A Comemoração do Dia Internacional da Mulher: Reconstituindo o Passado,
Analisando o Presente e Idealizando o Futuro
A Comemoração do Dia Internacional da Mulher: Reconstituindo o Passado,
Analisando o Presente e Idealizando o Futuro
Maria José Remédios
*
Castro, Zília Osório & Esteves, João (dirs.) (2005). Dicionário no Feminino
(SéculosXIX-XX). Lisboa: Livros Horizonte.
Gonçalves,Yasmina (2005). Mutilação Genital Feminina. Lisboa: Associação de
Planea-mento Familiar.
Rede de Estudos das Mulheres (2005). As Mulheres na União Europeia.
História,Trabalho e Emprego.Lisboa: Ela por Ela.
Apesar de estar perante três obras de natureza diferente, há razões que me
levam a privilegiar uma reflexão de conjunto sobre as mesmas.
O facto de se tratar de discursividades sobre o feminino constitui um dos
indícios justificativos da minha opção, a qual se torna mais consistente, se
atender que foi certamente esse um dos motivos que presidiu à escolha das datas
para o seu lançamento. A primeira delas foi dada a conhecer na Assembleia da
República, na véspera do Dia Internacional da Mulher a segunda citada foi
lançada na sede da Associação para o Planeamento da Família (APF), no dia 10 de
Março, e, finalmente, a última foi apresenta-da ao público no próprio dia 8 de
Março no Museu da Resistência e da República. Assim, as três obras em causa
foram divulgadas no âmbito das Comemorações do Dia Internacional da Mulher.
Contrariamente a algumas mulheres e a alguns homens, que referem que a
existência desta efeméride apenas serve para reforçar a diferenciação entre
homens e mulheres, como reconhece Maria Amélia Paiva, presidente da Comissão
para a Igualdade dos Direitos das Mulheres (CIDM), ao reiterar a sua convicção
na actualidade desta efeméride, "perante esta discriminação subtil que
'obriga' a justificar a continuação bração deste dia, mas não de
tantos outros que enchem os calendários"
1
, há, além de razões históricas para o fazer, um conjun-to de situações actuais
de "discriminação inaceitável" que reforçam a pertinência do Dia
Internacional da Mulher. Afirma ainda a mesma, no Editorial do Boletim da CIDM
que a igualdade entre mulheres e homens é "uma questão de direitos
humanos e uma condição de justiça social, sendo igualmente um requisito
necessário e fundamental para a igualdade, o desenvolvimento e a paz",
pelo que o "desenvolvimento sustentável, centrado nas pessoas, implica
uma nova relação de parceria entre mulheres e homens"
2
.
É a evocação de todas aquelas que nos precederam e que com o seu agir, de modos
tão diversificados, lutaram, explicitamente ou não, pelo direito à participação
das mulheres na vida pública que está subjacente à obra dirigida por Zília
Osório de Castro e João Esteves, investigadores dos Women's Studies. Como
nos dá conta, em o Dicionário no Feminino (Séculos XIX-XX),Zília Osório de
Castro, uma das fundadoras de uma das mais importantes revistas portuguesas dos
estudos sobre as mulheres - Faces da Eva. Estudos sobre a Mulher3- esta
obra constituiu o primeiro projecto de um grupo formado por investigadores e
investigadoras, integrado no Instituto Pluridisciplinar de História das
Ideias4, da Universidade Nova. Para aquela investigadora, que subscreve que um
dicionário "cria uma referência"
5
, esta obra permite compreender a sociedade, evidenciando o lugar que as
mulheres aí ocuparam e ocupam. Tal compreensão sustenta uma possível
interpretação do efectivo desenvolvimento da experiência histórica do ser
Mulher e ser Homem em termos do exercício da vida individual e cívica, da
privada e da pública. Assim, no seu entender, o dicionário em epígrafe
"ultrapassando os limites de mero instrumento de trabalho, apresenta-se,
ele próprio, como expressão de um modo de ser e estar, que vai tomando
consciência de que a humanidade é constituída por seres humanos dotados de
direitos, qualquer que seja a concepção de feminino e de masculino"
6
.
Constituindo-se este dicionário como importante instrumento metodológico para o
desenvolvimento de uma área do saber - os Women's Studies-,
de recente afirmação (no caso português ainda é mais premente tal aspecto),
reveste-se ainda de um carácter epistemológico, a não desprezar, ao promover o
desenvolvimento das questões de género, na abordagem, quer histórica, quer no
âmbito de outras ciências humanas e sociais. E, fá-lo, ao oferecer cerca de
três mil entradas, nem todas de natureza biográfica, mas muitas delas de índole
temática ou contemplando a imprensa periódica de teor feminino e/ou criada por
mulheres, assim como as congregações femininas existentes (no período
abrangido) no território nacional ou o associativismo feminino de natureza
política, caritativa, feminista ou pacifista, entre outras.
