Os Municípios dos Outros: Alternância do poder local em Moçambique? O caso de
Angoche
ARTIGO ORIGINAL
Os Municípios dos Outros. Alternância do poder local em Moçambique? O caso de
Angoche
The municipalities of "others". Alternation of local power in
Mozambique? A case study of Angoche
O nosso estudo insere-se nos trabalhos que procuram reconstituir com recurso a
dados empíricos a análise do processo de descentralização através de
interrogações acerca do exercício da governação local. A questão que colocamos
é a de saber como (e com que estratégias) se posicionam os múltiplos actores
implicados na gestão do poder local. A hipótese desenvolvida é a de que as
reestruturações administrativas operadas e as relações estabelecidas entre os
poderes estatais e as elites e populações de Angoche, ao longo do tempo,
contribuíram para o voto a favor da Renamo, que, entretanto
institucionalizada, falhou a gestão local, devido não só aos bloqueios
financeiros e administrativos exercidos pelo poder central, mas também à
reprodução de práticas clientelares na gestão pública local. Para este
trabalho, para além da bibliografia de base sobre descentralização e eleições,
foram consultadas actas do Conselho Municipal de Angoche, jornais de maior
circulação nacional e feita uma observação directa à campanha eleitoral dos
partidos Frelimo e Renamo (2003) neste município. As entrevistas
semiestruturadas individuais e com grupos focais, com os candidatos às eleições
municipais de 2003 em Angoche, vereadores do Conselho Municipal, elites locais
e população foram também privilegiadas. A triangulação destas metodologias
permitiu-nos obter respostas sobre a problemática do exercício do poder ao
nível local em contexto de fragilidade institucional. Com base neste estudo
concluímos que os bloqueios operados pelo Estado central e a reprodução das
práticas de gestão neopatrimonialista pela Renamo exacerbaram os conflitos
entre este partido, as elites locais e a população, o que permitiu à Frelimo
manipular as elites locais e recuperar o poder municipal. Para uma melhor
estruturação do argumento, este artigo está dividido em três partes: a primeira
parte mostra de forma breve como é que a evolução política e administrativa foi
determinante na estruturação das relações entre o Estado, elites e populações
ao longo dos diferentes períodos da história de Angoche; a segunda discute as
razões que justificaram o tipo e o modelo de descentralização e a forma como o
partido Frelimo no poder ao nível central desde 1975 estruturou esta
descentralização para consolidar seu poder ao nível local; e, na terceira
parte, mostra-se como é que a ausência de mecanismos alternativos de gestão
local contribuiu para a instrumentalização do Estado e das elites locais pela
Frelimo, para esta recuperar o poder e consolidar sua hegemonia local.
Do sultanato de Angoche à Comissão Municipal de António Enes
Para falar de Angoche é necessário levar em conta uma zona económica que vai
para além dos limites administrativos do actual distrito de Angoche. De facto,
o sultanato de Angoche, baseado no Catamoio, no interior da Ilha de Angoche,
projectava sua influência desde o antigo sultanato de Sangage até ao sheikado
[1] vassalo de Moma, ao sul, estendendo-se ao sultanato de Pebane, sobre o
estuário de Moniga, no limite dos domínios zambezianos (Pélissier, 1984, p.
35). As relações estabelecidas entre o sultanato de Angoche e os outros
sultanatos e sheikados e os chefes das terras do interior e o comércio de
escravos modificaram a situação sociopolítica da região e jogaram um papel
importante na natureza e no carácter heterogéneo e complexo das suas
instituições sociais. O sultanato de Angoche fortificou sua posição, não
somente em relação às redes do Oceano Índico, dominado pelos suaílis, mas
também em relação aos povos do interior próximo e constituiu um obstáculo sério
para a conquista do território, não só devido ao seu proselitismo, mas também à
resistência aos desígnios imperialistas dos portugueses (Albuquerque, 1899, p.
12).
Enquanto os portugueses tentavam acabar com a falta de respeito em relação á
sua autoridade, o Rei elevou, a 5 de Julho de 1865, o sultanato de Angoche à
categoria de governo subalterno (designado distrito de Angoche). A sede do
governo colonial, instalada na Ilha de Angoche, foi transferida para o
continente, porque a Ilha de Angoche se situava numa zona difícil para a
navegação devido ao perigo que os indígenas representavam para as autoridades
portuguesas (Ferrari, 1881, p. 6). Na nova capital, os portugueses nomearam
Intide Muno Suleiman Bin Raja comosargento-mor, o mais alto posto ocupado por
um indígena em Angoche (Machado, 1970, p. 444), instalaram um juiz e um
município (Botelho, 1921, p. 38), que foi abolido por Mouzinho de Albuquerque,
através do decreto nº 9, de 10 de Dezembro de 1896, por falta de pessoas
competentes para exercer cargos municipais, e fundos suficientes para cobrir as
despesas administrativas[2] (Sousa, 1946, p. 78). Pelo decreto nº 1 de 1893, a
divisão administrativa da província de Moçambique foi alterada. Todos os
governos subalternos da província foram suprimidos e o do distrito de Angoche
foi substituído por um comando militar e, posteriormente, pela capitania-mor de
Angoche, anexa ao distrito de Moçambique em 1897. Esta organização
administrativa subsistiu até à conquista efectiva do território de Angoche em
Junho de 1914. Pelo decreto nº 68, de 30 de Junho de 1921, do Alto
Comissariado, as capitanias-mores foram subdivididas e o distrito de Angoche
tornou-se na sede da 11a circunscrição civil de Angoche, englobando toda a
superfície do antigo comando militar de Angoche e uma parte do comando de
Matatane, ocupando assim os territórios dos postos administrativos de Quilua,
Boila, Sangage e Larde (Machado, 1970, pp. 535-536). Em 1924, o artigo 77º da
Carta Orgânica da Colónia de Moçambique determinou, no seu nº 2, a separação
dos territórios de Larde, que faziam parte da circunscrição civil de Angoche e
Mogovola, constituindo, pelo decreto provincial nº 68, de 30 de Junho de 1924,
a nova circunscrição civil de Moma (Secretaria Civil do Distrito de Moçambique,
1924, p. 12). Do mesmo modo, o que constituía a simples circunscrição civil de
Angoche, pelo decreto nº 24621, de 31 de Outubro 1934, foi elevado à categoria
de concelho de António Enes, classificado como concelho de 3a classe e a sua
sede elevada, pela portaria 2377 de 19 de Dezembro de 1934, à categoria de
cidade (Sousa, 1946, p. 78).
O Governo-geral, para melhor gerir o crescimento da população branca depois da
II Guerra Mundial, foi obrigado a sistematizar sua política municipal, mormente
através da nova Carta Orgânica do Ultramar (1951). Foi na ocasião aprovado um
diploma legislativo que criou as Comissões Municipais, sorte de pré-município
em todos os concelhos onde o número de eleitores era inferior a 300[3], com
excepção das sedes dos distritos. Assim, a portaria nº 11579, de Agosto de
1956, transformou a Comissão Administrativa do Concelho de António Enes em
Comissão Municipal[4]. Uma das primeiras medidas tomadas pela Comissão
Municipal, na sua tentativa de civilizar os indígenas, foi a urbanização dos
bairros de Inguri e Puli.
A cooptação das elites e população locais?
Na realidade, foi durante o período do administrador colonial Cristóvão dos
Santos, nos inícios dos anos 1960, que a nova equipa de vereadores eleitos em
António Enes começou um processo de cooptação das elites e da população. No
plano económico, a administração encorajou os capitais portugueses e
estrangeiros a investir na indústria de descasque de castanha de caju. Assim,
foram construídas três fábricas de descasque de castanha de caju na cidade de
António Enes. No plano político, enquanto para o colonialismo português a acção
dos muçulmanos era, em si mesma, prejudicial e justificava a tomada de acções
brutais contra eles, a perspectiva da luta anticolonial obrigou o Estado
português a mudar de atitude perante os muçulmanos. A fim de evitar que os
muçulmanos se associassem ao inimigo, a administração portuguesa começou a
apoiar acções religiosas, sociais, políticas e jurídicas desenvolvidas pelos
chefes religiosos muçulmanos, financiando viagens a Meca (Alpers, 1999), mas
também os colocou em posições electivas, dando-lhes postos importantes na
administração municipal de António Enes. Em 1966, a administração municipal de
António Enes urbanizou quase todo o bairro de Inguri, habitado pela elite Coti.
