A Crítica de Alguns Cientistas à Pedagogia Actual e a Minha Contestação, Algo
Compreensiva
A Crítica de Alguns Cientistas à Pedagogia Actual e a Minha Contestação, Algo
Compreensiva…
José B. Duarte *
Que os sábios de primeira ordem encontrem nas cortes (dos reis) honoráveis
asilos. Que obtenham a recompensa digna deles, a de contribuir para o bem dos
Povos a quem terão ensinado a sabedoria. É então que se verá o que podem a
virtude,aciênciaea autoridade animadas porumanobre emulaçãoetrabalhando em
concerto para a felicidade do Género humano"
Rousseau (1964, p.30)
Dois físicos atraídos por um sociólogo…
Começo por manifestar dúvidas quanto à interpretação de Rousseau proposta por
Santos numa frase, aliás central nas sucessivas obras deste autor, e que tem
sido usada por vários autores como argumento contra a pedagogia portuguesa
actual (que, todavia, precisará de reorientar a sua investigação, como
veremos).Vejamos a frase de Santos:
Há alguma razão de peso para substituirmos o conhecimento vulgar que temos da
natureza e da vida que partilhamos com os homens e mulheres da nossa sociedade
pelo conhecimento científico produzido por poucos e inacessível à maioria?
Pergunta simples, a que Rousseau responde, de modo igualmente simples, com um
redondo não. (1995, p7)
Evidentemente, os textos de Rousseau, com uma linguagem repetitiva, enfática
para leitores actuais e frequentemente ambígua, devem ser interpretados tendo
em conta o contexto cultural e político do século XVIII e a génese das obras do
autor, de que o Discurso sobre as Ciências e as Artesé a primeira, publicada em
1750. Assim, se compararmos a frase de Santos com as palavras de Rousseau em
epígrafe, à luz de outras obras, designadamente de O Contrato Social, publicada
em 1762, e se tivermos em conta que a questão da desigualdade social é a ideia-
força do pensamento de Rousseau, seremos inclinados a pensar que a sua
desconfiança em relação às ciências e às artes, no Discurso sobre as Ciências e
as Artes, será consequência da ideia de que só essa desigualdade propicia a
alguns a ociosidade que permite praticar as ciências e as artes e usá-las como
motivo de vaidade.
Aliás, é sobretudo contra as artes e o luxo que estas permitem aos poderosos,
que Rousseau se insurge. Quanto ao uso que se faz das ciências, a sua diatribe
é mais discreta, e não surpreende que no final desse discurso elogie sábios
como Bacon, Descartes e Newton e peça aos reis (frase em epígrafe a este texto)
que ouçam os seus conselhos, para que "a virtude, a ciência e a
autoridade animadas por uma nobre emulação" trabalhem em conjunto para a
felicidade do género humano.
Assim, se Rousseau diz "não" à pergunta da Academia de Dijon sobre
"se o estabelecimento das ciências e as artes contribuiu para purificar
os costumes", esse "não" advirá do uso que as classes
dirigentes têm feito desses recursos para seu proveito, não promovendo a
"virtude", conceito que em Rousseau é essencialmente de fundo
laico, pois tem de ser compreendido à luz de uma proposta de uma sociedade
democrática e igualitária, cerne de toda a sua obra. Detendo-nos no conceito de
ciência, aquela desconfiança de Rousseau acerca do uso das ciências parece
assim dever ser separada da sua perspectiva sobre a ciência como investigação
(ao mencionar Bacon, Descartes, Newton) e como contribuição, aliada à virtude
democratizadora e a um bom Governo, para bem da Humanidade. O "não"
de Rousseau não parece assim tão "redondo", como Santos acima
propõe, é até um "sim" em termos da mudança radical proposta para a
sociedade que toda a sua obra almeja.
