A Questão das Ouvidas, ou a Disputa entre Autoridades Civis e Militares pelo
Julgamento de Causas Gentílicas na Angola de Meados do Século XIX
ARTIGO ORIGINAL
A Questão das Ouvidas, ou a Disputa entre Autoridades Civis e Militares pelo
Julgamento de Causas Gentílicas na Angola de Meados do Século XIX
The issue of the "Ouvidas": The dispute between civil and military
authorities for the trial of "causas gentílicas" in mid-19th
century Angola
O ponto de partida para este artigo é a publicação de uma portaria a 10 de
fevereiro de 1855, no Boletim Official do Governo Geral da Provincia de Angola,
da autoria de José Rodrigues Coelho do Amaral, no seu primeiro mandato enquanto
Governador-geral interino da colónia (1854-1860)[1]. Através desta, o estadista
enceta uma tentativa de regular um ato cível, que denomina Ouvida, criando
imediatamente polémica, quer em torno da natureza desta nebulosa instituição
jurídica, quer das normas processuais a aplicar, controvérsia que extravasará,
também ela, parcialmente para as páginas do Boletim Official[2]. A altercação
que resulta da tentativa de José Amaral de normativizar uma das [acções
cíveis] que se apresentam mais frequentemente nos Julgados dos Districtos e
Presidios[3] revela tensões que permaneciam latentes, do ponto de vista
administrativo, desde que, com a aplicação das reformas esboçadas no decreto
com força de lei de 30 de dezembro de 1852[4], haviam sido finalmente dados
passos consequentes no sentido de avançar com a desmilitarização da
administração colonial[5]. Estes antagonismos, entre membros de corporações
civis e militares encarregues de administrar a justiça cível no território
colonial, reemergiriam mais uma vez em 1866, quando uma circular, emitida a 3
de agosto e publicada no dia seguinte no Boletim Official, indaga às médias
patentes sertanejas a utilidade das Câmaras Municipaes, Comissões Municipaes
e Julgados, instituições que entretanto haviam passado a desempenhar um papel
em muitos aspectos concorrente com o dos militares[6].
O estudo de ambos os episódios é de interesse para a história da extensão do
municipalismo a Angola no conturbado período em causa. Em primeiro lugar,
porque permite descortinar a evolução da perceção que os vários participantes
nas discussões em análise tinham dos modelos de administração territorial
propostos a partir da metrópole portuguesa. A forma como entendiam estes
esquemas vai-se tornando clara, por exemplo, sempre que, a fim de denegrir
politicamente os seus rivais, os intervenientes nos debates comparam a sua
visão da realidade angolana com a conceptualização que tinham de tais modelos,
frisando falhas e apontando incongruências alheias. Em segundo lugar, porque a
partir dos detalhes extraídos deste tipo de acusação é possível traçar uma
etnografia parcial do habitusdos agentes coloniais do sertão[7], que continuou
a ditar os seus comportamentos de forma em grande medida impérvia às normas
oficiais expedidas a partir de Lisboa. Assim se explica que as mesmas críticas
fossem ciclicamente avançadas por ambos os lados em contenda, demonstrando que
na prática tanto os sertanejos militares quanto os civis se continuavam a reger
no seu dia-a-dia por esquemas de sobrevivência e enriquecimento traçados e
incorporados[8] quando o tráfico negreiro transatlântico era ainda legal.
Finalmente, o estudo do desenrolar de ambas as polémicas, despoletadas e
alimentadas por emanações legais e comentários dados ao prelo no Boletim
Official, permite apurar como nesta folha se cria um espaço de debate e
contenda, liça para as elites locais, cujas controvérsias passam assim não só a
poder ser seguidas mais de perto pela administração colonial metropolitana,
como a deixar traços passíveis de serem hoje analisados pelos historiadores.
Este é portanto também um estudo sobre a esfera pública angolana de meados do
século XIX, conforme foi sendo instituída pelo Boletim Official, publicação que
acabou servindo ao mesmo tempo de meio para a extensão, por via legal, do
municipalismo a África, e de registo da opinião das elites coloniais
intermédias em relação a este processo.
A perene tensão entre uma metrópole afetiva e uma metrópole normativa
Mesmo um estudo superficial da administração colonial portuguesa do território
angolano permite a imediata perceção de um padrão de actuação que se manteve
durante grande parte do século XIX, o qual, embora não imediatamente óbvio aos
intervenientes históricos que o vão traçando, o é a posteriori para os
historiadores. Este padrão, caracterizado pelos sucessivos impasses, demoras na
aplicação ou mesmo promulgação local de decretos e outras emanações legais –
que, após o serem, são imediatamente sofismados –, resulta da tensão permanente
entre as normas exaradas a partir de Lisboa e o habitusdos agentes locais
(Santos, 2010, pp. 539-556). Este era não só, e por definição, mais
influenciado pelas práticas cotidianas e exigências da luta pela sobrevivência
do que por quaisquer regras formais decretadas em abstrato, como também
profundamente marcado pela força de gravitação, constante mas nem sempre
conspícua, do Brasil – verdadeira metrópole afetiva do território[9]. Assim
sendo, o desrespeito pela intenção do legislador assente na sede europeia do
Império Português, que se traduz na negação ou adulteração local das normas
resultantes dos sucessivos ímpetos reformistas oitocentistas, resulta
igualmente numa crise de autoridade que, apesar de ser sobretudo o resultado da
resiliência passiva de hábitos enraizados, era por vezes apercebida pelas
fragilizadas elites portuguesas como um desafio programático ou reflectido à
sua legitimidade[10].
Como tal, até meados do século XIX, Lisboa foi incapaz de introduzir em Angola
certos avanços desejados pelos reformadores liberais, como a administração
civil da justiça, pois assim que uma maior liberdade era concedida às elites
civis locais, o desejo de aproximação ao Brasil era imediatamente ventilado, o
que era entendido pelos dirigentes metropolitanos, não como o anelar utópico e
nostálgico do regresso de um status quo anteque ainda era parcialmente
reatualizado em certas vivências cotidianas dos escravocratas locais, mas
como uma ameaça concreta à soberania portuguesa em África. Assim, nas três
décadas que medeiam entre o complexo processo que culminou no reconhecimento
português da independência brasileira em 1825, e a publicação do decreto com
força de lei de 30 de dezembro de 1852, inúmeros fatores parecem conspirar para
aproximar Angola dessa sua metrópole afim (Pantoja, 2003, pp. 187-215),
ditando a manutenção até tarde de um carácter predominantemente militar da
administração colonial, tido como garante último do vínculo com Lisboa (Dias,
1981, pp. 273-285).
