O legado de Bush
No passado dia 28 de Julho, o Presidente George W. Bush aprovou a condenação à
morte de um soldado americano, condenado em 1988 por quatro assassinatos e oito
violações cometidos entre Abril de 1986 e Janeiro de 1987, que percorrera o
percurso de condenações e recursos de instâncias sucessivas da justiça militar
até chegar à mesa do comandante-em-chefe, cuja aprovação é precisa para
execução da pena. O caso não acabará aí. No mundo civil, se perdão ou comutação
tivesse sido pedido ao Presidente e este não houvesse satisfeito o pedido, o
soldado Ronald A. Gray seria executado brevemente mas a justiça militar é mais
complexa e seguir-se-ão recursos apresentados pelos advogados do condenado Gray
a tribunais civis. Com o público americano quase esquecido de Bush e a campanha
presidencial preocupada e animada por outras questões, o caso só foi notado em
alguns jornais porque o último Presidente a aprovar a sentença de morte
aplicada a um militar fora Eisenhower em 1957 (executada em 1961); em 1962, o
Presidente Kennedy comutara uma em prisão perpétua; a lei fora depois mudada.
E, embora o Presidente Reagan tivesse restabelecido a sentença de morte para
crimes de militares em 1984 e o Supremo Tribunal tivesse asseverado a
constitucionalidade da medida em 1996, não houvera até hoje mais condenações.
Mas não houve protestos de grupos opostos à pena de morte que, depois de
terminada a moratória decidida há anos pelo Supremo Tribunal, tem vindo a ser
aplicada nos estados da União que não a aboliram.
George W. Bush é partidário convicto da pena capital (por razões
eleitoralistas, durante a sua primeira campanha para a presidência, em 2000,
exerceu prerrogativa de governador do Texas para comutar a sentença de um
atrasado mental cujo processo ' como tantos outros no seu Estado ' estava
recheado de ilegalidades, mas foi vez sem exemplo) embora as suas preferências
pessoais não cheguem para explicar a decisão. Se os recursos civis que vão
agora começar levarem a pedido de graça ao novo Presidente dos Estados Unidos
não é certo que o resultado venha a ser diferente, seja quem for na altura o
inquilino da Casa Branca (tão-pouco é certo, bem entendido, que venha a ser o
mesmo).
Conto este episódio porque ilustra bem alguma dificuldade em separar Bush do
resto dos Estados Unidos quando se trate do que nele ou neles agrade ou
desagrade à maioria dos europeus: a pena de morte é anátema na Europa (para os
políticos, para os povos nem sempre...) e é perfeitamente aceitável para a
esmagadora maioria dos americanos, políticos e povo.
Julgo que toda gente estará de acordo em supor que, se o Supremo Tribunal
americano tivesse dado a vitória a Al Gore e não a George W. em Janeiro de
2001, a reacção oficial ao «9/11» ' que marcou o rumo das presidências Bush '
teria sido diferente, mas quão diferente e de que maneiras, já variarão muito
as opiniões. Se é certo que, na entouragede Gore, não havia a obsessão de
acabar com Saddam Hussein partilhada por tanta gente próxima de Bush e de
Cheney, o facto é que Hillary Clinton e muitos outros senadores democratas
votaram pela guerra e foram também a favor desta muitas pessoas fora do
Congresso que tinham trabalhado na Administração de Bill Clinton. Na realidade,
alguns dos opositores mais radicais da invasão do Iraque foram republicanos,
como Brent Scowcroft, antigo conselheiro nacional de Segurança de Bush pai.
(Deve dizer-se em abono da verdade que muitos dos apoiantes da guerra não
esperavam que, depois da ofensiva inicial brilhante, viesse incompetência tão
egrégia e de tão fatídicas consequências no exercício da ocupação, desde o
exíguo número de tropas colocadas no Iraque até ao consentimento da desordem
nos primeiros dias e à dissolução das Forças Armadas iraquianas e saneamento do
seu pessoal pouco tempo depois. Que esses erros monumentais tenham sido
deixados impunes revela, apesar da complexidade da matéria, falta de análise
lúcida e de clareza de comando da Administração.)