Ora, baseando-se naquela frase de Santos, Baptista (2002) conclui que, para
Rousseau, "a ciência corrompe a moralidade e tudo na vida" (p.4). E
depois continua. "Teria que comprová-lo, o que não fez. Os seus
filhosreceberam essa herança e devem fazê-lo" (itálico meu, e a esse tema
voltarei). Deus (2003), aliás numa obra de interessante reflexão sobre os
equívocos do pós-modernismo, retoma também aquela frase de Santos para concluir
que "não tem dúvidas" de que o conhecimento científico é superior
ao conhecimento vulgar (por exemplo, as pessoas "deixaram de ir ao
barbeiro e passaram a ir ao dentista", etc) e, logo, "Rousseau está
errado". Mas Rousseau, que vitupera a vaidade e a exploração que os
poderosos fazem com o uso da ciência, não estará basicamente de acordo com a
opção por uma ciência autêntica que promova a sabedoria dos povos?
Musa inspiradora de cientistas e outros…
Mónica (1997) tem sido inspiração para um coro afinadíssimo de comentários nos
media, num desenvolvimento e exacerbamento temático que lembram as academias
barrocas do século XVII, pois até surpreende que alguns desses comentadores,
com formação científica, não evoquem as obras originais de Rousseau, mas as
frases daquela autora, como se de inspiradora musa se tratasse. Aliás, como
vimos, outros autores, sobre Rousseau, citam frases de Santos, e, embora este
se situe numa visão intencionalmente diferente da de Mónica, verificámos como é
causador de semelhantes efeitos de enviesamento quanto ao pensamento do autor
oitocentista. Por outro lado, parece desmesurado o apego a Rousseau, tanto por
parte dos críticos das ciências da educação como dos seus especialistas, se
pensarmos que a obra de Rousseau tem duzentos e cinquenta anos e depois dele
apareceram pedagogos como Dewey ou Freinet, muito mais próximos da cultura
actual.
Mas vejamos como Mónica influencia al
guns comentadores da nossa praça. A autora declara:
Já que os homens não se podiam manter selvaticamente bons, entre as florestas
primitivas,competia à Escola conduzi-los até si mesmos.Ora quem melhor do que
os professores para os encaminhar até á Luz? Rousseau introduziu a ideia de que
a criança é um botão de rosa. Ao professor competia estrumar a alma juvenil.
Foi assim que a Pedagogia substituiu o Saber (1997, p. 68).
Na divulgação histórico-cultural tornou-se conhecida a ideia do "bom
selvagem" como categoria temática importante em Rousseau. Ora, essa
categoria deverá ser cotejada com outras linhas de força das obras do autor,
mesmo na obra Emílio ou da Educaçãoque cito a partir da versão francesa:
"O homem natural é todo para ele-próprio; é a unidade numérica, o inteiro
absoluto" (1966, p. 39). Linhas depois: "O homem civil não é senão
uma unidade fraccionária (…) cujo valor está na relação com o inteiro, que é o
corpo social". Por isso, em O Contrato Social,o autor afirma que
"aquele que ousa lançar-se na empresa de instruir um povo deve sentir-se
em condições de poder mudar, por assim dizer, a natureza humana" (1981,
p. 44).
Mas, como pretende Mónica acima, Rousseau teria substituído o saber pela
pedagogia e esse exemplo é seguido pelos seus "filhos"? Para
começar a responder a essa objurgatória, evoquemos a lição sobre o curso do Sol
e a orientação que isso permite, no livro terceiro de Emílio, com que Rousseau
ilustra o tipo de pedagogia que propõe. Quando o estudante lhe pergunta para
que serve (1966, p. 232), a tentação do mestre é falar-lhe da utilidade das
viagens e do comércio, das produções de cada clima. Todavia, prefere, no dia
seguinte, levar o discípulo a passear e a fazer com que a aldeia fique
escondida pelo arvoredo e, nessa situação, face à ideia de que estão perdidos e
apertado pela fome, pois é hora de almoço, Emílio aplica a teoria dos pontos
cardeais e descobre o caminho de regresso.