Esta dinâmica pode ser facilmente surpreendida centrando a análise na
resistência local a duas reformas profundas, programadas pelos decretos de 7 e
10 de dezembro de 1836, o primeiro conhecido como Reforma Vieira de Castro, o
segundo como decreto de Sá da Bandeira (Marques, 1995, pp. 375-402). O
último, ao promulgar abruptamente o final do tráfico negreiro transatlântico,
choca frontalmente contra interesses económicos óbvios, cuja defesa, desde o
acordo anglo-brasileiro de 1826 (Dias, 1981, pp. 294-304; Rodrigues, 2008, p.
120), se vinha cristalizando na colónia em torno da Junta da Fazenda de Luanda
e do Senado da Câmara Municipal de Luanda (Alexandre, 1991, pp. 295-296).
Ambas as corporações, entre 1830 e 1833 – numa época em que o número de
escravos exportados paradoxalmente aumentava –, denunciam de forma tão
hiperbólica quão interessada os grandes males que o acordo entre o Império
Britânico e o Brasil vinha supostamente trazendo à economia e às finanças da
colónia, começando assim a aliar à resistência empírica dos negreiros um mais
refinado discurso teórico, apologético da escravatura (ibid.). Posteriormente,
estes interesses corporativos tornariam difícil a aplicação imediata do decreto
de 10 de dezembro de 1836, atrasando mesmo a sua publicação na colónia mediante
o boicote à publicação do primeiro número do Boletim Official (ibid., p. 309;
Lopo, 1964).
A Reforma Vieira de Castro, por sua vez, estabelecia a divisão dos Dominios
Africanos em tres Governos geraes, e um particular. Eram dotados de Governo-
geral Cabo Verde e suas dependências, Angola e os territórios da Africa
Occidental Austral e finalmente Moçambique e as Possessões Portuguezas na
Africa Oriental, passando as Ilhas de São Tomé e Príncipe, em conjunto com o
Forte de S. João Batista de Ajudá, a constituir um Governo particular. Aos
comandos de cada um destes domínios passa a estar a figura civil do Governador
geral, sendo os Conselhos de Districto substituídos por Conselhos de
Governo.
Para além deste passo na desmilitarização do território, o decreto de 7 de
dezembro prevê igualmente no seu 11.º artigo a criação de regulamentos
particulares para a organização das Authoridades Judiciaes, Administrativas,
Municipaes e Fiscaes, bem como, no seu artigo 17.º, o estabelecimento de
Governadores subalternos, exercendo a autoridade administrativa e militar
em cada um dos Presidios e Estabelecimentos marítimos, ou no interior do
Continente. Finalmente, é este mesmo decreto que, no seu 13.º artigo,
preconiza a publicação debaixo da inspecção de cada Governo geral de um
Boletim, no qual se publiquem as Ordens, Peças Officiaes, Extractos dos
Decretos regulamentares enviados pelo respectivo Ministério aos Governos do
Ultramar[11].
Tidos em conjunto, estes dois decretos setembristas lançam não só as bases para
a civilização, no sentido dedesmilitarização, do aparelho administrativo
colonial, como propõem sérias restrições à principal atividade económica em que
se estriba a vivência das elites locais – o tráfico negreiro transatlântico –
e, também, a criação de um órgão de difusão oficial no território angolano das
normas legais enviadas do reino. Como tal, é sem surpresa que a reacção
contrária ao ímpeto abolicionista de Sá da Bandeira[12] se estende igualmente à
introdução da imprensa periódica na colónia (Lopo, 1964). Nesta conjuntura, o
clima de insurreição e caos administrativo criado serve também como travão à
desmilitarização do aparelho colonial, adiada até um balanço de forças tido
como mais propício à metrópole portuguesa (Marques, 1995).
Na década de 1850, quando o tráfico transatlântico de escravos começa a
estancar[13], a administração colonial metropolitana, aproveitando a relativa
estabilidade política do período e a perceção de que o perigo independentista
havia atingido o seu nadir, começa finalmente a reformar de forma consequente o
carácter acentuadamente militarista do poder local em Angola. Do fim do
comércio negreiro transatlântico resulta porém uma tentativa de transplantar
para Angola o modelo escravocrata do Brasil numa escala puramente interna, por
parte das pequenas burguesias crioulas. Estas, que com as sul-americanas
partilhavam uma mundividência atlântica, passam a recorrer às plantações de
açúcar e à destilação de álcool a fim de acumularem capital, depois empregue na
compra de escravos no sertão (mais ou menos encapotados sob a denominação de
serviçaes, libertos ou resgatados) (Torres, 1991). A mão-de-obra gratuita
assim adquirida alimentaria um sistema neomercantilistacircular, que primeiro
derrotou as tentativas pífias de instalação de um sistema verdadeiramente
capitalista por parte da metrópole, mas que depois viria a ser cooptado pela
alta burguesia lisboeta[14].
Consequentemente, apesar de o iníquo comércio transatlântico ter sido
gradualmente desmantelado, todas as técnicas refinadas de produção de escravos
[15] para o mercado intercontinental foram antes de mais reajustadas à nova
realidade interna, e não esquecidas. Este mero reajustar de escala possibilitou
a manutenção de práticas e normas culturais locais que deixaram de colidir
frontalmente com as reformas legais decretadas a partir de Lisboa, por as
autoridades do reino passarem a contemporizar com a manutenção velada da
escravidão interna[16]. Apesar de assim diminuir o potencial de conflito entre
as sucessivas normas expedidas da metrópole europeia e o habitusdos locais que
continuavam embrenhados num cotidiano esclavagista, graças a um realinhamento
de interesses que se traduziu numa pacificação social, esta situação de
equilíbrio era frágil. Era-o, porque dependia da não explicitação de
pressupostos tacitamente aceites mas em choque, quer com a fachada
abolicionista internacionalmente mantida, quer com as expetativas de
ocidentalização e europeização cultural cada vez mais teleológicas e associadas
ao conceito de civilização[17].