Em 1967, cerca de 200 casas modernas, com a mesma qualidade das casas situadas
na cidade principal e habitadas pela população branca, tinham sido construídas
(Nogueira, 1968, p. 12). Tratava-se, sob cobertura de promoção social, de uma
tentativa de controlo social e político.
É nesta condição de paz social entre as elites locais, suas populações e as
autoridades municipais que o Governo de Transição, resultante dos Acordos de
Lusaka, publica o decreto-lei nº 6/75, de 18 de Janeiro. Este decreto-lei
alterava as nomenclaturas da divisão administrativa do território: antigos
distritos tornaram-se províncias; os concelhos e circunscrições passaram a ser
distrito e, finalmente, os postos administrativos a localidades (Pililão, 1989,
p. 8). Com a lei nº 7, de 22 de Abril de 1978, assistimos à abolição das
Câmaras Municipais, Juntas Autónomas e demais corpos administrativos e
serviços de administração civil em todo o território nacional, que foram
substituídos pelas assembleias do povo. Com a formação das assembleias, estavam
criadas, segundo a Frelimo, as condições para a organização do Estado e
abolidas as antigas estruturas do Estado colonial. Ao longo deste processo,
notáveis religiosos, chefes das chefaturas locais, cuja maioria tinha habitado
em Inguri, foram acusados pela Frelimo de ter colaborado com as autoridades
coloniais e destituídos de seus direitos cívicos e políticos, com o objectivo
de impedir, não só sua entrada nos órgãos do partido, mas também de sabotarem o
programa de transformação social da Frelimo (Frelimo, 1977). Com esta atitude,
começou a florescer lentamente nas elites e nas populações locais uma atitude
de expectativa mal administrada pelas novas autoridades. Os meios sociais
urbanos, elitistas e populares de Angoche entravam em posição desfavorável nas
relações com o novo Estado independente, que se queria modernizador das
estruturas administrativas.
Temos aqui numa situação diferente da estudada por Geffray no caso de Érati, na
Macuana, onde as populações próximas da Frelimo tinham sido as privilegiadas
durante o período colonial, enquanto os marginais e rebeldes do período
colonial continuavam marginais do Estado independente, antes de se tornarem
opositores da Frelimo e de se submeterem à autoridade militar da Renamo
(Geffray, 1990). Em Angoche, os beneficiários das políticas coloniais
encontravam-se numa situação de marginalidade vis-à-vis o Estado independente.
De facto, os Cotis foram apenas favorecidos pelos portugueses no fim do período
colonial. Antes tinham sido marginalizados. No longo período colonial, foram
mais marginalizados do que privilegiados. O que é sobretudo diferente é que, em
Érati, os meios étnico-sociais marginalizados não tinham uma elite urbana,
enquanto os Cotis de Angoche, mesmo se marginalizados durante muito tempo pelo
poder colonial e, depois, pelo Estado da Frelimo, permanecem, ainda assim, como
uma elite urbana, que, embora parcialmente, conseguiu mudar o curso dos
acontecimentos, graças ao neoliberalismo.
As reformas de descentralização, lógicas do poder local, institucionalização e
gestão Renamo
A abolição dos partidos políticos surgidos depois de 1974, a política de
modernização autoritária implementada pelo governo da Frelimo depois de 1975
e factores de ordem histórica resultaram na guerra civil que devastou o tecido
social e económico do país (Abrahamsson & Nilson, 1995, p. 66), exacerbando
os conflitos sociais e políticos, nascidos durante a colonização portuguesa e
mal administrados durante o período do partido único. Esta guerra contribuiu
também para a configuração da estrutura política e eleitoral de Moçambique no
período do multipartidarismo. As primeiras eleições gerais, presidenciais e
legislativas de 1994 ganhas pela Frelimo, com 44,33% dos votos contra 37,78% da
Renamo, marcaram a bipolarização, demarcaram regional e etnicamente o espaço
político nacional e jogaram um papel importante na escolha do tipo de
descentralização a adoptar[5].
As reformas de descentralização em Moçambique: da lei 3/94 à lei 2/97 das
autarquias locais
A primeira fase das reformas de descentralização, que culminou na lei nº 3/94,
começou em 1991 com a elaboração, pelo governo, do Programa da Reforma dos
Órgãos Locais (PROL). Este programa tinha como objectivo a reforma do sistema
administrativo em vigor, centralizado, pouco eficiente e desequilibrado, e a
sua transformação em 23 distritos municipais urbanos e 128 distritos
municipais rurais (sedes distritais). Os distritos municipais seriam dirigidos
por três órgãos (presidente, assembleia e conselho municipal) eleitos por
sufrágio universal, directo e secreto. Estes órgãos deviam ter personalidade
jurídica própria, diferente da do Estado, e ser dotados de autonomia
administrativa, financeira e patrimonial (Lachartre, 2000, p. 321). A lei nº 3/
94 foi aprovada por unanimidade no fim da última legislatura monopartidária,
pelos deputados da Assembleia Popular, em Setembro de 1994, um mês antes das
primeiras eleições gerais de 1994. Foi uma unanimidade não consensual, ainda
mais porque tinha suscitado grandes debates e preocupações entre o governo e o
partido do regime, sobretudo no seio da linha dura (O'Donnell &
Schmitter, 1986), que não aceitava fazer concessões e queria conservar
intocáveis as estruturas de poder. A forte oposição da linha dura estava
ligada não só à crença numa possível fragmentação do Estado, mas também a uma
eventual perda de controlo sobre os rendimentos económicos, porventura
decorrente da autonomia na gestão dos recursos locais, podendo, assim,
intensificar-se a competição entre as estruturas do partido ao nível central e
as elites do poder local.
Caminhando no sentido de reforço da unidade nacional, da democracia e da
reconciliação, os objectivos desta reforma seriam alcançados através do
diálogo, do consenso, da estabilidade política (Lachartre, 2000, p. 321) e
económica. Do ponto de vista das finanças locais, os distritos municipais
beneficiariam de um regime financeiro e patrimonial e, também, de um orçamento
próprio, que seria elaborado e gerido de acordo com os princípios da gestão por
objectivos. As receitas seriam provenientes dos impostos municipais, taxas e
tarifas de serviços, ou de rendas de seu capital, de bens imobiliários, de
participações financeiras da venda de bens patrimoniais (art. 6º, alínea d- da
lei nº 3/94). Este artigo é paradoxal, na medida em que, depois da guerra
civil, muitas sedes distritais estavam completamente destruídas e sem nenhuma
infra-estrutura. Isto mostra o carácter mimético (Darbon, 1998, p. 62) desta
lei, que foi copiada da legislação municipal portuguesa, sem analisar as
condições sociais do lugar onde ia ser implementada.
A segunda fase das reformas consistiu na criação das autarquias locais (lei nº
2/97), em Fevereiro de 1997. Mas, entre as duas leis, a composição da
Assembleia da República tinha sido renovada pelas eleições gerais de 1994,
pondo fim à unanimidade e ao consenso que tinham conduzido à adopção da
primeira lei municipal (3/94). As eleições legislativas de 1994 permitiram ao
partido Frelimo ganhar as eleições com 129 deputados (44,33%) e conservar o
poder executivo e legislativo. Contudo, os 112 (37,78%) deputados eleitos pela
Renamo punham em xeque a hegemonia política da Frelimo e transferiram os
debates para uma arena mais institucionalizada.