Enquanto trabalho plural e, sobretudo, pela natureza do material em foco, não
se pode esperar que a homogeneidade deste dicionário seja avaliada em termos de
dimensão/ aprofundamento das entradas apresentadas. É de louvar que, a par de
abordagens de grande extensão e de elevado desenvolvimento, se contemplem,
igualmente, outras, que urgia revelar, porque ignoradas até então, mas cujos
materiais acerca das mesmas rareiam ou não foi possível localizar. Assim como
julgo muito pertinente o facto de se ter valorizado 'dar
visibilidade' a um conjunto de figuras femininas completamente
desconhecidas dos estudiosos e do público em geral. Ao lado de grandes figuras
femininas que marcaram os sécs. XIX e XX, ousou-se revelar mulheres que tiveram
uma participação pública, que, apesar de não ter tido eco no seu tempo ou ainda
hoje, contribiu, individual ou colectivamente, para mudanças sociais na pequena
localidade onde nasceram e/ou viveram ou proporciou a outras mulheres e/ou
homens desenvolverem-se e serem, em parte, aquilo que hoje são. A história da
humanidade não foi realizada apenas com as grandes figuras, pelo que só um
estudo aprofundado, porque alargado e plural, da intervenção pública feminina
pode promover a análise da vida institucional, dos processos educacionais, das
mudanças políticas ou do desenvolvimento das artes e das ciências, numa
expressão da construção da cultura no seu devir histórico.
Por outro lado, tenho de realçar que tratando-se de um dicionário no feminino,
a ele estejam ligados homens, e de dois modos diferentes. Se foram muitos os
colaboradores homens, começando por um dos investigadores que assumiu a
direcção (João Esteves), algumas entradas reportam-se a homens que se
empenharam para que as mulheres não fossem silenciadas pela história. São os
casos de Arnaldo Brazão, Fazenda Júnior, e outros, que integraram em
determinadas situações lutas em defesa da emancipação da mulher, ou do padre
Júlio Marinho, que está intimamente associado ao desenvolvimento de uma das
mais importantes obras de apoio e integração social às jovens migrantes, a Obra
de Protecção às Raparigas.
A este dicionário têm sido apontadas algumas lacunas, como, optando por uma
pesquisa biográfica que contemplasse apenas figuras desaparecidas, incluir,
pelo menos, duas entradas respeitantes a mulheres que, além de terem dado muito
à construção de uma sociedade democrática e, enquanto tal, mais paritária,
continuam a fazê-lo intervindo em manifestações, publicando textos. Do meu
conhecimento são os casos de Maria Ângela Montenegro Miguel
7
e Maria Lucília Estanco Louro8; se outros há, não consegui identificá-los.
Igualmente, se a omissão de um conjunto de mulheres que integraram a
resistência ao salazarismo pode ser vista como uma falha, não considero que a
responsabilidade da mesma se possa atribuir aos autores do projecto. Em
primeiro lugar, este está em aberto, preparando-se a publicação de um segundo
volume, e por essa mesma razão não houve a pretensão de esgotar o tema. Como
refere explicitamente João Esteves, ao ser concebido como "uma obra
aberta", o Dicionário"continua aberto à colaboração de todos/as que
queiram corrigir ou acrescentar dados, discordem de interpretações propostas ou
queiram cooperar com outras entradas e novos conteúdos"9. Parece-me que é
talvez o momento de aqueles que detêm as fontes que permitem abordar essa mesma
intervenção feminina, nomeadamente a da resistência integrada no movimento do
PCP, contribuírem para que, além de ser reconhecido o valor social dessas
mulheres (reconhecimento que têm direito), a nossa memória colectiva fique
enriquecida ao não banir nomes femininos que ousaram lutar, pondo em causa a
sua vida, por uma sociedade que se afigurava mais justa. Por último, penso que
o facto de a entrada se fazer pelo nome próprio e não pelo apelido, novidade
que tem sido criticada em certos meios académicos portugueses, foi uma opção, e
como todas elas com vantagens e desvantagens. Todavia, ao ser dado conhecimento
ao leitor da escolha feita, assegura-se o cumprimento de um dos preceitos
metodológicos a respeitar, assim como se oferece uma justificação plausível
- "tentou-se recuperar a identidade feminina, não a fazendo
depender do apelido, como sucedeu durante demasiado tempo"
10
- ainda se disponibilizam entradas remissivas, as quais podem colmatar
dificuldades encontradas na pesquisa pelo primeiro nome.