É neste contexto que é promulgado o decreto com força de lei de 30 de dezembro
de 1852, que proporciona um novo regimento para a administração da justiça nas
Provincias de Angola, e S. Thomé e Principe e suas dependencias. Para além de
estabelecer no seu primeiro artigo que o Reino de Angola, Benguella e suas
dependencias formam um Districto Judicial, o de Luanda, em conjunto com as
Ilhas de S. Thomé e Principe e suas dependencias, este decreto promulga no
segundo artigo a existência de três comarcas, de Luanda, Benguela e S. Tomé,
subdividindo-as por sua vez no terceiro artigo em Julgados e em Presidios,
segundo a natureza e estado da sua respectiva população.
Este decreto introduz de seguida uma inovação fulcral: o mais baixo escalão da
hierarquia administrativa da justiça, para além de dividir os espaços coloniais
entre aqueles sob a alçada civil (Julgados) e aqueloutros sob a militar
(Presidios), subordina o apurar do aparato administrativo conveniente a um
dado local à natureza e estado dos seus habitantes[18]. Assim, ao mesmo tempo
que nos dicionários civilização ganha o sentido que lhe reconhecemos hoje
(Lima, 2012, pp. 66-81), começa igualmente a civilização da administração da
justiça – no sentido de desmilitarização – a estar subordinada ao que os
governadores iluminados haviam entendido meramente como o grau de polidez ou
ilustração de um dado povo[19].
Se o debate em torno das virtudes de um governo civil, e portanto polido ou
policiado dos povos, era à data inexistente, porque havia ficado resolvido a
favor do reconhecimento universal da sua conveniência[20], com o decreto de 30
de dezembro de 1852 a discussão em torno do tipo de tutela jurídica, se civil
ou militar, mais adequada a um dado povo volta a ser pertinente, servindo de
liça para o embate entre distintas corporações com interesses económicos
ligados à prestação da justiça. Por outras palavras, neste contexto é possível
a um militar defender que é à sua corporação que deve caber a superintendência
à data nas mãos de um civil[21] por não estarem reunidas as condições de
civilização da população da área em causa. A fundamentação desta inversão de
uma evolução tida como irreversível – a dos Presidios em Julgados – era
até então de tal forma impensável (Silva, 2006, pp. 16-18), que Massangano
havia mantido os seus privilégios de vila mesmo quando não cumpria, havia
décadas, com quaisquer outros requisitos que não os históricos.
O decreto com força de lei de 30 de dezembro de 1852 proporciona assim um
enquadramento para o embate entre os membros das corporações militares e civis
capazes de concorrer pela administração da justiça em Angola, ao mesmo tempo
estabelecendo a denúncia do incumprimento de condições civilizacionais (no
sentido de ocidentalização dos costumes, e não de simples submissão a leis
codificadas) enquanto dispositivo retórico de preferência dos intervenientes. A
disputa que se segue, ao ser travada nestes termos, passa a basear-se em
delações de parte a parte relativas à adoção precisamente das práticas
cotidianas que haviam sobrevivido enquanto elementos do habitusdos agentes
locais afeitos ao comércio negreiro. Permanência que, beneficiando de
tolerância tácita por parte das cúpulas da administração colonial local, estava
na base da pacificação social do território que havia possibilitado quer o
relançamento da economia, quer as novas reformas.
Por outras palavras, no confronto entre as corporações civis e militares pelo
acesso aos postos administrativos mais baixos é quebrado parcialmente o
silêncio em relação à continuada adoção generalizada dos costumes gentílicos,
que desde o tempo dos capitães-mores faziam parte do cotidiano dos agentes
coloniais, que a eles recorriam não só para criarem o seu pé-de-meia, como para
produzirem parte da mão-de-obra escrava que alimentava a economia (Santos,
2005b, pp. 818, 822-824).
Normatizando o improviso
De entre todas as reformas de fôlego propostas pelo decreto com força de lei de
30 de dezembro de 1852, são as contidas no seu artigo 67.º aquelas que causam
manifesta celeuma entre as corporações civis e militares responsáveis pelos
escalões mais baixos da administração colonial. Este artigo, parte do capítulo
dedicado às disposições gerais, regula que os emolumentos a cobrar pela
prestação da justiça sejam provisoriamente contados pelo que está determinado
no Decreto de 26 de Dezembro de 1848 para o continente do Reino. Assim, esta
decisão implica, conquanto indirectamente, que o legislador seja forçado a
determinar, posteriormente e de forma casuística, como vão ser calculados os
valores arrecadados pelos funcionários que desempenham funções não equiparáveis
a quaisquer outros em acção na metrópole europeia.
Esta normatização começa a ser ensaiada na alínea primeira do artigo 67.º, que
versa sobre os emolumentos a cobrar por aqueles que exercem as funções de
Juizes, e de Empregados de Justiça nos Presidios e Districtos – por outras
palavras, os militares que velavam em África pela justiça cível. O autor do
decreto determina que os valores coletados pelos ocupantes destes cargos sejam
provisoriamente os mesmos que até agora se percebiam, ficando previsto,
porém, nas alíneas segunda e terceira do artigo 67.º que a Relação de Luanda
procederia immediatamente a formar uma tabela fixa dos emolumentos, a ser
submetida ao Governador-geral de Angola, que sobre ela deveria deliberar em
Conselho por Consulta da Relação, submetendo os resultados à publicação no
Boletim Official[22].