Em 1996, foi proposta uma legislação complementar, que culminou com a emenda
constitucional e a adopção da lei nº 6/96, que introduziu, no capítulo sobre os
órgãos locais do Estado, 11 artigos (188-198) sobre o poder local. Segundo a
lei nº 6/96, os novos órgãos locais autónomos (municípios) deviam completar e
não substituir os órgãos locais nomeados pelo governo central. Esta dupla
administração implicava que as zonas rurais seriam administradas por um
administrador de distrito, nomeado pelo governo central. Este exerceria o seu
poder em paralelo com os órgãos representativos e descentralizados (Soiri,
1999, p. 9) nas zonas onde fossem instalados municípios (Simango, 1999, p. 15).
A descentralização acentuava a divisão do país entre centros urbanos, activos e
dispondo de uma autonomia real de administração, e uma zona rural submetida à
assistência do Estado.
Revogando a primeira lei (lei nº 3/94) sobre os distritos municipais, a lei nº
2/97 das autarquias locais designava a circunscrição territorial municipal,
as cidades e vilas e sedes dos postos administrativos e não mais o distrito, e
excluía os territórios rurais, onde a Renamo era forte politicamente. O
princípio do gradualismo foi assim introduzido[6].
Um gradualismo produtor de diferenciações sociais
Por força da lei nº 2/97, as eleições municipais tiveram somente lugar nas 33
principais cidades e vilas que tinham adquirido o estatuto de município.
Segundo as estatísticas, cerca de 4,2 milhões de eleitores (69% dos eleitores
que tinham votado em 1994) foram, nas primeiras eleições locais de 1998,
impedidos de eleger seus representantes locais[7]. Este gradualismo separava
cidadãos do mesmo país em duas categorias: a primeira, constituída pelos
residentes das cidades e vilas (mundo da Frelimo), e a segunda, composta pelos
habitantes dos distritos rurais, supostamente mais próximos da Renamo[8], que
permaneciam assim impedidos de escolher seus representantes locais. Se
seguirmos a análise de Brunet (1997), segundo a qual
nos países que se preparam para uma descentralização e nos quais a
Reforma é ligada à democratização do regime político, a
descentralização deve ser implementada em todo o território nacional,
porque não será percebido pelas populações, que algumas acedam mais
cedo do que as outras, a um estado superior de democracia (p. 37),
compreende-se a reivindicação de segmentos das zonas rurais, que se queixavam
da sua exclusão nas eleições autárquicas de 1998 e interpretavam esse
procedimento como o regresso do sistema de partido único, onde certos grupos
sociais não podiam eleger nem ser eleitos.
Que descentralização?
Se nos concentrarmos nas condições sobre as quais certas experiências de
descentralização, como do Senegal (Piveteau, 2005), da África do Sul (Crouzel,
2004) e da Costa de Marfim (Koffi, Tere, & Mel, 2013) se produziram,
podemos concluir que, em Moçambique, as condições para a implementação do
processo não estavam reunidas. Tratava-se de um Estado enfraquecido pela guerra
civil que cedeu às pressões das instituições de Bretton Woods para se
comprometer com a descentralização (Otayek, 2007, p. 136), sem dispor de meios
materiais e humanos indispensáveis para sua concretização. Esta situação é
diferente da dos países ocidentais, em que a descentralização repousa sobre a
existência prévia e o funcionamento consolidado das estruturas locais,
independentes e em torno das quais se agrega uma lógica social particular e
entidades locais com identidade própria (Gontcharoff, 1991, p. 11), sem que
isso represente um risco de ruptura de fidelidade em relação ao centro político
(Pérès, 1994). O processo de descentralização deve incidir sobre uma história,
uma cultura, instituições e práticas próprias de modo a ser apropriado pelas
populações locais (Brunet, 1997, p. 17) e não pode ser levado a cabo sem um
certo número de forças internas com aspirações a ultrapassar a democracia
representativa e a experimentar formas renovadas de exercício de poder local
(Palard, 1993, p. 2). Em Moçambique, apesar de o processo de descentralização
não se ter realizado com o impulso das autoridades locais, havia nas zonas
rurais um certo número de autoridades que alimentavam aspirações de mais
autonomia, em particular ao nível da gestão financeira de suas povoações
(Lachartre, 2000, p. 334). Contudo, esse desejo não foi tomado em conta, o que
não favoreceu a institucionalização de uma verdadeira democracia participativa
(Braathen, 1998, p. 8) não tendo sido criadas instituições locais
representativas e responsáveis, capazes de restituir o poder às populações
(Ribot, 1999, p. 34).
As eleições autárquicas de 2003: É possível uma política municipal da Renamo
num contexto de hegemonia política da Frelimo?
Entre as eleições autárquicas de 1998, boicotadas pela Renamo e ganhas pela
Frelimo nos 33 municípios, e as eleições municipais de 2003, realizaram-se as
segundas eleições gerais, presidenciais e legislativas, em 1999. Apesar da
vitória da Frelimo, com 48,54% dos votos, e do seu candidato Joaquim Chissano,
com 52,29%, a Renamo, com 38,1% dos votos, foi considerada a grande vencedora,
por ter conquistado mais uma província do extremo norte de Moçambique (Niassa),
nas mãos da Frelimo desde 1994. Com esta subida, a Renamo seria capaz de ganhar
as eleições municipais de 2003 em Angoche? Caso vencesse as eleições
municipais, a Renamo seria capaz, conforme Otayek (1989), de governar' de uma
maneira diferente, de implementar um programa credível e de escapar à
reprodução de interesses clientelares e comunitários (pp. 10-11) para
preencher sua função de representação social, que lhe competia enquanto partido
político?
A batalha das eleições municipais de 2003 em Angoche. O regresso do Islão e da
mesquita como lugar do político
Com a instauração do pluralismo, os actores locais mostraram nova dinâmica na
tentativa de encontrar seu lugar no novo ambiente político. Nesta dinâmica, o
Islão, prática dominante no município de Angoche, e os notáveis locais jogaram
um papel determinante no estabelecimento de relações entre os eleitores,
candidatos e partidos políticos, sobretudo durante a campanha eleitoral. Como é
que se desenrolou a campanha eleitoral? Nesse momento, assistiu-se a uma grande
mobilização de recursos políticos e económicos em Angoche?
De facto, as campanhas são ocasiões para medir a importância dada aos temas e
argumentos nacionais/locais, quando a oferta política feita aos eleitores
comporta uma boa dose de solicitações localizadas (Mabileau, 1993, p. 171). São
momentos fortes da vida política, onde vemos os políticos implementar todos
seus recursos na batalha (Lacam, 1988, p. 30), mesmo os que a priorinão são os
mais prováveis (caso da realização dos barajanzis pela Frelimo). A campanha
eleitoral não era uma novidade em Angoche, porquanto as populações deste
município tinham conhecido experiências eleitorais durante a colonização
(Nogueira, 1968, p. 5). Contudo, as eleições pluralistas depois de 1994 tinham
acrescentado elementos democráticos muito importantes e alargado, de forma
considerável, a lista das regras do jogo locais[9]. Vejamos como este processo
se desenrolou no município de Angoche.