Da leitura das biografias de um conjunto assinalável de mulheres portuguesas,
que viveram entre os sécs. XIX e XX, transparece que só a tenacidade na
afirmação das intenções, a convicção na possibilidade de atingir objectivos
desejados e propósitos definidos e a capacidade reivindicativa do direito ao
diferente do usual conseguem superar obstáculos de resistência social à
mudança.
Julgo, então, que se é levado a verificar que aquilo que é cultural nem sempre
tem de se perpetuar, e que os traços constitutivos das realidades culturais,
porque históricos e criados pelo homem para responder a necessidades
específicas, são susceptíveis de se alterar, e essa mesma possibilidade,
enquanto inerente à sua natureza cultural, reforça as culturas em vez de as
anular. Isto serve para reconhecer a legitimidade da luta contra o fenómeno
abordado na obra também em análise, a Mutilação Genital Feminina.O estudo
apresentado, da autoria de Yasmina Gonçalves inscreve-se num projecto
desenvolvido pela APF, em "estreita articulação com o Fundo das Nações
Unidas, outras agências das Nações Unidas, institutos europeus de investigação
e ONG's de a vários países"11, para a erradicação da Mutilação
Genital Feminina (MGF) em Portugal, considerado este como um "país de
risco" pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Segundo dados revelados
pela Stop FGM!
12
, 2 milhões de meninas e de mulheres jovens são sujeitas a esta prática, a qual
se estende, também, aos países industrializados, dados os fluxos migratórios
das zonas de África e da Ásia para a Europa, EUA, Canadá, Austrália e Nova
Zelândia. Acerca deste problema social, em Portugal, foi produzido um
assinalável trabalho pela jornalista do jornal Público
13
Sofia Branco (uma das 2 mulheres distinguidas com o Prémio de Jornalismo 2003)
dando voz a algumas mulheres guineenses, residentes no nosso país, vítimas de
Mutilação Genital Feminina. Também a Comissão para a Igualdade e para os
Direitos das Mulheres, em 2 de Dezembro de 2003, num debate promovido no Dia
Internacional da Eliminação da Violência contra as Mulheres, alertava para o
facto de Portugal ser um país de riscopara a execução de tal prática, ao
receber comunidades migrantes do continente africano, onde a MGF tem uma
prevalência muito forte.
Clarificado o conceito de Mutilação Genital Feminina, demarcando-o de outros
termos utilizados e classificando os tipos das mutilações genitais (segundo a
OMS, 1997), a autora contextualiza esta prática no âmbito dos rituais de
iniciação, salientando que a idade, a tradição, a coesão social, a religião, o
aumento da possibilidade de casamento, o estatuto socioeconómico e a estética e
higiene constituem-se como princípios que sustentam a sua realização entre
aqueles que a praticam. Penso ser esta abordagem insuficiente, diria mesmo que,
apesar de no "Preâmbulo" a presidente da APF referir que a MGF de
que o estudo fala "é um dos crimes com base no género"
14
, este fenómeno social não é problematizado como uma questão de género na obra
em epígrafe. Também a presidente da CIDM na apresentação, que assina,
fundamenta o combate e a erradicação da MGF em Portugal, a partir de dois
pressupostos, um da ordem dos direitos humanos, a incompatibilidade "com
a dignidade e o valor da pessoa humana", e o outro dos princípios e
garantias fundamentais consagrados na Constituição da República Portuguesa, ao
consagrar-se que a "promoção da igualdade de oportunidades entre as
mulheres e os homens" é "uma questão fundamental da própria
democracia"15.
Ainda que estando perante um estudo exploratório - conhecer o
posicionamento dos profissionais de saúde perante a MGF, tomados como
importantes agentes de actuação na erradicação de tal prática -, o qual é
precedido de uma introdução teórica, a análise sociológica devia mostrar-se
mais aprofundada. Se em termos de abordagem de natureza fisiológica da questão
(não só os tipos de MGF, como as consequências em termos de saúde sexual e
reprodutiva) estamos perante uma teorização cuidada e aprofundada, o mesmo não
se pode dizer quando está em causa uma fundamentação socio histórica de um
fenómeno, que por natureza é social.