É precisamente no cumprimento desta obrigação que José Rodrigues Coelho do
Amaral, enquanto Governador-geral interino, faz publicar no Boletim Official a
portaria número 66, de 10 de fevereiro de 1855. Nesta, defende a adoção
definitiva da tabela provisória[23] que estabelecia os emolumentos a cobrar
pelos que exerciam as funções de juízes, e de Empregados da Justiça, nos
Districtos e Presidios desta Provincia, após esta ser aumentada com um
aditamento que resolvia uma grave omissão. O Governador-geral interino
aproveita então a oportunidade de revisão, proposta nas alíneas segunda e
terceira do artigo 67.º do decreto de 1852, para colmatar o que entendia ser
uma falha na legislação vigente, aumentando a tabela de emolumentos em vigor
com uma listagem dos valores a arrecadar pela execução das acções cíveis que
acreditava serem as mais comuns em Angola[24]:
Não se achando nesta tabela estabelecidos os emolumentos
correspondentes á acção civel denominada – Ouvida – que é uma das que
se apresentam mais frequentemente nos Julgados dos Districtos e
Presidios, e na qual os Chefes julgam sumariamente, reduzindo tudo a
um só auto de inquirição e de sentença:
Resultando desta omissão a maior arbitrariedade nas exigências dos
Chefes, quanto aos emolumentos pela referida acção; pois que uns
levam mais, outros menos, e todos pretendem receber quantias mui
superiores ás que estão marcadas aos Juizes de Direito, por suas
sentenças, na tabela respectiva:
Convindo regular esta matéria, em harmonia com a legislação vigente
do reino, para que os povos do interior não continuem sob o vexame
que até agora os tem oprimido, de pagarem excessivamente cara a
administração da justiça, ou de prescindirem della, por lhes ser
menos onerosa a continuação do damno sofrido...[25].
Após estas considerações, o Governador-geral interino determina que os Chefes
dos Districtos e Commandantes dos Presidios não poderão julgar e proferir
sentença, senão naquellas [causas] que couberem na sua alçada, ou na dos Juizes
de Direito com recurso para estes, estabelecendo que, fora desta alçada[26],
os militares apenas podem tomar conhecimento de causas enquanto Juizes
Arbitros (estando as suas decisões sujeitas à aprovação ulterior do Juiz de
Direito da Comarca respectiva). De seguida, numa tentativa de enquadrar de uma
forma próxima à adotada na metrópole processos assentes na prestação oral de
depoimentos[27], José Amaral define que nas Ouvidas é a forma de processo
perante os Juizes Eleitos, declarada no Titulo 10.º da Novissima Reforma
Judicial que deve ser sempre seguida[28]. Finalmente, o Governador-geral
interino fixa uma tabela de emolumentos a cobrar aquando das Ouvidas,
dependentes das alçadas das causas mas sempre simbolicamente fixados em metade
dos que estão marcados para os Juizes de Direito, no decreto de 26 de dezembro
de 1848, relativo à administração da justiça por civis no continente do Reino
[29]. A subalternização simbólica dos militares é, assim, dupla: face às
corporações civis e à metrópole.
Graças à breve descrição que José Amaral faculta do procedimento judicial que
intitula de Ouvida, bem como a informações que viria a fornecer em resposta
àqueles que publicamente declararam não haver compreendido o teor da sua
portaria número 66, de 10 de fevereiro de 1855[30], é possível sem margem para
dúvidas estabelecer que a acção cível em causa era o ato judicial que, até
meados do século XIX, era sem qualquer pejo apelidado de audiência de mucanos
[31]. Como tal, a mais profunda alteração proposta pelo Governador-geral
interino seria a submissão das Ouvidas ou audiências de mucanos aos
constrangimentos da escrita, que é, no fundo, o resultado da vinculação desta
acção civel às regras processuais definidas na Novíssima Reforma Judiciária
de 1841[32].
Assim sendo, com a portaria de 10 de fevereiro de 1855, José Amaral não só está
a favorecer os administradores civis da justiça no território, discriminando os
militares na hora de determinar os emolumentos que estes podiam cobrar e as
alçadas até às quais podiam julgar, como está igualmente a propor a quebra do
silêncio tacitamente mantido em torno de certos aspectos das audiências de
mucanos – cuja oralidade lhes vinha permitindo continuar a ser uma parte
essencial do esquema de criação de escravos em tempos de paz[33]. Isto porque
exige mais uma vez o registo escrito das Ouvidas, o que imediatamente traria
a lume a natureza gentílica, pouco polida ou bárbara de grande parte das
normas orais de matriz africana seguidas no decorrer desta acção cível, que
os agentes coloniais subalternos continuavam a resistir a fixar em embaraçosos
registos escritos.
Uma tal reforma impossibilitaria de facto o prosseguimento do julgamento de
grande parte dos casos trazidos à presença dos militares encarregados de
administrar a justiça nos Districtos e Presidios, conforme admite logo à
partida José Amaral, ao expor que estas eram as acções que se apresentam mais
frequentemente a estas autoridades[34]. Isto porque ao tornar a escrita parte
obrigatória da tramitação processual das Ouvidas, a portaria de 10 de
fevereiro de 1855 havia não apenas subalternizado os chefes e comandantes dos
distritos e presídios face aos seus rivais civis (a quem deviam submeter a
transcrição das suas decisões), como impossibilitado o decorrer discreto, ou
mesmo sub rosa, dos casos fundados e julgados, ainda que parcialmente, de
acordo com princípios legais de matriz africana. Ora, estes casos eram não só
uma importante fonte de rendimentos das autoridades militares subalternas, como
também a origem de parte da mão-de-obra enquadrada na refundada economia
esclavagista interna[35].
Assim, a mera reforma processual proposta pela portaria de 10 de fevereiro de
1855 revela-se capaz de transtornar profundamente o status quo consolidado após
a economia esclavagista se haver readaptado aos limites impostos pelo bloqueio
atlântico. Aparentemente apenas de carácter técnico e neutro, as medidas de
José Amaral chocam, porém, com o habitusdos agentes coloniais locais,
precisamente ao impossibilitarem a continuação irrefletida e não burocrática de
uma série de formas de acção até aí tacitamente toleradas pela administração
colonial metropolitana e aceites sem pejo pelas populações crioulas e do
sertão.