Entre o segredo (Renamo) e a abertura (Frelimo) na campanha eleitoral em
Angoche
Em Angoche, o intuito da obtenção da ajuda e de apoio político dos líderes
religiosos muçulmanos levou os dirigentes da Frelimo a optarem por uma campanha
eleitoral aberta. Aquando da abertura da campanha da Frelimo e de seu
candidato, José Constantino, foi realizado pelos sheikhs[10] locais, a pedido
do governador da província de Nampula, Abdul Razak, um barazanji[11]. Na
ocasião, formaram-se dois grupos, um constituído por homens e outro por
mulheres, pertencentes às associações islâmicas locais. Nesta cerimónia, o
sheikh Muhammad Abdallah, um dos líderes mais respeitados de Angoche (Inguri),
foi chamado para presidir o adhuhury(a reza do meio-dia). Durante a cerimónia,
o governador foi designado de sultão Abdul Razak, e, quando lhe foi dado o
ejaza (o papel de prestígio) para ler o extracto final do Kitab, o governador
pediu a um outro sheikh, Omar Aria, para ler em seu lugar. No apogeu do
barazanjie no círculo que tinha sido constituído pelos dois grupos para a
realização do tikhiri, o sheikh Omar Aria guiou o Sultão Abdul Razak para a
dança no centro do círculo, recriando um cenário de longa tradição e em voga no
antigo sultanato de Angoche. Segundo a análise de Abélès,
as reuniões e as manifestações têm alguma semelhança com rituais
consensuais que exigem da parte dos protagonistas uma presença
física, e se decompõem numa multiplicidade de sequências, de falas,
de símbolos gestuais e onde se manipulam objectos com valor simbólico
numa encenação que integra acção, discurso, repetição, dramatização
(1997, p. 225).
Reencontramo-nos diante de quatro ingredientes: sacralidade, território,
primado de valores e símbolos colectivos (ibid.). Tal análise é susceptível de
aplicação à campanha organizada pela Frelimo e pelo seu candidato nas eleições
de 2003 em Angoche. Para a maior parte dos líderes muçulmanos e a população
presentes nesta cerimónia organizada pela Frelimo e seu candidato, era a
primeira vez, desde a queda do sultanato de Angoche, que um tal sinal de
respeito era prestado ao Islão por um alto responsável e representante do
governo da Frelimo. Como consequência, a maior parte dos líderes muçulmanos
exprimiram a sua profunda gratidão por aquele barazanji. O sheikh Omar Aria,
que tinha durante muito tempo apoiado a Renamo, dizia que desta vez a Frelimo
ganharia as eleições em Angoche (entrevista com Omar Aria, Angoche, 5 de
Novembro de 2003). A valorização dos conhecimentos e das tradições locais
contribuía para a reabilitação dos notáveis, devido à posição de centralidade
que ocupavam no sistema de relações sociais locais. De facto, muitos sheikhs,
que tinham sido considerados inimigos da revolução, que tinham sido
marginalizados pela Frelimo nos primeiros anos da independência e que apoiavam
a Renamo, estavam visivelmente satisfeitos pela possibilidade que lhes tinha
sido dada de interagir e colaborar directamente com o governador de Nampula. O
recurso ao religioso – que fornece, ao mesmo tempo, alternativa de reconstrução
identitária – foi associado, portanto, à procura de sentido e de reposição da
ordem num mundo em transformação. Esta imbricação de práticas religiosas e
políticas fazia passar a mensagem de reconciliação social. O candidato da
Frelimo, José Constantino, declarou:
Em alguns bairros de Angoche, nomeadamente em Inguri, considerado
berço da Renamo, conseguimos constatar graças à campanha eleitoral
realizada, que a tendência do voto está a mudar e está sendo
favorável ao partido Frelimo [ ]. Realizámos um trabalho exemplar, o
que nos valeu a adesão das populações (entrevista com José
Constantino, Puli, 29 de Novembro de 2003).
Por seu turno a Renamo, sem meios financeiros para conduzir uma campanha
eleitoral de uma forma aberta e para organizar festas e banquetes populares,
optou por uma estratégia secreta e apática. Esta apatia das populações e da
Renamo levou um dos sheikhs locais a dizer que a Renamo estava desmoronada em
Angoche, porque num passado muito recente, com a presença de Dhlakama, havia
uma tal multidão que era até impossível circular de carro nas ruas da cidade
(entrevista com sheikh Rajabo, Angoche, 7 de Novembro de 2003). Na verdade, a
campanha eleitoral da Renamo era feita nas principais mesquitas de Inguri[12].
Os líderes religiosos da Renamo tinham consciência de violar o Corão,
praticando actividades políticas nas mesquitas, mas diziam não ter meios para
se confrontar com a Frelimo, que tinha marcado propositadamente a campanha
eleitoral para o período do Ramadão (entrevista com Alberto Omar, 14 de
Novembro de 2003). Os temas dominantes durante os adhuhury eram, por um lado,
as críticas às promessas de reabilitação das principais infra-estruturas
socioeconómicas da cidade de Angoche, que tinha motivado a convocação e a
realização, no ano 2000, de um conselho de ministros em Angoche; e, por outro
lado, as humilhações de que os muçulmanos e seus principais notáveis tinham
sido vítimas durante a vigência do regime de partido único. A Renamo também se
comprometia a dar trabalho aos residentes, sobretudo àqueles que tinham sido
sempre excluídos durante a governação local da Frelimo. Os sheikhs das
principais mesquitas de Inguri foram chamados para se apresentar na esquadra
local de forma a explicar esse procedimento, considerado pela polícia local de
ilegal.
De facto, a maioria dos líderes religiosos muçulmanos, que se autoproclamavam
partidários da Frelimo, eram também da Renamo. O sinal mais evidente foi que
certos notáveis locais muçulmanos das mesquitas de Inguri, que tinham
participado nos barazanjis organizados pela Frelimo e seu candidato José
Constantino, estavam igualmente presentes nas reuniões secretas organizadas por
Afonso Dhlakama e criticavam duramente a Frelimo durante as reuniões com seus
fiéis nas mesquitas. Tinham talvez recebido em troca dinheiro ou outras
promessas de apoio suplementar para apelar aos seus fiéis a votarem pela Renamo
(Domingo, 30 de Novembro de 2003, p. 7).
Na zona costeira, e particularmente em Angoche e em Inguri, a mobilização
política nas principais mesquitas não era um procedimento novo, antes
constituía uma prática comum que datava do período colonial, sobretudo nos
primeiros anos depois do início da luta anticolonial (1964) (Serviços Centrais
de Centralização de Informação de Moçambique, 1963, p. 2). Isto permitia aos
dignitários religiosos muçulmanos locais escapar às pressões das autoridades
coloniais menos tolerantes em relação ao Islão. Na ausência de meios
financeiros, a Renamo recuperou práticas locais antigas para fazer sua campanha
eleitoral.
As eleições municipais de 2003: quem vota por quem?
Do ponto de vista político, as eleições municipais de 19 de Novembro de 2003
confirmaram, também por causa da taxa de abstenção de 75,84%[13], a hegemonia
do partido Frelimo em todo o território moçambicano. Mas, em Angoche, a Renamo
ganhou as eleições locais. Para a assembleia municipal, dos 31 assentos em jogo
a Renamo obteve 17, contra 13 da Frelimo e 1 do Partido Independente de
Moçambique (PIMO). O candidato da Renamo, Alberto Omar, obteve 52,60%, o da
Frelimo, José Constantino, 41,28%, e, finalmente, o candidato independente da
sociedade civil, Isidro Assane, 6,12% (STAE, 2006). Os resultados das eleições
municipais mostraram que o barazanji não conseguiu garantir uma vitória
eleitoral da Frelimo em Angoche, antes, premiaram a estratégia da Renamo, que,
apoiada sobre práticas sociais e culturais locais, conseguiu transformar o
poder simbólico que os notáveis locais de Angoche detinham num verdadeiro
recurso político e, como diz Siddique (1995), integrar politicamente camadas
sociais desfavorecidas e tradicionalmente excluídas do jogo político local (p.