Ao compreender o conceito de MGF, toda a prática correspondente à ablação
parcial ou total dos órgãos genitais externos da mulher, está sempre em jogo um
controlo e uma manipulação pelo masculino da sexualidade feminina. Trata-se de
aquele que domina, o homem, não reconhecer o direito da existência ao outro
como diferente, a mulher, ditando-lhe e impondo-lhe ele, assim, o modo de ser
diferente, recriando-a segundo as suas expectativas e ideias. Em contraposição,
com a existência de um espaço estruturado a partir das diferenças individuais e
colectivas, assiste-se à imposição de um cenário predominantemente
androcêntrico
16
, no qual a mulher é um "segundo" ser. Porque estamos perante uma
questão que recria a natureza humana, inscrevendo-se na ordem do cultural, não
se pode abordar a MGF sem se reequacionar o sentido e a validação do que é
cultural. Não pode nenhuma tradição cultural, diga-se, para aqueles que a
seguem, fundamentada em princípios de cariz religioso, e como tal
perspectivados como verdadeiros, opor-se aos princípios que por nós são
subscritos, de uma forma consensual, como garantes de uma vida individual e
colectiva digna do homem e da mulher. Assim, a legitimidade da tradição
cultural não podia deixar de ser aflorada, numa obra desta natureza, assim como
não podia deixar de ser pensada a relação entre as próprias mulheres no
interior de uma mesma sociedade. Sabemos que se criam mecanismos de
socialização (educação na família, na escola, ...), assim como de controlo e
incriminação daquela(e)s que se atrevem à rebeldia. A MGF é um dos mecanismos
patriarcais de controlo do feminino, assim como a lapidação é uma forma de
condenar mulheres consideradas insubmissas. Esses mecanismos reforçam uma
cultura na qual a mulher é um ser designado pelo homem. Na medida em que o
"desapego de si" e o "desamor de si" a estruturam,
domina uma aceitação da selecção pelo masculino e, consequentemente, uma visão
da outra, igual a si, como uma rival. Assim se deve compreender a participação
e o controlo das próprias mulheres na perpetuação do fenómeno em análise.
A autora apresenta a metodologia seguida e as actividades organizadas, a fim de
se aperceber do desenvolvimento do projecto, concebido de um modo faseado, ao
qual presidiu um conjunto de sete objectivos, que se podiam agrupar em três
núcleos, em ordem à erradicação da MGF no território nacional
17
. Focalizados os objectivos numa actuação direccionada para grupos
diversificados - com trabalho articulado a esta problemática (ONGs,
Departamentos Oficiais e Parlamentais), profissionais de saúde, sensibilizando-
os para a importância da sua intervenção junto das comunidades com que
trabalham, comunidades envolvidas e a sociedade em geral -, a metodologia
adoptada passou pela identificação de pessoas "chave" para a
criação de um grupo de trabalho na área da erradicação da MGF, em Portugal,
para se aceder aos conhecimentos, atitudes e comportamentos dos profissionais
de saúde, a trabalhar com populações em risco (nesta matéria) e promovendo um
seminário sobre a problemática em questão
18
.
Assim, os dados recolhidos através de questionário (analisados minuciosamente)
19
revestem-se da maior importância, pois qualquer intervenção formativa junto dos
profissionais de saúde, sem um conhecimento dos mesmos, ficaria comprometida.
Afigurando-se necessário identificar os seus conhecimentos, expectativas e
valorizações ficamos a saber que, apesar de a maioria deles ter conhecimento do
fenómeno em causa (94 por cento) e não concordar com a sua existência (92 por
cento), só uma minoria dos inquiridos teve "formação específica na área
da mutilação" (11 por cento), se confrontou com "situações de
MGF" (17 por cento), "tem conhecimento da prática em
Portugal" (15 por cento) e "observou sequelas e foi solicitado para
a realização da prática" (1 por cento).
A obra dada à estampa torna-se, assim, pertinente na medida em que não só
oferece uma definição clara da MGF, caracterizando as formas que a mesma pode
assumir, como, ao apresentar o posicionamento de um conjunto importante de
profissionais da saúde, potencializa uma intervenção junto dos mesmos em ordem
a co-implicá-los na erradicação deste grave fenómeno social, atentatório da
integridade física, psicológica e social de milhões de mulheres no mundo, isto
é, da sua saúde, na concepção holística do termo, vinculada pela OMS.