No tocante à portaria de 10 de fevereiro de 1855, a resistência das autoridades
subalternas a este novo desafio passou pela alegação de que esta era tanto
incompreensível como inexequível. Isto porque não só mantinha uma grande
indefinição em relação aos contornos precisos dos casos que podiam ser julgados
nas Ouvidas, como ignorava que grande parte dos que tradicionalmente o eram
tinha uma alçada impossível de calcular, do ponto-de-vista dos sistemas legais
ocidentais, ficando portanto inviabilizada a cobrança de emolumentos de acordo
com qualquer tabela baseada nesse parâmetro. Esta tática de alegar
desentendimento e exigir esclarecimentos adicionais sem dúvida partia do
pressuposto de que, uma vez confrontado com a hipótese de ter de explicitar o
que até aí era tacitamente mantido em silêncio (o recurso generalizado a normas
e jurisprudências de matriz africana), José Amaral seria forçado a desistir do
seu propósito.
Confrontado com esta forma de resistência passiva, o Governador-geral interino
responde por via de uma missiva, por ele ditada a Carlos Possollo de Souza,
secretário do Governo, que é dada ao prelo no Boletim Officialde 10 de março de
1855 e expedida individualmente a todos os Chefes de Districtos e Commandantes
dos Prezidios. Nesta, o Governador-geral interino propõe-se responder às
dificuldades[expostas por] alguns Chefes dos Districtos e Presidios, [na]
execução da Portaria do Governo Geral n.º 66 [ ], que trata das cauzas
denominadas = Ouvidas = do modo de as processar, e dos emolumentos que nellas
devem perceber os mesmos [ ] como Juizes[36].
Nesta verdadeira carta aberta, José Amaral torna claro que, ao submeter as
Ouvidas às regras processuais entronizadas na Novíssima Reforma Judiciária,
havia pretendido precisamente sanear as antigas audiências de mucanos de
todo o tipo de práticas processuais e recursos a direitos e jurisprudências
orais de matriz africana. Por esta forma ele pretendia obstar a que o habitus
afro-brasileiro e esclavagista dos agentes locais continuasse a reger de forma
não mediada pela metrópole a distribuição de justiça, forçando os Chefes dos
Districtos e Presidios à consonância com o novo projecto de dominação imperial
almejado por Sá da Bandeira (abolicionista, e em que a influência sul-americana
era mantida em xeque). Assim, quanto à queixa dos militares do sertão de que
versando muitas das = Ouvidas = sobre as questões, usuaes entre os gentios –
de Mucano, Upanda, Quituchi, etc.[37] – mal podem ser determinados os valores
das cauzas, para o efeito de calcular os emolumentos a cobrar, ou que sendo-o,
estas são por tal modo diminutas, que não remuneram sufficientemente o
trabalho do julgador, o Governador-geral interino defende que[38]:
Ha desde logo a observar, quanto ao primeiro destes pontos, que os
termos – Mucano, Upanda, Quituchi, Ruina etc. – exprimem actos mui
diversos; sendo alguns deles de natureza tal, que não podem ser aqui
convenientemente explicados, nem tão pouco as leis portuguezas serem-
lhes applicaveis[39].
Apesar de constatar esta impossibilidade, José Amaral ensaia uma exposição do
significado de mucano, atinente a demonstrar que era possível esvaziar as
Ouvidas de qualquer conteúdo indesejável:
Mucano é a palavra com que se designavam as questões de liberdade das
pessoas, entre os gentios. Destas questões conheciam os antigos
Capitães-mores, na forma regulada pela Ordem Regia de 15 de Março de
1798; mas hoje os Chefes devem de seguir nellas o modo ordinario de
processo, não havendo nenhuma dificuldade em se determinar o valor da
cauza – que deve ser o da pessoa, ou pessoas, que reclamam contra a
sua injusta escravidão. O Juizo de Mucanos nunca abrangeu, legalmente
delictos de outras espécies. Se os antigos Capitães-mores capitulavam
assim muitas questões, de que conheciam abusivamente, e em que
decidiam segundo as praticas nefandas ou ridículas dos gentios, por
isso foram reprehendidos frequentemente pelos Capitães Generais, como
se póde ver no Regimento dado aos ditos Capitães-mores por D.
Francisco Inocencio de Souza Coutinho, em 21 de Fevereiro de 1765.
Hoje, convém que os Chefes esqueçam até a palavra Mucano, ou ao menos
que não façam uso della nos seus escriptos officiaes; pois que a
cauza que ella significa se póde denominar, mui propriamente, de
revendicação de liberdade.
Ás questões de Upanda, Quituchi, e outras similhantes, nenhuma lei de
povo civilizado póde ser aplicável. Conseguintemente, quando dellas
os Chefes tomam conhecimento, com apparato de Juizo, e as decidem,
cingindo-se aos usos barbaros dos gentios, e respeitando compromissos
vergonhosos que a taes questões dão origem, commettem gravíssima
falta, que não poderá mais ser-lhes desculpada[40].
Torna-se evidente que, para José Amaral, o civilizar a justiça na colónia
angolana, mais do que implicar uma desmilitarização do aparelho administrativo,
significa o pugnar pela ocidentalização absoluta, se não do direito privado
aplicado no território, pelo menos das normas e dos trâmites processuais, que
deveriam passar a ser obrigatoriamente mediados pela escrita – uma clara
herança das Luzes[41]. Esta condenação do recurso às praticas nefandas ou
ridículas dos gentios enquanto parte indissolúvel do processo de civilização
é assim matricialmente associada ao projecto imperialista abolicionista de Sá
da Bandeira[42], ainda que de forma não explícita, pois é, na verdade, um
ataque indirecto por parte do Governador-geral interino ao habitus dos agentes
coloniais envolvidos na criação de escravos para o mercado interno por via do
julgamento das causas gentílicas apresentadas nas Ouvidas ou audiências de
mucanos.
Por outras palavras, não é mera coincidência que o novo significado de
civilizar[43], enquanto ato de ocidentalizar os costumes e as culturas
locais, seja mobilizado no contexto das colónias da África ocidental (os
principais centros abastecedores de escravos para o tráfico atlântico), quando,
por exemplo, não o era de igual forma na costa oriental[44] – e que o seja
publicamente, através da divulgação de uma carta aberta no Boletim Official
(quando em termos administrativos bastaria o envio das missivas particulares a
cada um dos Chefes de Districtos e Commandantes dos Prezidios).