8). Estes tinham-se aproveitado da descentralização para ajustar contas
antigas com seus rivais em seus territórios de pertença. Um sheikh local
dizia a propósito que o tempo da Frelimo de comer' tinha terminado, e que
agora era a vez deles de comer também (entrevista com sheikh Mahamudo,
Muchelele, 1de Agosto de 2007). A formulação deste sheikh levanta a questão de
xitique do poder, um modelo útil para compreender as flutuações da fase de
transição dos regimes autoritários de partido único para a democracia, as quais
persistem em muitos países africanos. A ideia, segundo Monnier (1993), é a de
que o poder é um bem simbólico que permite realizar grandes coisas quando se o
detém e que deve ser equitativamente redistribuído de modo a satisfazer todas
as facções envolvidas (p. 122), permitindo, assim, a diferentes projectos
políticos dar uma perspectiva singular ao processo de democratização em curso.
Neste sentido, a democratização implica a redistribuição do poder político e
dos correspondentes recursos económicos,
uma vez que a imagem do xitique traduz o rito de circulação de
chefes de facções nas posições de poder (cada um de sua vez) e
refere-se à noção de equidade no acesso ao poder e, a partir daí, à
riqueza que é permitido juntar, que deve ser igualmente redistribuída
de modo a satisfazer todas as facções em jogo (Monnier, 1993, p.
123).
O xitique na gestão dos municípios de Angoche dizia respeito aos patrões
políticos (presidentes dos conselhos municipais, condutores das políticas
municipais) e seus clientes (as elites locais e as populações). Mas seria a
Renamo capaz de responder à grande esperança social dos seus clientes, de
cumprir com as promessas feitas durante a campanha eleitoral e de partilhar o
bolo? Não seria a Renamo vítima do seu próprio discurso em municípios de
penúria e, sem base fiscal ou tributária, dependentes administrativa e
financeiramente de um Estado hegemónico da Frelimo, que prometera usar todos os
meios à sua disposição para reconquistar os municípios sob gestão da Renamo e
consolidar o poder nos municípios? (entrevista com Filipe Paunde, 29 de Outubro
de 2003).
A institucionalização e gestão municipal Renamo em Angoche
A Renamo instalou-se no município de Angoche. O seu objectivo era mostrar que
tinha uma política municipal original, cuja implementação serviria de
espelho para uma futura governação nacional. E, para fazer esquecer a má
governação da Frelimo caracterizada, desde 1975, pelo nepotismo, corrupção,
anarquia e exclusão de certos segmentos da população do acesso ao poder
político e económico, prometeu instalar uma linha telefónica aberta para
receber queixas, reclamações e sugestões dos habitantes (Notícias, 6 de Janeiro
de 2004, p. 3) sobre o funcionamento da administração municipal. O objectivo da
Renamo era o de tornar o presidente e a assembleia municipal responsáveis
perante os cidadãos. Era, de acordo com Henwood (2004), uma tentativa de
promover a boa governação' pela descentralização política, ou seja, promover
um conjunto de boas práticas visando a prevenção da tirania, da anarquia, da
corrupção, da instabilidade e da paralisia institucional (p. 13). O porta-voz
da Renamo, Fernando Mazanga, afirmava:
Seremos imperdoáveis, não vamos admitir brincadeiras'. Os
funcionários, mesmo os Presidentes dos Conselhos Municipais que vão
roubar o dinheiro público ou dos contribuintes locais colectado nos
nossos municípios serão presos. Nossos municípios servirão de
trampolim para uma futura governação do país (Savana, 5 de Dezembro
de 2003, p. 2).
Esta promoção da descentralização releva, segundo Bako-Arifari & Laurent
(1998),
de um simples slogan, ainda mais porque as instâncias
descentralizadas não podem, de um dia para outro, beneficiar de uma
legitimidade política e fiscal suficientes que lhes permita recolher
receitas locais necessárias para assegurar a viabilidade das suas
colectividades. Ademais, o funcionamento quotidiano das instituições
descentralizadas é portador e produtor de oportunidades e de
diferentes práticas de desvios e de corrupção (p. 2).
De facto, num contexto de municípios de penúria (Mbembe, 1996) sem nenhuma
base económica nem fiscal e dependendo exclusivamente das subvenções do Estado
central, a vontade e a capacidade da Renamo de produzir mudanças políticas, de
desenvolver as suas próprias competências e promover a boa governação
dependiam completamente dos resultados das eleições gerais, legislativas e
presidenciais, de 2004, ganhas pela Frelimo (75,06%) e seu candidato Armando
Emílio Guebuza (75,46%). Com as eleições de 2004, a Frelimo permaneceu no poder
e continuou detentora do poder político, económico e administrativo central,
decisivo para a governação local, o que fez com que o governo municipal de
Angoche, da Renamo, não conseguisse satisfazer as aspirações do seu eleitorado.
Armando Guebuza, vencedor das eleições presidenciais de 2004, dizia:
A Renamo fez promessas impossíveis de realizar. [ ] Os eleitores que
votaram pela Renamo nas eleições municipais de 2003 começam a
arrepender-se, porque nada daquilo que lhes foi prometido durante a
campanha eleitoral, como emprego, abolição de taxas de mercado,
abastecimento de água potável, lhes está sendo concedido (Notícias,
15 de Janeiro de 2004, p. 3).
De facto, a partir do momento em que a Renamo não conseguiu ganhar as eleições
presidenciais e legislativas de 2004, os municípios sob sua direcção foram
submetidos a uma forte pressão do Estado-Frelimo, que, apesar de ter prometido
uma oposição responsável (Notícias, 23 de Dezembro de 2003, p. 3), boicotava a
governação municipal em Angoche porque os interesses supremos do povo não
estavam a ser respeitados pela Renamo, que geria os municípios de forma
lamentável (Notícias, 9 de Março de 2004, p. 4) e que obrigava à intervenção
da Frelimo, que tem responsabilidade histórica de direcção da nação
Moçambicana (Notícias, 23 de Agosto de 2004, p. 3). Assim, das medidas
político-administrativas implementadas pelo Estado, destaquem-se as mais
significativas:
(i) O encerramento das estações da rádio comunitária do município de Angoche
por ela ser ilegal e por estar a servir os interesses particulares da Renamo;
(ii) A transferência do município de Angoche de toda a documentação
administrativa e política da gestão municipal (Savana, 9 de Janeiro de 2004, p.
2) da Frelimo (1998-2003) para a sede local do partido Frelimo. Era o fim da
administração pública neste município. O antigo director de Apoio e Controlo
do Governo de Nampula dizia a este respeito:
Houve actos originados por emoção em certos municípios, como, por
exemplo, discórdias. Mas agora estamos a tentar organizar os arquivos
e outros documentos em todos os municípios de Nampula, de forma a
garantir que os futuros gestores destes municípios encontrem toda a
informação necessária para prosseguir seu trabalho (ibid.).
(iii) Em Angoche, a delegação distrital do INAS (Instituto Nacional da Acção
Social), órgão do Ministério da Acção Social, cortou as pensões alimentares a
120 idosos que tinham participado em trabalhos voluntários de reparação de
ruas, no quadro da vitória eleitoral da Renamo nas eleições de 2003 (Conselho
Municipal da Cidade de Angoche, 2004a, p. 2). As pensões foram cortadas porque,
segundo o INAS, estes idosos tinham demonstrado possuir ainda capacidade física
para trabalhar. E porque a Renamo, tendo ganho o município, lhes iria dar
emprego (Conselho Municipal da Cidade de Angoche, 2005a, p. 12).
(iv) Em violação da lei nº 11/99 sobre as finanças e património dos órgãos
locais, o Conselho Municipal de Angoche (Frelimo) continuou a fazer despesas (a
última foi em 12 de Janeiro) até alguns dias antes da investidura da Renamo
(Fevereiro 2004), colocando o município de Angoche numa situação de dívida
excessiva em relação aos seus fornecedores. Por exemplo, a quantia de 700
milhões de meticais, que constituía superavit, segundo o relatório balanço do
primeiro mandato autárquico da Frelimo, em Fevereiro de 2004 quando a Renamo
toma o poder tinha-se transformado em défice (Conselho Municipal da Cidade de
Angoche, 2004b, p. 9).
