O Movimento da Escola Moderna - Um percurso cooperativo na construção da
profissão docente e no desenvolvimento da pedagogia escolar
O Movimento da Escola Moderna ' Um percurso cooperativo na construção da
profissão docente e no desenvolvimento da pedagogia escolar
Pedro Francisco Gonzaléz, 2002, Porto: Porto Editora, 239.
A obra O Movimento da Escola Moderna ' Um percurso cooperativo na construção da
profissão docente e no desenvolvimento da pedagogia escolar, de Pedro Francisco
Gonzaléz tem origem na tese de doutoramento do mesmo autor e assenta num estudo
do Movimento da Escola Moderna (MEM), partindo da óptica dos que a ele se
dedicaram, numa tentativa de percepção do contexto humano e social onde se
insere o MEM (p. 15).
A obra de Pedro González está organizada em duas partes principais: uma
primeira parte onde revela o tema, os objectivos e a metodologia utilizada na
investigação; uma segunda parte, que apresenta uma breve perspectiva histórica
do MEM e a análise dos dados recolhidos. Nesta segunda parte do livro, o autor
divide a análise dos dados em dois capítulos: um, com incidência na
caracterização das pessoas estudadas; outro, mostra as perspectivas destas
quanto ao MEM.
Esta tese de doutoramento parte de uma investigação qualitativa e
interpretativa, onde a recolha de dados foi realizada através da análise
documental de material escrito e de entrevistas a professores que pertencem ao
MEM e que, de certa forma, participaram na sua construção. O autor chama-lhes
históricos. Entre eles, contam-se figuras que vivenciaram momentos-chave do
nascimento e crescimento do MEM. Por isso, o método autobiográfico foi também
utilizado pelo investigador em algumas partes das entrevistas.
Segundo o autor, o estudo apresentado centra-se na análise dos contributos dos
professores e na caracterização de um movimento pedagógico português que ( )
tem investido no âmbito da formação de professores e na construção de
alternativas pedagógicas: o MEM. (p. 14). Pedro González defende que é
indispensável entender-se a visão dos membros do MEM, assim como as suas
falas, pois poderá ser nestas pessoas que reside a justificação para a
construção de formas diferentes de pedagogia e de formação.
A necessidade de explicação de como se processa a formação no MEM é uma das
razões que levou o autor a escolher este tema de trabalho, visto que está
ligado intimamente com a sua realidade profissional. Também a construção de
instrumentos teóricos para a formação de formadores e a carência de explicações
sobre a forma de construção e desenvolvimento do movimento, que tem em vista
benefícios para os seus colaboradores, levou o autor a optar por esta questão.
As entrevistas feitas basearam-se em temáticas como as vivências dos
entrevistados no movimento, as fases históricas do MEM e as suas relações com
outras pessoas ou instituições exteriores. No decorrer da recolha de dados,
houve a necessidade de clarificar alguns conceitos inerentes à definição do
movimento.
O Movimento da Escola Moderna tem as suas raízes em Freinet e na Pedagogia
Institucional. Ao longo da sua concepção, sofreu influências de António Sérgio,
Álvaro Viana de Lemos e da Psicologia Social, com Vigotsky. Também Maria Amália
Borges Medeiros, João dos Santos e Rui Grácio contribuíram de forma
significativa para a pedagogia preconizada pelo MEM.
Todos estes pensadores tiveram um lugar de destaque na transição de um modelo
pedagógico centrado na criança (pedocêntrico), instituído por Freinet, para um
modelo sociocêntrico, aos poucos construído pelos membros do movimento
português, e centrado no desenvolvimento da pessoa como ser social, pertencente
a um grupo/turma: procura-se que a educação incida sobre as dimensões pessoal
e social dos indivíduos (p. 87).