Logo, pode concluir-se que José Amaral se vale do Boletim Officialnão apenas
como órgão de divulgação oficial, mas igualmente como ferramenta de pressão,
esperando reformar o comportamento dos recalcitrantes agentes coloniais
subalternos ao redefinir na esfera pública, entretanto criada pelo periódico,
os limites do comportamento doravante tido como aceitável. A noção de missão
civilizadora entra assim para o vocabulário colonial no contexto angolano, não
enquanto forma de tentar regular ou justificar a dominação das populações
africanas negras (mais ou menos independentes da dominação directa portuguesa),
mas como parte do arsenal retórico empregue na tentativa por parte dos
agentes próximos da metrópole europeia de regular as pequenas elites coloniais
locais (mais dispostas a perpetuar habitussedimentados ao longo de décadas de
tráfico negreiro atlântico)[45]:
Com isto [com a afirmação de que o julgamento de questões de Upanda,
Quituchi, e outras similhantes com recurso aos usos barbaros dos
gentios não seria mais tolerado], porém, não se quer dizer, que os
Chefes hajam de abandonar ao desforço de cada um, a reparação da
offença que lhe tiver sido feita. É do rigoroso dever dos Chefes
manter a ordem publica, e assegurar a todos os que vivem sob a sua
jurisdicção, a tranquilidade domestica. Quando, pois, lhes forem
appresentadas taes queixas de Upanda, Quituchi, etc. deverão fazer
comprehender aos queixosos a irregularidade das suas supplicas, e a
impossibilidade de lhas deferir como desejam; mas, ao mesmo tempo,
advertirão as partes adversas para que não perturbem o socego das
primeiras, tornando-as responsaveis pelas desordens que possam
originar-se do despreso desta advertência; e se taes desordens se
manifestarem, sem que todavia dêem logar a procedimentos judiciaes
competentes, reprimil-as-hão com castigos correccionais de prudente
arbítrio – que em similhantes casos são, e serão ainda por longo
tempo indispensaveis neste paiz – mas sem exigir salários alguns, dos
reos, quer pela prisão ou soltura, quer por a condemnação. [ ] A
interferência gratuita que se lhes recommenda, sendo um dever de quem
se acha investido da força publica, em toda a parte; deve-se aqui
considerar como o mais necessario e impreterível desempenho da missão
civilisadora que todos temos a cumprir, para com os rudes povos que
dominâmos[46].
José Amaral admite assim que o improviso continue, e que seja mesmo
necessário por longo tempo, mas impõe que este se confine à distribuição de
castigos correccionais aos perturbadores da ordem pública, sem que de tal
acção resultasse qualquer benefício material às autoridades militares, e, acima
de tudo, sem recurso aos direitos e jurisprudências de matriz africana (uma vez
que é na obstinada petição para a aplicação destes que se passa a estribar a
própria definição de perturbação do socego público ou tranquilidade
domestica)[47].
As propostas avançadas pelo Governador-geral interino, quer na sua portaria 66
de 10 de fevereiro de 1855, quer na carta aberta de 10 de março do mesmo ano,
seriam posteriormente oficializadas em decreto assinado pelo Visconde de
Atouguia, enquanto Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e
da Marinha e Ultramar, a 7 de agosto de 1855[48]. Com este aval oficial
metropolitano entroniza-se a interpretação específica que José Amaral havia
promovido do terceiro artigo do decreto com força de lei de 30 de dezembro de
1852, segundo o qual uma dada subdivisão de uma comarca era constituída em
Julgado ou Presidio de acordo com a natureza e estado da sua respectiva
população. Seguindo este esquema, as zonas militarizadas coincidiam com as
áreas em que a civilização do direito, no sentido de ocidentalização, não
havia sido ainda possível, por as populações continuarem a exigir o recurso às
praticas nefandas ou ridículas dos gentios, cabendo aos Chefes e
Commandantes velar para que tais abusos deixassem de ter lugar[49], mediante
a aplicação desinteressada de corretivos.
A reapropriação militar da retórica da missão civilizadora
Ao contribuir para a redefinição do entendimento dos espaços não civilizados,
José Amaral acaba no entanto por ser também responsável, ainda que
involuntariamente, por avançar com uma nova acepção dos pré-requisitos de
civilização que passam a ser exigidos a uma dada área sob a alçada da justiça
civil. Por outras palavras, não bastava a uma subdivisão de comarca estar
pacificada e sob a administração civil para ser civilizada, e como tal ter
definitivamente assegurado o seu estatuto de Julgado, deixando de poder
voltar a ser equiparada a um Presídio para fins de tutela da justiça. Assim,
é possível teorizar que, ao promover através das suas incursões na esfera
pública da colónia o aceitamento da sua definição de missão civilisadora,
fazendo-o enquanto forma de melhor controlar as acções dos agentes coloniais,
na circunstância, militares subalternos, José Amaral acaba por proporcionar a
esta corporação os referentes retóricos para articular de forma eficaz os
desafios à legitimidade dos seus concorrentes civis.
Sendo os espaços civilizados dos Julgados entendidos como aqueles
supostamente livres de gentilismos, as denúncias de recurso a elementos
processuais e jurisdicionais oriundos ou influenciados pelos direitos de matriz
africana tornam-se, de acordo com esta hipótese, uma arma retórica eficaz na
contestação da sua legitimidade e continuidade. Como tal, acusações de
gentilismo podem passar a estribar a reivindicação por parte dos militares da
necessidade de reverter o processo de civilização da colónia – no sentido da
desmilitarização da sua administração –, enquanto forma de avançar com a
missão civilisadora que José Amaral lhes havia incumbido.