Deste modo, a fim de constituir um contributo positivo para a erradicação da
MGF, considero que a obra de Yasmina Gonçalves necessita de ser complementada
com uma outra, versando uma reflexão teórica com enfoque na abordagem
sociocultural da problemática da MGF. Não se pode dissociar a questão da
mutilação genital feminina de uma outra, a de a estrutura da vida social ser
patriarcal, apesar da variação, sincrónica e diacrónica, dos modelos dominantes
de sociedade. A MGF é uma das maneiras de a sociedade patriarcal actuar, a par
de outras. Contudo, as formas de estruturação do patriarcado podem ser mais ou
menos explícitas, mais ou menos coercivas, parecendo-me que a prática da MGF é
uma das formas mais marcadas da sua actuação.
Ele marca a sua presença estruturante, mesmo nas sociedades ocidentais e ditas
democráticas, apesar dos direitos alcançados pelas mulheres, na medida em que a
paridade social não é um facto. A realidade das mulheres europeias,
nomeadamente as que vivem na União Europeia, é objecto da terceira obra -
As mulheres na União Europeia. História,Trabalho e Emprego.O livro em questão é
produzido pela Rede de Estudos das Mulheres, a qual se organizou a partir do
ano lectivo de 1991-92, no âmbito do Programa Comunitário Erasmus
20
. Definindo como finalidade "promover e desenvolver os Estudos das
Mulheres na Europa"21, toma como objectivo "poder oferecer aos
alunos de licenciaturas e pós-graduação das universidades implicadas a
possibilidade de desenvolver conhecimentos sobre o estatuto legal, social,
cultural, laboral, etc., das mulheres da União Europeia, comparando a
diversidade de tradições e desenvolvimentos, sobretudo entre o Norte europeu e
a Europa mediterrânica"
22
. Por esta razão, elegeu-se um conjunto de temas a privilegiar, entre os quais
se destacam "mulheres europeias e a sua história", "mulheres
e políticas públicas de formação, educação e actividade laboral", ou
ainda, "modelos de família e relações de parentesco nos países
europeus", sem se ignorar a relação entre mulheres e espaços, territórios
e migrações
23
.
A obra estrutura-se a partir de dois grandes capítulos - "As
mulheres na história da Europa"
24
e "Trabalho e Emprego das Mulheres na Europa"
25
. Oferece-se no primeiro deles uma reflexão sobre "as condições de vida e
trabalho das mulheres europeias ao longo da história", reconhecendo-se
que tais condições, de natureza variada e ligadas a processos culturais e
políticos diversos, estão contudo "marcadas pelas relações
patriarcais"
26
. Admitindo que a história das mulheres seja história social, não perfilham que
o entendimento da história da sociedade seja determinado pela estrutura de
classe, razão pela qual não a reduzem a esta, subscrevendo os princípios,
vinculados por uma das maiores teóricas da histórias das mulheres, Joan Scott,
a qual reconhece que, se a nova história das mulheres exige uma análise da
relação entre a experiência masculina e a feminina no passado, ela tem de
estabelecer, também, uma conexão entre a história passada e a prática actual
27
.Tomando-se, na obra em análise, como ponto de partida de reflexão, as
condições de vida e de trabalho das mulheres europeias ao longo dos tempos, a
par de privilegiarem as actividades realizadas no lar, perspectivam a análise
da incorporação no mundo do trabalho e na educação, no mundo contemporâneo,
considerando-as como "factores que permitem e lançam as bases do
movimento organizado das mulheres europeias que se reivindicaram como
cidadãs"
28
. Movimento esse que reconhecem ser "responsável pelas profundas mudanças
ocorridas na Europa do séc. XX na ordem política, social, cultural e económica,
que estão a gerar uma nova configuração dos modelos de género"
29
.
Na sua abordagem, as autoras sustentam que é da aprendizagem do "ler a
escrever" que "as mulheres tomam a palavra"
30
e ao tomá-la, organizam-se, tomando posições políticas e exigem direitos para
si31. Se analisarmos o trajecto de vida de muitas das mulheres contempladas no
Dicionário no feminino..., verificamos que o acesso à leitura e a possibilidade
de escreverem foram factores que não só possibilitaram uma tomada de
consciência de que a mudança social era possível como lhes permitiu intervir no
tecido social a partir das suas convicções e aspirações. Em oposição, há que
reconhecer que a ignorância, conforme escreveu a feminista portuguesa Ana de
Castro Osório, é o maior entrave ao progresso civilizacional, reclamando a
perpetuação da tradição
32
. Nas regiões da África subsariana ou em partes da Península arábica, casos do
Iémene e de Omão, ou até de certas zonas do Extremo Oriente, onde a prática da
MGF (problema central da segunda obra) é usual, a frequência escolar feminina é
quase nula ou muito reduzida e as taxas de abandono escolar elevadíssimas, a
par de a maioria dos processos educativos ocorrer num quadro
"confessional", que sustenta essa mesma prática.