O MEM surge em Portugal, com maior expressão, entre 1969 e 1974, depois de
vários anos adormecido devido à repressão instituída pelo Estado Novo. A
ideologia do movimento veio colmatar a necessidade de mudança que os
professores sentiam. Viam nele a saída para uma sociedade cujos alicerces se
fariam em valores como a liberdade e a democracia. Américo Poças, um dos
entrevistados de Pedro González, ilustra, desta forma, a sua entrada no
movimento: a minha adesão ( ) não veio tanto das técnicas ( ) mas sobretudo
deste princípio de uma escola para o povo, de uma escola de intervenção social,
onde os meninos eram cidadãos e faziam ali a aprendizagem intensa da cidadania
(p. 59). Os históricos do MEM, devido às suas vivências, ansiavam por uma
sociedade democrática. Segundo vários, a democratização da escola era o
primeiro passo a dar para a conquista deste ideal.
O movimento apresenta 12 postulados pelos quais se regem todos os seus membros
e que definem a orgânica pedagógica do mesmo. Estes postulados baseiam-se na
organização do trabalho com os alunos, fundamentada em princípios como a
cooperação, o trabalho diferenciado, a autonomia, as experiências das crianças
e a intervenção destas no meio onde vivem.
A organização participada no trabalho em sala de aula é a palavra-chave do
modelo pedagógico do MEM. A educação no movimento é entendida como um conceito
que se caracteriza por apelar à confiança no potencial de cada aluno; registar
positivamente os seus sucessos; possibilitar uma participação do mesmo na vida
do grupo/turma, tendo uma palavra a dizer sobre o que se passa na sala de aula;
e permitir o desafio constante no aprofundamento das aprendizagens. Desta
forma, a avaliação é encarada como um instrumento de registo das evoluções das
crianças e não como um destaque dos seus insucessos.
O envolvimento dos alunos nas práticas do quotidiano escolar é uma questão de
extrema importância para os professores do MEM. Todas as actividades que
orientam em sala de aula preconizam esta máxima. Este tipo de estratégia não
só possibilita a construção das aprendizagens de conceitos complexos, como o de
democracia, mas contribui também para o crescimento pessoal e social (p. 85).
Todo o trabalho pedagógico gira à volta das vivências, necessidades e
interesses das crianças. Falar e negociar sobre tudo o que diz respeito à
gestão de sala de aula, permite um envolvimento destas nas suas próprias
aprendizagens. O programa, os recursos, os materiais, o tempo, a avaliação são
itens discutidos e partilhados em grupo/turma. Uma escola inclusiva é uma das
finalidades deste tipo de dinâmica: A atenção aos pontos de partida, ritmos e
estilos de aprendizagens tem como objectivo o desenvolvimento integral de todos
e de cada um dos educandos (p. 113).
A relação pedagógica sustentada por estes professores tem como base a
afectividade. Procuram desenvolver nas crianças o espírito de entreajuda e
cooperação, assim como a autonomia e responsabilização, baseados num vínculo de
confiança e respeito entre eles e o docente.
As técnicas e instrumentos de trabalho utilizados pelos professores do
movimento visam alcançar os pressupostos a que se propõem. Entre eles, contam-
se o Conselho de Cooperação Educativa e o Plano Individual de Trabalho (PIT). O
primeiro possibilita a participação democrática na vida da turma e,
consequentemente, um desenvolvimento social e moral progressivo; o segundo é
um instrumento de planificação que se integra numa prática pedagógica, baseada
na responsabilidade do aluno pelos seus trabalhos individuais (p. 219).
A formação de professores sempre se constituiu como uma preocupação no MEM. O
seu modelo de formação fundamenta-se na autoformação cooperada, onde impera um
aguçado espírito crítico acerca do que envolve a prática pedagógica. Este tipo
de formação apela a uma reflexão constante numa perspectiva de análise profunda
do trabalho em sala de aula. Parte de uma dinâmica de encontros formais, onde
se discutem em grupo as necessidades e insatisfações dos docentes, procurando-
se a construção e reconstrução de estratégias (p.93) de forma a melhorar o
processo de ensino/aprendizagem. Pretende-se que os docentes adquiram uma
atitude reflexiva sobre as suas práticas, ao mesmo tempo que realizam uma
aprendizagem a partir do intercâmbio de experiências com companheiros de
profissão (p. 103).