É uma situação simplista, dir-se-á, mas não esqueçamos que Rousseau escreve em
1762 e pretende atacar o ensino baseado na autoridade e no verbalismo que
sobrecarregue a memória do aluno de modo a que "nada daí tire que seja
seu", impedindo-o de "usar a sua razão e não a de outro". Por
isso conclui o terceiro livro de Emile, (parte que aqui sigo mais de perto) com
palavras que mostram a função formativa, não-enciclopédica, dos saberes, na
educação: "eu mostro-lhe (ao educando) o caminho da ciência (…) mas sem o
deixar ir demasiado longe nesse caminho" (p. 270).
Para "mostrar o caminho da ciência", isto é, criar apetência pela
pesquisa e autonomia na procura do saber, Rousseau propõe uma metodologia de
base experimental que leve o educando a reflectir sobre ideias de instrumentos:
Captam-se noções bem mais claras e bem mais seguras com as coisas que se
aprendem por si-mesmo, que com aquelas que se apanham dos ensinamentos de
outrem; e, além de que não se acostuma a razão a submeter-se servilmente à
autoridade, ganha-se mais destreza em encontrar relações, em ligar ideias, em
inventar instrumentos, que quando, adoptando tudo aquilo que se nos dá,
deixamos enfraquecer o nosso espírito pela indolência (1966, p. 227).
Com essa perspectiva experimental, Rousseau articula até uma invenção de
instrumentos, como vimos e como sugere para a primeira lição de Estática, em
que, em vez de mostrar uma balança, fará colocar um pau sobre o encosto de uma
cadeira, procurando o equilíbrio (p. 226). O experimentalismo assenta, assim,
em propostas muito claras e próximas da sensibilidade do educando:"Todas
as noções de estática e hidrostática se podem adquirir por experiências
simples" e exemplifica com um copo virado dentro de água e que aí se não
enche rapidamente, mostrando a resistência do ar, ou um balão, que, cheio de
ar, salta mais. Na banheira, um braço saído da água sente o peso do ar. Em
conclusão, "pondo o ar em equilíbrio com outros fluidos, pode medir-se o
seu peso: daí o barómetro, o sifão, a máquina pneumática" ( p. 227).
Embora numa formulação própria da época, como se vê, mas ao contrário da
afirmação de Mónica, Rousseau considera que ensinar se faz com conteúdos que
desenvolvem saberno aluno, mas que esse saber se adquire melhor com um método
pedagógicoque motive e envolva o aluno em actividades de descoberta e não pela
mera verbalidade e memorização.
É evidente que, em termos actuais, se o método de descoberta ou de pesquisa, no
rasto de Rousseau, mas também de Dewey e Freinet, é hoje apresentado como
método interessante para desenvolver a autonomia do estudante, a pedagogia não
o julga exclusivo. Assim, para Astolfi (1995), o que torna ineficaz o modelo
verbal-transmissivo não é a sua natureza mas a sua exclusividade(p.130). Se em
certos momentos do ano escolar, os alunos podem, graças ao modelo
construtivista, "viver a experiência da maneira como se elabora, se
transforma e se enriquece o seu saber", isso dará mais sentido a outros
momentos, inclusive transmissivos, em que este saber é apresentado de
"forma acabada". E o autor propõe uma hierarquização dos pontos-
chave da aprendizagem anual de uma disciplina, em que é preciso investir mais
tempo, mas tal permite ganhar tempo, apresentando depois outros pontos menos
importantes mais rapidamente do que vulgarmente se faz.
Alguma compreensão para com as diatribes…
Resta-me acrescentar que, apesar das considerações anteriores, compreendo de
certo modo as diatribes com que alguns cientistas (e tutti quanti…) têm
incensado a animosidade e omnisciência de Mónica. As ciências da educação
constituíram-se há umas três décadas, mais precisamente em França, em 1967
(Mialaret, 1979, p. 3), numa procura de fundamentos científicos para a educação
e na conjugação de três agrupamentos de disciplinas: ciências que estudam as
condições gerais e locais da educação (história, sociologia, demografia,
educação comparada); ciências que estudam a relação pedagógica (psicologia,
didáctica, métodos e técnicas, avaliação); ciências de reflexão e evolução
(filosofia, planificação e teoria dos modelos). Destes três agrupamentos,
parece-me que, entre nós, é sobretudo o primeiro que tem tido mais
investigação, devido à divulgação de metodologias e à melhor acessibilidade de
dados e até ao prestígio dos investigadores envolvidos, pois o segundo e o
terceiro agrupamento de disciplinas implicam metodologias menos divulgadas e
relacionadas com a necessidade de observação.