As autoras de As Mulheres na União Europeia...identificam, assim, o movimento
feminista, sobretudo desde os anos 90 do séc. XIX, com "o movimento
político e reivindicativo das mulheres"
33
, o qual será analisado em termos do seu desenvolvimento. Concebido como uma
realidade plural, assumem que as diferenças no interior deste movimento não se
anularam, mas antes, o próprio reconhecimento das mesmas, a par da moderação de
algumas posturas mais radicais e da crescente presença das mulheres, sobretudo
mulheres que se reconhecem como feministas, no seio dos partidos políticos,
"transformou o panorama político, que talvez não seja tão deslumbrante
nas suas manifestações, mas é um amplo movimento que penetrou na vida das
mulheres e dos homens e que tornou possíveis mudanças irreversíveis, a nível
legislativo e de mentalidades"
34
.
Partindo do pressuposto de que para se desenvolver uma análise comparada da
actividade das mulheres europeias há que ter em conta vários níveis de
realidade, estando co-implicados nestes uma série de actores sociais,
económicos e políticos
35
, Nicky Le Feuvre reconhece que o papel do Estado na vida quotidiana dos
cidadãos, assim como os sistemas de protecção social, reveste-se de um sentido
fundamental, sem desprezar a dimensão histórica dos movimentos sociais,
nomeadamente o operário e o feminista. Parte-se de uma breve, todavia muito
fundamentada, sistematização das perspectivas teóricas de análise dos papéis
sociais de sexo/de género, ao reconhecer-se a importância das respectivas
categorias, dada a temática analítica em foco. Demarcando sexo de género36,
usados não raras vezes, até entre investigadores de forma indistinta/
analógica, pressupõe-se que o modelo que impera no pensamento ocidental é o da
diferença dos sexos, "modelo segundo o qual o sexo determina o
género"
37
, baseado "na ideia de uma bicategorização fundamental, chamada
'natural', entre os sexos em qualquer sociedade humana"38.
Esta visão dicotómica marcará a própria intervenção do Estado, quando da
introdução dos sistemas de protecção social na Europa, ocupando a questão da
legitimidade da presença feminina na esfera pública o centro das políticas
sociais, ao desenrolar-se o processo de industrialização dos países europeus. É
oferecida uma importante análise do papel do Estado ao desencadear uma série de
intervenções, directas ou indirectas, que "vão reforçando pouco a pouco a
divisão sexual do trabalho, que dimana de uma especialização dos homens no
trabalho produtivo e remunerado e uma especialização das mulheres no trabalho
doméstico de reprodução não remunerado"
39
, sedimentando-se ao longo dos tempos, o modelo, denominado, de "homem
provedor principal de recursos", com o concurso relevante das políticas
familiares, fiscais e de protecção social. Mostrar-se-á, assim, que atendendo
ao domínio de tal modelo, sustentado pelo Estado, se as "modalidades
concretas da actividade profissional das mulheres são relativamente
diversificadas no seio da União Europeia", esta ocorre, contudo, a par da
existência de "características comuns ao conjunto das mulheres
europeias"
40
. O crescimento da taxa de ocupação feminina, a associação do trabalho feminino
a certas actividades laborais ou a dificuldade no acesso a cargos de chefia e o
desemprego e precariedade do trabalho femininos são alguns dos traços
estruturantes e constitutivos das diferentes sociedades europeias, os quais são
objecto de um saturado trabalho analítico. Para a compreensão de tais
realidades torna-se relevante, a distinção estabelecida entre os conceitos de
"trabalho" e "emprego"
41
.