Angoche: quando a tutela administrativa pesa na gestão local
Em Angoche, a Renamo tentou criar postos de trabalho para satisfazer o seu
eleitorado. Substituiu os directores das unidades administrativas autárquicas
que tinham trabalhado com a Frelimo (Conselho Municipal da Cidade de Angoche,
2004c, p. 12); rescindiu os contratos de alguns funcionários que continuavam a
trabalhar no município com contratos expirados e expulsou alguns, nomeadamente
os cobradores de impostos, acusados de desvio de dinheiro das receitas cobradas
nos mercados, e outros que, segundo a Renamo, confundiam a política com a
administração. Estes últimos jogavam, segundo a Renamo, um duplo jogo, porque
continuavam a servir de espiões para a Frelimo na administração municipal da
Renamo (Conselho Municipal de Angoche, 2005b, p. 9).
As medidas aplicadas pelo Conselho Municipal de Angoche não surtiram os efeitos
desejados devido à intervenção imediata do Estado-Frelimo que, através do
Ministério da Administração Estatal, usou o poder de tutela administrativa e
obrigou a administração municipal da Renamo a readmitir todos os funcionários
que tinham sido expulsos. É verdade que o Estado-Frelimo não inventava nada,
porque segundo Mabileau (1993) mesmo em países ocidentais, os actos de
autonomia dos conselhos municipais são rigorosamente limitados pelo exercício
da tutela administrativa, que coloca os conselhos municipais sob vigilância,
rejeitando ou substituindo as decisões do presidente ou dos conselhos
municipais (p. 24). Assim, a rede clientelar no município de Angoche era
incapaz de integrar toda a gente. Ela tinha apenas conseguido capturar certos
membros com a sua integração na estrutura do município, para ocupar postos
subalternos, por exemplo de limpeza, e outros para lugares-chave, vereadores,
nomeados pelo presidente, e alguns secretários de bairro, nomeados em
substituição dos antigos secretários indicados pela Frelimo.
O presidente do conselho municipal de Angoche regozijava-se por estas nomeações
da seguinte maneira:
Agora podemos falar de um verdadeiro poder local. [ ] As pessoas
nomeadas para ocupar os postos importantes na estrutura municipal são
os filhos da terra, os Cotis. Há uma ruptura com as antigas
práticas da Frelimo. [ ] O poder está finalmente com os seus donos,
pessoas com legitimidade local (Alberto Omar, Puli, 16 de Setembro de
2006).
É verdade que os Cotis tinham recuperado o poder ao nível local, mas para os
outros notáveis e chefes locais, que não tinham sido integrados no município,
esta situação era intolerável, ainda mais porque eles também tinham votado pela
Renamo, tinham participado na jornada de limpeza de apoio à Renamo e mereciam
entrar na rede em detrimento dos familiares e amigos do presidente do conselho
municipal (entrevista com Hassane Hibrahimo, Inguri, 23 de Outubro de 2006).
O mesmo se passava com os membros da Renamo na assembleia municipal,
nomeadamente o chefe da bancada e o presidente da assembleia[14], que
reclamavam benefícios idênticos aos concedidos ao presidente do conselho
municipal. A situação vivida no município de Angoche é bem descrita por L.
Monnier:
Há menos riqueza a adquirir e, por isso, a distribuir, porque a
riqueza é principalmente consumida ou redistribuída. Ela não é
criadora de nova riqueza. [ ] Face à penúria da redistribuição,
assistimos a uma multiplicação de grupos e de facções que vêm exigir
a sua parte do bolo. [ ] Logo que o xitique é bloqueado e as suas
regras sagradas violadas pelo presidente, [ ] é a expressão da crise
[ ] É por isso que a massa cada vez mais numerosa de excluídos vem
ampliar o movimento que toma a forma duma autêntica revolta de
cadetes sociais (1993, p. 130).
Estes revoltados sabotavam o desempenho do município, bloqueando a gestão do
seu próprio partido e provocando uma espécie de paralisia institucional.
Angoche: paralisia institucional e o conflito entre a assembleia e o conselho
municipal
No sentido amplo do termo, a paralisia institucional é a incapacidade de o
governo tomar decisões. Os três poderes com capacidade de tomar decisões eram,
portanto, o lugar por excelência de confrontação entre os partidos políticos e
diferentes posições políticas pela produção de normas locais. A paralisia
institucional é, de acordo com Santos (1986), o resultado da confrontação
política quando existe uma dispersão de recursos de poder entre actores
radicalizados nas suas posições (p. 10). Em Angoche existiam três actores
políticos em oposição radicalizada no tocante à gestão municipal da Renamo: (i)
O governo da Frelimo, que era detentor do poder político ao nível das unidades
desconcentradas (administração do distrito de Angoche) e que exercia
deliberadamente uma espécie de administração paralela, por usurpação das
competências atribuídas às unidades descentralizadas (municípios), tais como a
colecta de impostos e a gestão das fontes de água existentes no território
municipal (Conselho Municipal da Cidade de Angoche, 2004d); (ii) a Renamo 1,
constituída pelo conselho municipal, representado pelo presidente e seus
vereadores; (iii) a Renamo 2[15], representada pelo presidente da assembleia
municipal, o chefe da bancada e o secretário da assembleia, em aliança com os
membros da assembleia da bancada da Frelimo. Apesar de a Renamo ter maioria na
assembleia municipal (17 membros), o que era suficiente para fazer passar todos
os projectos de gestão municipal, a ruptura de equilíbrio entre as instâncias
do partido e a bancada da Renamo (com 4 membros dissidentes) constituiu um
problema. Todos os projectos submetidos pelo conselho municipal à assembleia,
durante os primeiros quatro meses, foram rejeitados pela oposição (Frelimo),
que se aproveitou do conflito no interior da Renamo para provocar a paralisia
institucional. A carta escrita pelo presidente do conselho municipal ao
presidente do partido, A. Dhlakama, e ao delegado provincial da Renamo em
Nampula é demonstrativa:
Desde a tomada de posse em Fevereiro de 2004, a mesa da Assembleia
Municipal impede o cumprimento do programa do governo municipal da
Renamo [ ]. Eles são os responsáveis pelas más relações existentes
entre a Assembleia Municipal, o Conselho Municipal e o partido [ ]
Estão sempre em desacordo com outros membros da Assembleia Municipal
do lado da Renamo e não cooperam com o Conselho Municipal [ ] Este
conflito é utilizado pela oposição (Frelimo) para nos humilhar e
rejeitar todos os nossos projectos de governação (Conselho Municipal
da Cidade de Angoche, 2004e, p. 2).
O conflito entre a assembleia e o conselho municipal da Renamo em Angoche foi,
sem dúvida, um dos grandes obstáculos à gestão municipal durante a primeira
fase do processo. Mas não podemos esquecer a acção dos membros da assembleia
pela Frelimo, que, no decurso das dezasseis sessões ordinárias da assembleia
municipal que tiveram lugar até Fevereiro de 2007, votaram sempre contra todas
as propostas da Renamo, com a excepção de uma resolução sobre os benefícios
acordados aos membros da assembleia municipal[16] (Ames, Connerley, Rosário,
Nguenha, & Francisco, 2010, p. 17).
A Renamo queixou-se também da transferência tardia das subvenções do governo
central para o município, o que dificultava a implementação de seus programas e
projectos, nomeadamente a construção de escolas e hospitais, a criação de
emprego e a reabilitação de estradas. Também se queixava das sucessivas e
repetidas inspecções administrativas e financeiras sem pré-aviso a que o
município era sujeito (Savana, 6 de Maio de 2005, p. 12). A contestação da
Renamo não era dirigida às inspecções em si, mas ao procedimento dos
ministérios das Finanças e da Administração Estatal. O regulamento das
inspecções previa entre quatro a cinco inspecções por mandato de cinco anos,
mas o município de Angoche recebia inspectores trimestralmente, contrariamente
aos municípios sob gestão da Frelimo na mesma província (Monapo e Nampula),
onde as inspecções eram realizadas de acordo com o regulamento (entrevista com
Estevão Abudo, Muchelele, 14 de Julho de 2006).