Estes docentes valorizam a experimentação e a análise sistemáticas, já que
defendem que é na prática e na reflexão que podem crescer (p.92).
Uma das peculiaridades do grupo de professores membros do movimento reside no
facto de imprimirem uma forte tradição de transmissão oral do vivenciado pelo e
através do MEM. Segundo estes, o escrito não exprime de forma exacta as
práticas pedagógicas, pelo que a oralidade é o meio de comunicação a que dão
primazia. Os encontros formais e informais programados entre os docentes do
movimento são pontos de excelência para a oralidade. Sérgio Niza revela a Pedro
González: a escrita tem sempre autonomia em relação às práticas das pessoas
nunca um texto reproduz as práticas de ninguém. ( ) Nunca se escrevem as
práticas a escrita não tem capacidade para tirar fotografias em movimento,
(p. 162).
A necessidade de escrever sobre o MEM e o que a ele diz respeito surgiu quando
houve um aumento do número de professores participantes no movimento. Tornava-
se imperiosa uma ligação entre as práticas e a teoria, no sentido de as
contextualizar com as perspectivas de algumas áreas científicas, como as
Ciências da Educação ou a Sociologia. Esta necessidade decorre do início da
utilização do escrito como veículo de formação e da carência de um modelo de
racionalidade. Conforme os docentes entrevistados pelo autor, grande parte do
que se fazia no MEM fazia-se por emoção e não pela razão. Muitas vezes, ao
enquadrarem as suas experiências em teorias já existentes, percebiam o porquê e
o para quê das suas práticas. Era uma forma de consciencialização daquilo que a
intuição lhes dizia para fazer.
A escrita passou, então, a ter uma importância progressiva e significativa na
vida do MEM como ilustram as palavras de Marta Bettencourt, uma das
entrevistadas: o facto de ter de fundamentar a minha prática e de ter de a
escrever foi fundamental para crescer enquanto profissional e pessoa (p.
164).
A obra analisada nesta recensão destina-se a todos os profissionais da Educação
que desejem ter um conhecimento mais alargado sobre um movimento de professores
que se distingue dos outros por características muito próprias e uma história
de vida ímpar.
Da leitura deste livro fica-se com uma perspectiva pessoal e profissional das
pessoas que constituem o MEM, em especial dos históricos. A sua ideologia, a
sua entrega a valores democratizantes, as suas experiências enquanto pessoas e
docentes estão espelhadas em cada página que desfolhamos, revelando também o
que é e foi, afinal, o Movimento da Escola Moderna.
Denota-se, por parte do autor, um grande envolvimento emocional e afectivo com
as questões que aborda. Aliás, todas as citações das entrevistas realizadas
estão envoltas numa atmosfera de emoções, às quais o leitor não consegue ficar
indiferente. Esta dissertação de doutoramento respira o MEM: o seu
nascimento, as pessoas que o criaram, o seu pensamento autónomo e diferenciado,
os seus conflitos internos e externos, a sua cultura própria, as suas
influências, enfim, tudo o que faz e fez deste movimento numa das mais
importantes referências pedagógicas em Portugal. Podemos dizer até que se fica
contagiado pelos princípios renovadores e pela alma do movimento.
Apesar desta obra ser de leitura por vezes um pouco densa devido à sua
especificidade de trabalho de investigação, encontramos nela uma riqueza de
testemunhos que nos faz compreender o porquê de, em determinada altura, um
grupo de professores com ânsias progressistas se terem juntado e conversado
sobre as suas práticas pedagógicas, numa perspectiva de reflexividade, e de
como esta atitude mudou, em Portugal, o pensamento de um grande número de
docentes e deu início a uma revolução no sistema de ensino português.
Luísa Fernandes Esteves
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