Ao focalizar-se a atenção nas "características da actividade feminina na
Europa", perspectiva-se esta a partir das "taxas de actividade
feminina", "modalidades da actividade feminina (carreiras contínuas/
descontínuas)", "taxas de actividade das mulheres segundo o nível
de estudos e a situação familiar", o "trabalho a tempo
parcial", o "desemprego entre as mulheres" e as
"disparidades de salário homens/mulheres"
42
. Assim como se pensa a "segregação por sexo no mercado laboral" a
partir do estudo da "concentração dos empregos femininos em alguns
sectores de actividade" ou, ainda, da "concentração das mulheres
nos empregos de baixo nível"
43
. Para análise da "divisão sexual do trabalho doméstico" converge o
conhecimento da "atribuição prioritária das responsabilidades domésticas
às mulheres", da "fraca participação dos homens no trabalho
doméstico"44. Por último, reequaciona-se a "importância da
articulação produção/ reprodução"45, reconhecendo que a
"bicategorização [em função do sexo biológico] serve de cimento à
construção de duas esferas de competências: para os homens a atribuição
prioritária da actividade laboral remunerada e para elas a atribuição
prioritária do trabalho doméstico não remunerado"46. Deste modo, sob a
égide da "bicategorização", quando certas mulheres ocupam cargos
reservados até então aos homens pede-se-lhes que continuem a valorizar o âmbito
que lhes está reservado, e daí uma maior dedicação. Por outro lado, as
entidades laborais tenderão a adaptar a utilização da mão-de-obra feminina,
quando a requerem, segundo tal padrão, privilegiando os membros do grupo sexual
mais susceptível de assegurar o cumprimento das suas expectativas. O modelo de
"bicategorização" tende a reforçar-se na medida em que as mulheres
ao estagnarem nas suas carreiras transferem as suas aspirações de realização
pessoal para a esfera privada - a vida familiar -, e os homens,
aumentando a sua disponibilidade perante o empregador, enquanto libertos das
tarefas domésticas, confirmam o sucesso dos seus investimentos na carreira
(promoções e remunerações).
Como procurei realçar, no âmbito das Comemorações do Dia Internacional da
Mulher, em 2005, foram dadas à estampa três importantes obras que se articulam
entre si na medida em que contribuem para a Construção de uma Nova Europa, a
dois níveis. Num plano interno, a necessidade de consolidação da vida
democrática nos países comunitários, a qual não ocorre, depois de conquistada a
igualdade de direitos cívicos entre as mulheres e homens, sem a efectiva
paridade entre eles no que diz respeito ao trabalho, ao emprego e a outras
aspirações vivenciais. No campo da afirmatividade da Europa num mundo global, o
seu envolvimento na prática de uma cidadania global é imprescindível, e esta
começa por se incrementar entre os povos imigrantes acolhidos nos países
europeus. Há que, não só assegurar-lhes o gozo de direitos cívicos, como não
permitir que o cumprimento dos mais elementares direitos humanos seja
comprometido em abono de tradições rejeitadas pela cultura ocidental, enquanto
discriminam a igualdade de direitos entre homens e mulheres e põem em causa a
integridade física e psicológica destas. O conhecimento da História das
Mulheres na Europa, para o qual contribui o Dicionário no Feminino ...permite
compreender o presente, especificamente abordado em As Mulheres na União
Europeia. História, Trabalho e Emprego, mas ensina-nos, também, que as práticas
culturais são passíveis de alteração, o fenómeno social aflorado em A Mutilação
Genital Feminina, apesar dos processos de mudança serem lentos.
Em síntese, ainda que perpetuando-se o modelo patriarcal nas sociedades
humanas, que alguns consideram uma categoria de análise social demodé, o dia 8
de Março deve ainda constituir um momento de lembrar as mulheres que foram
vítimas da discriminação sexual, de encetar medidas contra a perpetuação desta,
ainda que ténue/escondida, e dar visibilidade a práticas que contribuam para a
alteração de uma organização familiar e profissional que não assente no modelo
do "homem provedor principal de recursos", o qual se reforça com a
ideia de espírito feminino sacrificialem prol dos outros.
A análise destas obras mostra que urge sedimentar o conceito de reengenharia do
tempo
47
, o qual começa a ganhar cada vez mais importância e já conduz à atribuição de
prémios a empresas na comunidade europeia48. Também ele se articula com uma
outra ideia, a de prazer perante a vida, e sem a qual não se modificam as
representações sociais de homem e mulher, e que constituem uma das
reivindicações do feminismo na actualidade.
Notas
*
Doutoranda da Universidade de Évora. Investigadora da UID Observatório de
Políticas de Educação e Contextos Educativos, Univ. Lusófona.
1
Paiva, Maria Amélia (2005). Notícias da Comissão para a Igualdade e para os
Direitos das Mulheres,n.º 73, Lisboa, p. 1.
2
Idem,p.2
3
A publicação desta revista surge em 1999, e não mais cessou, como um projecto
integrado no Instituto Pluridisciplinar da História das Ideias, sendo assumida
pelo "Faces de Eva. Centro de Estudos sobre a Mulher", quando da
sua constituição.
4
Posteriormente constituir-se-á um centro de investigação autónomo - Faces de
Eva. Centro de Estudos sobre a Mulher, o qual assume o projecto de elaboração
do Dicionário no Feminino
5
Dic. no Feminino..., p.7.