A acção do governo distrital, que sabotava, pelo menos nos primeiros quatro
anos, todas as tentativas de implementação de políticas locais de
desenvolvimento, foi outro factor adverso à gestão da Renamo. Em primeiro
lugar, cobrava impostos e taxas no território municipal (Noticias, 31 de Março
de 2004, p. 6), o que colocava os residentes na área municipal numa situação de
dupla imposição. Eram taxados ao nível nacional e local (Conselho Municipal de
Angoche, 2004e, p. 3). Em segundo lugar, o bloqueio era feito através dos
secretários de bairro que geriam os fontenários, cobravam e usavam de forma
descontrolada o dinheiro da venda de água potável (Conselho Municipal da Cidade
de Angoche, 2005b, p. 8).
Em Angoche, a problemática da gestão das fontes de água não pode ser dissociada
de outro conflito, que opunha a Renamo e o governo do distrito quanto ao
controlo das autoridades comunitárias. De facto, durante o primeiro mandato
municipal (1998-2003), o Estado-Frelimo, que detinha o poder nas unidades
descentralizadas e desconcentradas, tinha, por intermédio do decreto nº 15/
2000, legitimado todas as autoridades comunitárias existentes no distrito,
incluindo as do município. Ao usar um decreto para legislar sobre uma matéria
tão importante como o papel do poder tradicional na governação, o governo
queria contornar a Renamo, que não só estava em peso na Assembleia da República
como também tinha grande interesse nesse assunto (Buur & Kyed, 2005;
Forquilha, 2006). Ora, a vitória eleitoral da Renamo em 2003 tinha criado
condições para o exercício do poder executivo numa situação de legitimidade
eleitoral, e a aprovação do diploma ministerial nº 80/2004, sobre a articulação
dos órgãos dos governos locais com as autoridades comunitárias, deu à Renamo a
possibilidade de reconhecer e legitimar as autoridades comunitárias que lhe
eram favoráveis dentro do território municipal. A administração municipal da
Renamo, com o objectivo de fortificar o seu controlo social e político sobre as
populações e de forma a devolver o poder à estrutura local tradicional
muçulmana, marginalizada durante a era do partido único, indicou e legitimou,
ela também, as suas autoridades tradicionais. É por isso que existiam, não
somente em Angoche, mas também na Ilha de Moçambique e Nacala Porto, municípios
sob gestão da Renamo, até antes das eleições autárquicas de 2008, autoridades
comunitárias da Renamo com símbolos (bandeira) do município e autoridades
comunitárias da Frelimo com uniforme e a bandeira da República de Moçambique em
suas casas particulares (Rosário, 2009, p. 515)[17]. Isto instituía a dupla
administração no território municipal de Angoche, um problema que tornava a
gestão da Renamo impraticável e impossível. Os secretários da Frelimo, para
além de desinformar a população, continuavam a cobrar impostos e a gerir os
bens dos municípios, nomeadamente as fontes de água (entrevista com Alberto
Omar, Puli, 19 de Outubro de 2006).
Numa situação em que a água potável é um recurso escasso, a posse e a gestão
dos fontenários públicos constituíam um recurso político capital. De facto,
durante a primeira gestão municipal, as autoridades comunitárias da Frelimo e a
empresa de Águas de Angoche tinham assinado um contrato de gestão dos
fontenários de água. Segundo os termos desse contrato, os secretários deviam
depositar cerca de 80 mil meticais na empresa, resultantes da venda de água aos
residentes. Essa cláusula tinha levantado muita polémica, uma vez que os
secretários de bairro não dispunham dessa competência e existiam muitos
interessados privados para fazer essa gestão (Conselho Municipal da Cidade de
Angoche, 2001, p. 2), porquanto a gestão dos fontenários era muito rentável. De
facto, os secretários de bairro da Frelimo, que faziam trabalho voluntário e
gratuito de mobilização e de angariação de simpatizantes, tinham encontrado uma
forma de sobreviver e de ganhar dinheiro facilmente. Durante quase toda a
vigência do contrato, nenhuma soma foi depositada na Empresa de Águas. Cada vez
que a empresa ameaçava tomar medidas administrativas, ou seja, rescindir os
contratos, encontrava barreiras no seio das instâncias administrativas locais.
Daí resultou que os fontenários nunca eram reparados, o que provocava avarias
grossas, nem eram renovados, o que colocava o município num dilema, ainda maior
porque a independência dos secretários de bairro (gestores) em relação ao
conselho municipal não permitia nenhum acompanhamento e agravava a incapacidade
do município de satisfazer uma das suas obrigações básicas – o abastecimento de
água potável (Conselho Municipal da Cidade de Angoche, 2006, p. 4).
O fornecimento de água constitui uma das atribuições dos governos municipais
(art. 25º da lei nº 11/97, de 31 de Maio). Mas, apesar disso e da gestão
municipal da Renamo, a vontade do Estado-Frelimo em manter o status quo e as
suas autoridades comunitárias prevalecia, conforme o expressou o chefe da
bancada da Frelimo na assembleia municipal, Saide U. Passo:
As fontenárias foram construídas pelo governo do distrito (Frelimo)
antes da municipalização, portanto, elas não pertencem ao município.
Se o município quiser gerir fontenárias, deve construir as suas e
lhes atribuir a seus secretários de bairro [ ]. As fontenárias que
existem foram atribuídas aos secretários do partido Frelimo, por isso
eles continuarão a fazer sua gestão (ibid., p. 3).
A reacção deste membro sénior da Frelimo ao nível local é surpreendente, ainda
mais porque os secretários de bairro com quem tinham sido assinados os
contratos não eram da Frelimo. Em Moçambique, oficialmente os secretários de
bairro constituem o escalão mais baixo da administração pública. Isto mostra
bem a ausência de separação entre o Estado e o partido e a vontade da Frelimo
de querer controlar o poder a todos os níveis e continuar hegemónica. A forma
de agir do partido Frelimo em Moçambique assemelha-se à estratégia adoptada
pelo Congresso para a Democracia e Progresso (CDP) do Burquina Faso. Segundo
Otayek (2007), o CDP, que goza de uma posição privilegiada (todos os recursos
políticos, administrativos, financeiros e mediáticos do aparelho estatal) usa
estes recursos para controlar o jogo eleitoral e assegurar o seu domínio sobre
a arena local, aniquilando totalmente seus adversários (p. 141).
Angoche: O regresso do partido único
Os resultados das terceiras eleições municipais de Novembro de 2008 testemunham
a vontade do Estado-Frelimo de acabar com a oposição em todos os escalões do
Estado. Com uma taxa de participação de 46%, mais alta que a das eleições
locais de 2003 (28%) e das eleições legislativas e presidenciais de 2004 (43%),
a Frelimo ganhou as eleições em quarenta e dois dos quarenta e três municípios
em disputa. Obteve maioria em quase todas as assembleias municipais e elegeu na
primeira volta quarenta e um presidentes dos conselhos municipais.
No que diz respeito ao município de Angoche, a Frelimo e seu candidato Américo
Assane Adamuji ganharam o escrutínio com 66,12% e 65,64 % dos votos,
respectivamente, contra 32,35% da Renamo e 34,36% do antigo presidente do
conselho municipal, indicado pela Renamo, Alberto Omar. O pimo obteve 1,53% dos
votos, perdendo o direito de estar representado na assembleia municipal
(Conselho Constitucional, 2009). Mas o que explica a derrota eleitoral da
Renamo neste município? Para explicar as causas deste cataclismo eleitoral
seria necessário um estudo aprofundado, que não constitui o objectivo deste
texto. Contudo, a partir do material recolhido durante a pesquisa de campo e do
material disponível em jornais, algumas respostas podem ser esboçadas.