O que é que tem faltado para que essas disciplinas cumpram o objectivo de
proporcionar a docentes e dirigentes os fundamentos científicos da educação? Na
minha perspectiva, algum caminho tem sido feito, embora no meio de um
verbalismo e idealismo que faz pensar estarem as ciências da educação ainda no
segundo estádio de Comte, pois que, se muitos conceitos divulgados pelas
ciências da educação podem constituir apoios teóricos de que os docentes podem
lançar mão na procura de soluções para os problemas da aprendizagem, tem
sobretudo faltado investigação que confirme ou corrija esses conceitos.
Essa credibilidade pode ser fatal para o futuro de uma pedagogia que aspira a
ter bases científicas. Não surpreende, por isso, que Magalhães e Stöer (1997,
p. 22) sublinhem que as propostas das ciências da educação não penetraram ainda
suficientemente no sistema, e o que delas mais se conhece são os seus
"recursos retóricos ao dispor de políticos, decisores e até bem
intencionados reformadores pedagógicos". Sobre uma outra falha do estado
actual das ciências da educação, evoco de novo Mialaret ao enunciar a
necessidade de uma "colaboração de especialistas das diferentes
disciplinas naquilo que chamamos pluridisciplinaridade externa" (1979, p.
89). E exemplifica: "a pedagogia da geografia não pode ser ensinada sem a
colaboração do geógrafo que, só ele, sabe qual é o estado actual da ciência de
que é especialista".
A tendência de alguma da investigação portuguesa sobre educação em descurar a
colaboração com os saberes disciplinares provoca um efeito de fechamento
teoricista sobre conceitos específicos das ciências da educação, com
consequências nefastas em termos de credibilidade e aplicabilidade. Falta
assim, entre nós, como já disse, uma investigação que procure, pela observação
directa ou indirecta, confirmar ou refutar muitos conceitos teóricos divulgados
entre nós. Entre eles incluem-se alguns com que têm ironizado, nos media,
alguns comentadores, entre eles Fiolhais (cujo trabalho como divulgador de
física admiro). Por exemplo, conceitos como os relacionados com uma pedagogia
diferenciada que, com fins igualitários, procure promover um mínimo de aptidões
para todos, mas sem prejudicar os melhores e, por isso, servindo-se de uma
dinâmica de grupos e envolvendo obviamente os docentes numa preparação e
intervenção na progressão das aprendizagens.
Daí a minha simpatia para com certos conceitos (embora desejando o incremento
da pesquisa sobre eles), entre os quais estão alguns que Fiolhais vitupera,
tais como "diferenças individuais dos alunos", "estilos
individuais de aprendizagem", "aprendizagem cooperativa",
"aprendizagem por descoberta". Totalmente de acordo Fiolhais, algum
verbalismo actual leva a disparates como "antipatia ao ensino de
conteúdos ou compreensão" (mesmo que Fiolhais os cite de um autor
estrangeiro...). Mas, como vimos acima, Rousseau enunciou a validade dos
conteúdos do saber, na perspectiva dos conhecimentos da sua época. E não me
parece muito diferente da de Rousseau a proposta de Ribeiro Sanches, mencionada
por Fiolhais com base na qual procura fundamentar a oposição de Sanches a
Rousseau:
É necessário exercitarem-se as mãos e os olhos na investigação das partes do
corpo humano, tanto como na leitura que trata das mesmas partes: este estudo
obriga o médico a observar, a trabalhar, e a indagar; e é o mais poderoso para
adquirir aquele génio filosófico tão necessário nesta ciência.
Pergunta a Fiolhais, Mónica e outros:
- Esta proposta é muito diferente da acima retirada da p. 232 do Emile?