6
Idem,p.8.
7
Idem,p.584
8
Idem,p.722.
9
Idem,p.11.
10
Idem, p. 10.
11
Idem, p. 40.
12
International Campaign to Eradicate the Practice of Female Genital Mutilation
(2002) STOP FGM! Female Genital Mutilation/Mutilations Génitales Féminines,
s.i., EU e Open Society Institute.
13
Em 4/Agosto/2002.
14
Idem, p. 3.
15
Idem, p. 5.
16
Alborch, Carmen (2002). Mulheres contra Mulheres. Rivalidades e
cumplicidades.Lisboa: Editorial Presença,p.33.
17
Idem,pp.40-41.
18
Idem, p. 41.
19
Idem, pp. 47-71.
20
O primeiro Programa Erasmo (1991-1992) vai ser coordenado pelo Instituto de
Estudos das Mulheres da Universidade de Granada, através da historiadora (na
área da História da Educação e História das Mulheres) Pilar Ballarín e conta
com a participação da Equipa Simone da Universidade de Toulouse-Le Mirail ,
inicialmente através de Jacqueline Martin e depois de Nicky Le Feuvre, e do
Departamento de Estudos Sociais Aplicados da Universidade de Bradford, com
Jalna Hamer. Posteriormente, em 1994-1995, juntar-se-á o Instituto Cristina da
Universidade de Helsínquia, colaborando Pia Purra e Eeva Raevaara, e em 1995-
1996 a equipa vê integrar-se o Instituto de Sociologia da Universidade de
Bergen, através de Laila Eilertsem e Hildur Ve.
21
Op. cit.,p. 8
22
Idem.
23
Idem.
24
Da responsabilidade das historiadoras da Universidade de Granada Pílar
Billarín, Margarita Birriel, Cándida Martinez e Teresa Ortíz., com trabalhos
desenvolvidos no âmbito da História das Mulheres
25
Da autoria da socióloga e investigadora da área dos Estudos sobre as Mulheres
da Universidade de Toulouse-Le Mirail.
26
Idem, p. 9
27
Scott, J. (1990). "El género: una categoria útil para el analisis
historico". In James Amelang & Mary Nash (orgs.). Historia y genero:
Las Mujeres en la Europa Moderna y Contemporanea.Valência: ed. Alfons el
Magnánim, p. 27.
28
Op. cit., p. 14.
29
Idem.
30
Idem,p.39.
31
Não podemos deixar de reconhecer que é desta forma que concebemos o movimento
feminista português, de início do séc. XX, nomeadamente quando afirmamos que
figuras como Ana de Castro Osório (Veja-se Remédios, Maria José,"Ana de
Castro osório e a Construção da Grande Aliança entre os povos: dois manuais da
escritora portuguesa adoptados no Brasil", Faces da Eva. Estudossobre a
Mulher,n.º 12, 2004, p. 40-41 100) ou Adelaide Cabete (Adão, Áurea &
Remédios, Maria José, "Adelaide Cabete e a educação da mulher
portuguesa", História, n.º 74, 2005,") inscrevem a sua intervenção
discursiva ou a sua prática laboral na trilogia "educação -
trabalho - independência".
32
Osório, Ana de Castro (1909). Uma Lição de História: livro approvado para
leituras e prémios escolares pelo Conselho Superior de Instrução Pública do
Estado de Minas Geraes. Setúbal: Livraria Editora 'Para as
Crianças', pp. 17-19.
33
Idem,p. 48.
34
Idem,p.64.
35
Idem,p.73.
36
Entende-se que: "O primeiro - o sexo - remete em princípio
para particularidades anatómicas e fisiológica e o segundo termo - o
género - para a dimensão cultural das diferenças de sexo definidas através
das diferenças de comportamento, de práticas, de valores, etc." (Op.
cit., p. 74)
37
Op. cit., p. 76.
38
Idem, p. 77.
39
Idem,p.79.
40
Idem, pp. 87-88.
41
Consultem-se pp. 88-95, do Op. cit.
42
Idem, pp. 95-138.
43
Idem, pp. 138-149.
44
Idem,pp.149-156
45
Idem, pp. 157-163
46
Idem, pp. 161-162.
47
Oliveira, Rosiska Darcy (2003). Reengenharia doTempo.Rio de Janeiro: Rocco.
48
Vejam-se:Alves,Laurinda, "Boas Práticas" e "Empresas mais
responsáveis", Xis. Ideias para pensar, n.º 306, 2005, p. 1 e pp. 9-11.
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