se sustentaram novas forças sociais, fidelidades e relações políticas. Para justificarem seu trono e manterem a coroa, os monarcas tinham como obrigação dar, o que implica em um gesto de obrigações recíprocas. Logo, a economia de mercê também estava presente em Angola, manifestando-se nas nomeações dos postos militares. Os autos de vassalagem, os pedidos e concessões de patentes podem ser entendidos como uma disponibilidade para o serviço, pedir, dar, receber e manifestar agradecimento, num verdadeiro círculo vicioso, eram realidades a que grande parte da sociedade deste período se sentia profundamente vinculada, cada um segundo a sua condição e interesses (Olival, 1999, p. 30). Como afirmámos, nada disso era incompatível com o undamento. Logo, a parte do contrato se ajustou ao sistema de mercê portuguesa. Porém, ao reconhecer cargos e autoridades locais formalmente pelo auto de vassalagem, o sistema de mercê se ajustou ao undamento.

Não estamos aqui negando a violência, os modos de conquista, ainda presentes no século XVIII. As guerras de conquista eram práticas na região, e os conflitos entre as autoridades locais eram utilizados para conseguir maiores benefícios para os agentes da coroa. Guerras rendiam escravos, presença territorial e maior influência administrativa. No entanto, as relações políticas não podiam ser tecidas somente pela violência. As autoridades locais aceitavam acordos visando também benefícios e não aceitariam apenas a submissão, mesmo porque a presença militar portuguesa era limitada por diversos fatores. Na organização das tropas e sua composição, veremos o quão menor era esta presença portuguesa, até por questões de mortalidade. Com efeito, o governo português em Angola utilizava atributos essenciais para governar seus súditos, como o prêmio e a punição. Tentavam impor o poder de ordenar, proibir, autorizar e decidir (Olival, 1999, p. 33) if_!supportFootnotes]>[18]endif]> . Poderes africanos, no mínimo, impediriam a imposição absoluta da presença portuguesa.

Todos os homens que receberam a patente de dembo e senhorio tinham o nome cristão de batismo e carregavam consigo o título de Dom. Conforme o dicionário Raphael Bluteau (Bluteau, 1712-1728), Dom é um título honorífico, que, antigamente, se dava aos reis e seus descendentes, aos ricos homens, e a cavaleiros que tinham o privilégio Real por grandes serviços. Tratava-se de uma dádiva. Porém, o uso deste título tornou-se comum (p. 283). Provavelmente, o uso deste título honorífico pelos chefes africanos esteja relacionado aos contratos e acordos estabelecidos entre portugueses e dembos por seus grandes serviços. Ou, talvez, fosse uma prática apropriada pelos africanos na tentativa de se inserir no universo reinol, e nos benefícios daí derivados, mas também na diferenciação social local, isto é, parte integrante da política africana if_!supportFootnotes]>[19]endif]> .

Palavras finais Por um lado, africanos se apoderaram de elementos da cultura europeia para criar e reforçar as hierarquias sociais entre si. Por outro, parte do aparato jurídico colonial e do tecido cultural e religioso português em Angola foi baseado em instituições africanas. As sociedades angolanas costeiras que surgiram a partir de interações entre os africanos, brasileiros e europeus estavam longe de serem sociedades coloniais com uma hierarquia rígida, justamente porque o direito consuetudinário africano foi fundamental para o ordenamento jurídico português de Angola (Ferreira, 2012, pp. 9, 13).

Para tirar proveito do papel político proeminente destes governantes africanos, súditos portugueses procuraram estabelecer parcerias com eles. Assim, autoridades africanas aliadas passaram a realizar vários serviços para a administração portuguesa, incluindo o fornecimento de carregadores para as caravanas que transportavam mercadorias para feiras nos sertões, a proteção de comerciantes que viajavam nos sertões e apoio militar ao governo de Luanda em caso de guerra. Por isso, as alianças entre portugueses e sobas eram particularmente úteis para manter a segurança e o controle social das regiões sob influência portuguesa. Sobas que se recusassem a cumprir os seus deveres ou que não estavam em conformidade com as políticas de Luanda, ficavam sujeitos à punição por parte das autoridades coloniais (pp. 39, 40).

Era vantajosa a relação estável com os governantes africanos, que isto representava a possibilidade de fortalecimento do comércio e a garantia de segurança desta possessão. Ainda assim, a administração redesenhou fronteiras territoriais e estabeleceu novas estruturas hierárquicas (p. 42). De novo, a guerra e as relações políticas com chefes locais foram usadas como recurso para o desenvolvimento dos interesses políticos e comerciais em Angola. Em um momento em que a coroa tentava territorializar e controlar negócios, alguns empecilhos foram postos. A própria necessidade de estabelecer acordos com dembos e sobas e as guerras empreendidas a partir destas relações foram alguns deles. A presença de militares negociantes fez com que os interesses pessoais fossem priorizados e a própria atuação dos africanos nas tropas modificou os moldes políticos portugueses oriundos dos poderes centrais do reino de Portugal. A atividade militar era influenciada pelos poderes locais necessários às práticas comerciais, uma vez que militares também realizavam comércio, sobretudo de escravos.

Sendo assim, a guerra e a negociação eram práticas constantes em Angola neste período. Apenas pelo recurso à violência as relações não se mantinham e, por conseguinte, os vassalos do rei eram fundamentais na hierarquia sócio-política africana. De qualquer modo, conclui-se que a manutenção do reino de Angola foi garantida pela coexistência de poderes e hierarquias vindos de Portugal e de estruturas locais.


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