Em Angoche, três eventos podem explicar a recuperação do poder pela Frelimo:
(i) a ruptura com as antigas práticas de imposição de candidatos exteriores
ao meio social local pelas instâncias provinciais e centrais do partido. De
facto, se nas eleições municipais de 1998 e 2003 a Frelimo tinha indicado José
Constantino contra a vontade das estruturas locais do partido (Domingo, 23 de
Novembro de 2003, p. 5), para as eleições de 2008 a Frelimo organizou bem o
processo de designação interna que resultou na escolha de Américo Assane
Adamuji, coti, filho da terra, proveniente das Ilhas Catamoio. Adamuji era
uma figura consensual, não somente no seio do partido a nível provincial e
central, mas também a nível local e entre os notáveis da terra. O discurso do
porta-voz do comité distrital da Frelimo é revelador da mudança de estratégia:
Escolhemos um candidato que reúne o consenso, não somente dos membros e
simpatizantes do partido, mas também dos diferentes segmentos da sociedade
civil. [ ] Não queremos correr os mesmos riscos do passado, onde tivemos
resultados desastrosos nas eleições municipais aqui em Angoche (Notícias, 4 de
Junho de 2008, p. 4).
Como diz Otayek (2007),
em contexto autoritário, como em contexto democratizado, a
descentralização surge assim como uma ferramenta particularmente
funcional em matéria de circulação, cooptação e reciclagem das elites
no poder, cuja instrumentalização permite ao centro assegurar a sua
hegemonia, actuando como árbitro entre os múltiplos pretendentes aos
troféus electivos locais e neutralizando as tensões internas que o
fragilizam pela imposição, em nome da democracia, da renovação de
grupos e de facções que se organizam no seu seio (p. 142).
(ii) O conflito, opondo, de um lado, o presidente do executivo, e do outro, o
presidente da assembleia municipal e os notáveis locais, em relação ao
cumprimento das promessas eleitorais e à má distribuição das prendas, tinha-se
exacerbado durante a gestão política da Renamo do município em 2003 (Notícias,
1 de Setembro de 2008, p. 3). Um dos representantes da Renamo 2 dizia:
A Renamo nos devolveu a liberdade de rezar, mas a religião não enche
a barriga vazia [ ]. A Renamo escolheu um candidato que era chefe na
Angocaju que recebeu muito dinheiro de indemnização pelo
despedimento. Quando chegou ao poder, deu emprego a seus antigos
colegas e família e se esqueceu das pessoas que trabalharam para a
Renamo para esta vitória. Demos nossos votos a essa gente. Agora eles
têm salários altos e se tornaram mais ricos e nós mais pobres. [ ] O
plano que temos agora é de lhes fazer perder o poder nas próximas
eleições municipais [ ]. Temos em nossa posse 600 cartões de membros
da Renamo descontentes com esta situação. Se a Frelimo negociar
connosco, se nos dar dinheiro, iremos-lhe dar a vitória nas próximas
eleições municipais [ ] A Renamo nos mostrou que os partidos não
servem para ajudar a população, mas para ajudar suas famílias. Então
neste contexto, o partido que vai melhor pagar, terá a vitória
(entrevista com Hassane Hibrahimo, Inguri, 2007).
A mudança de orientação destes notáveis enfraqueceu politicamente a Renamo,
que, ao mostrar total desprezo por este grupo, considerava tratar-se de um
pequeno grupo, sem nenhuma expressão política e que era instrumentalizado pela
Frelimo para desestabilizá-la politicamente (Zambeze, 25 de Maio de 2006, p.
32). Ao se sentir roubado e desprezado, este grupo de notáveis não hesitou em
reafirmar seu apoio ao partido Frelimo em troca de vantagens materiais. A
mudança de orientação política das elites de Angoche e de suas populações a
favor da Frelimo não pode ser interpretada como uma mudança de natureza
ideológica, mas como uma táctica política com o objectivo de conservar o
poder local. Abandonaram uma Renamo inapta para servir de instrumento de
manutenção do poder para se aliar à Frelimo em posição de dominação. Fruto
desta estratégia, em 2009 a votação da Frelimo em Angoche subiu cerca de 10
mil votos em relação a 2004 (Nuvunga, 2013, p. 46). Isto mostra que os esforços
de descentralização operados não contribuíram para o desenvolvimento em
Moçambique, antes permitiram a grupos influentes apropriar-se das vantagens
provenientes das iniciativas de descentralização (Hyden, 1983, p. 68), criando
novas elites políticas locais sem nenhuma noção de responsabilidade pública,
menos competentes, mais corrompidas, que reforçaram igualmente o
desenvolvimento de relações clientelares ao nível local (Mullard, 1987, p.
123).
(iii) A Renamo, mal organizada e abalada por conflitos entre os seus membros
motivados pela partilha dos recursos do município onde exerciam o poder desde
2003, ao que acrescia a sua estrutura sempre militarizada, ainda não
civilizada, com um claro corte entre a direcção central e as bases, encontrava
dificuldades para apresentar uma alternativa credível, capaz de fazer frente ao
Estado-Frelimo, mormente no respeitante à gestão municipal. O período da
campanha para as eleições municipais de Novembro de 2008 confirmou esta
fraqueza. Enquanto a Frelimo conduzia sua campanha eleitoral, com inúmeras
iniciativas locais, os candidatos da Renamo em Angoche esperavam simplesmente a
chegada de material proveniente da sua direcção central, instalada na capital,
Maputo.
Conclusão
A hipótese desenvolvida neste artigo é a de que, tendo a Renamo chegado ao
poder no município de Angoche, a Frelimo mobilizou e implementou todos os
recursos à sua disposição, incluindo a fraude (Awepa, 2008, p. 2), para: (a)
recuperar o poder neste município; (b) consolidar o poder que detinha noutros
municípios; (c) alargar seu poder a outras localidades, que, em função da
aplicação do gradualismo, tinham atingido a categoria de municípios. A Renamo,
na sua gestão municipal, entrou em contradição com ela mesma. A ideia de bem
governar, evocada pelo partido na tomada de posse no município de Angoche, não
foi implementada. A Renamo reproduziu as práticas institucionais do Estado com
esquemas de clientelismo, práticas de funcionamento da administração pública
directamente ligadas à influência e à trajectória do Estado neopatrimonial
(Médard, 1991) na gestão local. Este modelo neopatrimonial na gestão local vem
do Estado-Frelimo. A resistência da Renamo a este modelo consistiu em
desenvolver seu próprio sistema, mas, nesse contexto, perdedor, ainda mais
porque era um neopatrimonialismo pobre. Ele não apresentava nenhuma
alternativa, como por exemplo a mobilização democrática dos habitantes para a
eleição de secretários de bairros e para a formação de cooperativas urbanas
locais para a produção de sal ou para retomar a produção de castanha de caju,
duas potencialidades locais. O bloqueio administrativo e financeiro com o envio
tardio das subvenções, a dupla administração manifesta na nomeação de
autoridades comunitárias para exercerem sua influência no território municipal,
a cobrança de impostos no território municipal mostravam que a Frelimo (urbana,
assimilada e sulista) não queria ver consolidadas outras legitimidades, ligadas
à Renamo (conotadas com as zonas rurais e oriundas do centro e norte). Graças
ao controlo sobre o aparelho estatal, a Frelimo colocou todos os recursos à sua
disposição para bloquear a institucionalização e a gestão local da Renamo, de
forma a recuperar e conservar o poder em todos os escalões do Estado, de tal
forma que qualquer ideia de alternância, possível em teoria, se torna inviável
na prática. As sucessivas eleições, que se realizam em Moçambique desde 1994,
confirmam a rotinização dos procedimentos eleitorais. Contudo, as eleições
legitimaram sempre a dominação política da elite sulista da Frelimo e
confirmaram o carácter problemático da alternância política.