A veracidade desta conjectura parece ser reforçada, tendo em consideração as
respostas a uma circular, emitida a 3 de agosto de 1866, e publicada dia quatro
no Boletim Official[50]. Esta, mais de uma década após a polémica em torno das
Ouvidas, faculta aos militares a hipótese de publicamente expressarem a sua
opinião acerca da utilidade das Câmaras Municipaes, Comissões Municipaes
(proto-Câmaras) e Julgados, possibilitando-lhes, desta forma, o reapropriar
em seu proveito da retórica da missão civilisadora[51]. O comandante do
Concelho de Cambambe lança a primeira pedra, ao atacar abertamente as
instituições civis da área do seu comando militar, para as quais, é preciso ter
em conta, perdera o privilégio de julgar:
Estas corporações [Câmaras Municipais], pois, precisam d'uma severa
fiscalização, ou a sua dissolução. [ ] Que segundo as informações que
tenho, aos habitantes d'este concelho não tem servido d'utilidade
alguma o ter sido elle elevado a julgado, e antes pelo contrário é
público e notório que uma grande parte dos povos d'este dito concelho
se tem visto na necessidade d'emigrar para diversos pontos gentios,
fugindo ás extorsões e vexames que tem sofrido da maior parte dos
juízes ordinarios, ditos de paz, sub-delegados, escrivães, um imenso
número de pretos intitulados meirinhos, etc. e além disto as suas
decisões são quasi sempre absurdas e irrisórias; ainda que se appelle
d'ellas para o juiz de direito da comarca levão imenso tempo primeiro
que se decidão, pela grande distancia a que está d'esta localidade
[52].
A linha dura do comandante de Cambambe marcará o tom de uma série de
intervenções que passam então a ser regularmente publicadas no Boletim
Official, e que proporcionam um manancial de detalhes sobre o cotidiano
sertanejo. António Marques de Mello, Capitão e Chefe do Concelho do Zenga do
Golungo, respondendo ao mesmo repto, afirma por sua vez:
Em quanto ao Julgado tambem não tem sido util aos povos; muitas vezes
recorrem elles á justiça da administração queixando-se de injustiças
e vexames, porque quando o povo procura a justiça judicial não é logo
atendido sem primeiramente apresentar uma taxa exorbitante de
preparos, e como ás vezes os queixosos não têem de prompto aquelles
preparos deixão de progredir nas suas questões, que muitas vezes são
de circumstancia[53].
Demonstrando que esta estratégia de denúncia não é apenas adotada pelos
militares que serviam nos locais recentemente passados à alçada das corporações
civis, também o comandante do Concelho Principal de Massangano tem o seu
testemunho condenatório dado ao prelo:
O povo, em geral, não está satisfeito com o actual systema de
Julgados; o povo desconfia sempre que os seus patrícios os enganão, e
que sempre são lezados na aplicação da justiça: Juizes que se
aproximem de possuir os requisitos pelos quaes possão satisfazer a um
tão importante cargo julgo custoso, senão impossivel o encontra-los
por estas paragens, sejão europeos ou nativos; porêm, com estes
ultimos dá-se mais um contra, e é a superstição de que em geral são
dotados, guiando-se muitas vezes por prejuizos, filhos da falta de
educação que tiveram, a qual se recente imensamente do gentilismo. E
ainda mais, acontece que muitas vezes, se não quasi sempre, o juiz
não se julgando com forças de desempenhar um tão importante cargo,
sem que por isso d'elle desista, recorre a quem o aconselhe; este
d'ordinario abusando da inépcia do juiz, vai agravar a sorte dos
menos favorecidos da fortuna; isto em algumas partes toca a meta do
escandalo[54].
Significativamente, não só do histórico município de Massangano chegam queixas
a Luanda, como de Ambaca, tendo aí os moradores feito circular um abaixo-
assinado, pedindo a extinção do julgado[55]. O tenente José Fortunado
Barreto, a autoridade militar deste concelho, reclama então:
é para mim o mais espinhoso possivel, por ter que informar (sem
acusar) dos actos do julgado d'este concelho; todavia, referindo-me
somente á vantagem, ou desvantagem que o dito estabelecimento de
julgado tem produzido aos habitantes do mesmo, devo dizer a v. ex.ª
que o dito estabelecimento não exerce nem é possivel exercer os actos
judiciaes neste paiz, em toda a sua plenitude, por quanto os povos
estão tão cheios de variados vícios e prejuizos gentílicos, que a lei
jurídica não tem artigos applicaveis a taes prejuizos: logo é facto
que os actos e julgamentos feitos, pelo juizo ordinario são pela
maior parte arbitrarios e accommodados ás partes, conforme o seu
caracter e consciência lhe sugere[56].
Para além destas acusações, no referido abaixo-assinado, publicado no Boletim
Official em conjunto com a resposta de José Fortunado Barreto, pode ler-se que
o povo vinha sendo bastante espoliado de seus teres por meio d'embargos
sucessivos e machinaes, movidos por pessoas poderosas, que dominão com imperio
os juízes ordinarios, que não passão de simples authomatos[57].
A partir do conjunto de testemunhos que foram dados ao prelo em resposta à
circular de 3 de agosto de 1866, é possível estabelecer, antes de mais, que os
tipos ideais que José Amaral associou aos espaços dos Julgados e dos
Presidios haviam sido transversalmente interiorizados, tornando-se padrões
com os quais os elementos de uma dada corporação julgavam depreciativamente o
desempenho dos seus rivais, não por acaso, predominantemente, naturais.
Segundo este esquema, nos Julgados a ocidentalização dos procedimentos
judiciais devia ser completa, pelo que passava a ser possível contestar a
legitimidade da tutela civil de uma dada área pela alusão ao elevado grau de
gentilismo da justiça nela aplicada. De outra perspectiva, era permitido aos
civis criticar o julgamento por parte dos militares de certas questões, usuaes
entre os gentios, porque a estes cabia a tarefa de serem agentes da
ocidentalização progressiva do direito em jurisdições onde o pluralismo
jurídico era ainda inevitável. A aceitação destes tipos ideais de Julgados e
Presidios é, portanto, associada a uma noção específica de missão
civilisadora, que se afere não pelo avanço da administração civil, mas pela
ocidentalização dos direitos aplicados, ainda que de forma não inclusiva ou
sequer possibilitadora de qualquer pluralismo legal[58] – o que não constituía
um problema para os decisores da época. Tendo esta evolução em conta, nada
passa a obstar que os militares se apresentem como aqueles em melhores
condições para imporem, pela via das armas, a civilização.
Conclusão
O acesso a informações sobre o modo como a justiça era cotidianamente
administrada pelos agentes coloniais portugueses ao longo das décadas de
cinquenta e sessenta do século XIX é invariavelmente mediado pelos traços
escritos que sobreviveram até aos dias de hoje. Parte destes elementos textuais
foram inicialmente produzidos, e posteriormente divulgados no Boletim Official
do Governo Geral da Provincia de Angola, de forma a servirem como argumentos na
disputa que então se instalou na esfera pública colonial entre as corporações
civis e militares encarregadas, respectivamente, de julgar nos Julgados e
Presidios do Districto Judicial de Luanda.
As acusações que os militares esgrimem no seguimento de uma série de decretos e
portarias que sucessivamente reordenam a orgânica administrativa da justiça na
colónia revelam, uma vez contextualizadas pelas dinâmicas mais alargadas em
curso – tanto em termos geográficos como temporais –, que ao longo deste
período a própria acepção ou entendimento, em termos de tipo ideal, daquilo que
era o espaço civilizado de um município ou Julgado, ou, por sua vez, não
civilizado de um Presidio, sofreu uma evolução, que seria determinante para
a história do território. Outro aspecto, imediatamente notório, é que todo o
ímpeto reformista dos legisladores liberais metropolitanos acabou por ter pouco
impacto no habitusdos agentes coloniais locais, que apenas teve de se
reacomodar aos novos desafios impostos pela relançada economia esclavagista,
agora em grande medida delimitada pelo mercado interno, dependente de
subterfúgios que a encapotassem ou de esquemas ilícitos de contrabando.
Quanto aos novos tipos ideais associados a cada uma das subdivisões das
comarcas, as correspondentes aos Julgados e Presidios, começam, a partir do
decreto com força de lei de 30 de dezembro de 1852, a ter o foco da sua concep-
tualização não no modo como a justiça é administrada, mas na natureza e
estado das populações tuteladas. Anteriormente era possível, por exemplo,
entender as populações do sertão como personae miserabilae[59], que, apesar de
tudo, mereciam tanto o acesso a uma justiça polida e civil, como serem
protegidas dos abusos dos militares – tendo, mesmo se teoricamente, o direito a
verem as suas normas e jurisprudências reconhecidas, não entrando estas em
conflito com os princípios da Boa Razão ou de uma versão minimalista da ética
judaico-cristã (sendo esta a noção que presidiu aos projectos de codificação de
usos e costumes[60]). Contudo, conforme o conceito de civilizado se começa
cada vez mais a tornar coincidente com o de ocidentalizado, estabelece-se o
princípio de que as populações gentílicas – e, portanto, não ocidentalizadas
– deixam de poder ser tuteladas por civis, passando a ser entendidas como
necessariamente não civilizadas em ambas as acepções do termo.
Esta transformação contribui para o crescente aceitamento tácito do modelo de
administração da justiça militar – tipicamente sumário, sem recurso, muitas
vezes imediatamente traduzido em penas físicas violentas – como o apropriado
para estas populações[61], neste caso, pelo facto de não serem ocidentalizadas.
Assim, não só o entendimento dos rudes povos que dominâmos como personae
miserabilae deixa de ser possível[62], como se altera profundamente o
entendimento quer do papel dos agentes coloniais militares, quer das elites
intermédias das formações políticas africanas. As últimas passam a ser
largamente ignoradas a favor de uma crescente mitificação da figura do déspota
negro isolado, que supostamente tudo pode, militarmente regendo a formação
política que encabeça[63]. Já os militares coloniais passam a estar incumbidos
de uma missão civilisadora, que se num primeiro momento se traduz num mandato
temporário (cabe-lhes preparar o caminho para a administração civil, mediante a
pacificação dos territórios e a construção de infra-estruturas, por exemplo),
com o equacionamento de civilização com ocidentalização assume um carácter
perpétuo devido à natureza assimptótica e utópica da tarefa para que passam a
estar mandatados.
O que esta evolução significa é que a administração civil de um dado espaço,
pode a partir de então ter a sua legitimidade questionada pelos militares,
bastando para tal que a realidade cotidiana do Julgado em causa de certa
forma não satisfaça a inexequível ocidentalização total dos costumes,
entretanto associada ao tipo ideal de espaço civilizado. Assim, abre-se a
porta para uma nova militarização da administração colonial angolana, que
culminaria nas décadas finais do século XIX, pondo fim ao interregno de
desmilitarização de inspiração liberal. Devido ao novo sentido que a expressão
civilizar ganha, passa a ser possível apresentar a tomada militar do
território como necessária ao avanço da missão civilisadora.
Um outro aspecto interessante, que as críticas militares revelam ao focarem o
inevitável desfasamento entre o tipo ideal de Julgado e as formas concretas
de governo do território, é a continuidade de habitus estabelecidos quando o
comércio negreiro transatlântico era ainda lícito. Esta constatação é possível
apenas porque o recurso às práticas nefandas ou ridículas dos gentios passa a
ser um factor a ter em conta no estabelecimento da legitimidade
civilizacional de um dado local, tornando-se, portanto, a acusação de
gentilismo uma das politicamente mais eficazes, ao mesmo tempo que o recurso
a direitos, formas processuais e jurisprudências de matriz africana se mantinha
essencial para a lucrativa produção de escravos. Por outras palavras, apesar
dos libelos de ambas as partes se reajustarem à nova realidade, passando a ter
em conta os tipos ideais propostos pelas sucessivas reformas legais, a
manutenção do tipo de práticas delatadas era generalizada e transversal entre
corporações, estando a cobiça pelo acesso à possibilidade de cometer abusos
desta natureza na própria origem da delação destes quando praticados por
outrem.
O lucro fácil, tal como nos tempos dos capitães-mores, continuava assim a
depender da oportunidade de sofismar a legislação emanada de Lisboa, que, no
entanto, ao promover a contenda na esfera pública angolana entre corporações
locais começa, ainda que de forma inadvertida e incipiente, não só a ter acesso
a melhores informações sobre o real impacto legislativo na colónia, como a
jogar de forma proveitosa com rivalidades locais. Mais do que decretos ou
portarias, a vigilância cotidiana mútua entre elementos de corporações rivais
resulta, sem dúvida, numa mais rápida alteração dos habitus herdados do período
anterior à proibição do tráfico negreiro transatlântico.