Além desta dificuldade há outra ' lembrando a resposta atribuída a Chu En-Lai
quando lhe perguntaram quais as principais consequências da Revolução Francesa
de 1789: «É cedo de mais para dizer.» No Iraque, por exemplo, a chamada
surgetem vindo a dar resultado e não se deve excluir que a reconciliação
xiitas/sunitas que começou a verificar-se nos últimos tempos (bem como uma
reconciliação xiita/xiita, mais incerta neste momento do que a anterior) venha
a vingar e a permitir a sobrevivência de um Iraque inteiro, mais democrático no
seu método de mudar de dirigentes do que os países da vizinhança (excepto
Israel) e muito menos autoritário, violento e repressivo do que o regime de
Saddam Hussein. É claro que o mapa geopolítico da região terá sido radicalmente
mudado, com implicações estratégicas de monta. Nomeadamente, a Administração
Bush, ao destruir o regime de Saddam no Iraque e o regime dos taleban no
Afeganistão, libertou o regime iraniano de uma tenaz sunita temível, com um
braço de audácia fanática em Cabul e o outro braço, militarmente forte e bem
relacionado na vizinhança, em Bagdade. Teerão vive hoje com um desafogo que não
tinha antes da expedição da Al-Qaida a Manhattan e ao Pentágono (atempadamente,
de resto, oferecera os seus préstimos a Washington na luta contra os taleban).
Se isso será bom ou mau para os interesses americanos ' e europeus, que neste
domínio como noutros com eles estão entrosados ' depende de como as relações
com o Irão progredirem. Entre aqueles americanos (e israelitas) convictamente
alarmados que, apesar dos riscos políticos e militares da operação, querem ir
bombardear, de preferência antes de chegar à Casa Branca um novo presidente, e
outros americanos, europeus (e israelitas) que julgam que uma solução negociada
no quadro das Nações Unidas é possível ' embora com o credo na boca, porque nem
russos nem chineses têm mostrado ser de fiar nesta saga ' os segundos têm ganho
algum terreno ultimamente: Washington agora manda gente sua a negociações com o
protagonista que restava do Eixo do Mal. A estimativa do futuro depende de
certa maneira de como se olhe para o copo: quem o considere meio cheio em vez
de meio vazio, poderá visionar um Irão mais próximo de valores e interesses do
Ocidente nos arranjos políticos internos e nas relações internacionais do que,
por exemplo, é hoje a monarquia saudita. Se as coisas forem por esse caminho,
dentro de dez anos o Médio Oriente será menos ameaçador para as conveniências
europeias e americanas e para a estabilidade do mundo em geral do que o foi
aqui há dez anos, isto é, por linhas tortas a invasão e ocupação do Iraque
terão escrito direito e levado ao estabelecimento de regimes menos indecentes e
perigosos ' para os seus e para os outros ' do que o que vigorara em Bagdade
sob Saddam Hussein. Poderia é claro discutir-se até vir a mulher da fava se os
horrores intermédios provocados pela invasão haviam valido a pena e não se
teria chegado a esse melhor estado de coisas usando vias menos brutais.
Quanto à «Guerra contra o Terror», esta sofre desde o começo da sua denominação
absurda ' o terror é só um método e há requisitos para o uso do termo «guerra»
que não estão preenchidos neste caso ' e de um falhanço espectacular, ao mesmo
tempo objectivo e simbólico: Osama bin Laden continua a monte e a mandar
ameaças, o que não abona das capacidades antiterroristas americanas e
entusiasma a rua árabe (menos agora do que aqui há poucos anos porque a
barbaridade da Al-Qaida contra outros muçulmanos não tem caído bem e cada vez
mais grupos islamitas se distanciam dela). A guerra no Afeganistão, de resto,
mais bem fundamentada do que a do Iraque, tão-pouco foi levada a bom termo:
também nela não se usou a força precisa, se escolheram mal aliados e se
ignoraram mais de mil anos de história de resistência local. Na embalagem dessa
guerra, Washington aumentou a sua ajuda ao Paquistão, apesar de posições
ambíguas de políticas e serviços secretos paquistaneses. Entretanto, num acto
raro de visão, fez um acordo nuclear com a Índia que é ' nunca será demais
repeti-lo ' a maior democracia parlamentar do mundo. Por outro lado, não tornou
a haver ataques terroristas aos Estados Unidos, desenvolveu-se cooperação muito
eficaz entre os serviços de informação europeus, de outros países e americanos
que tem permitido desmantelar redes e frustrar planos nefastos (por exemplo, o
de abater dez grandes jactos comerciais sobre o Atlântico Norte no mesmo dia) e
nenhum grupo terrorista se apropriou de armas de destruição maciça.
Quanto às outras relações de Bush e das suas duas administrações com o resto do
mundo, a questão de Israel e da Palestina é aquela onde a sua acção ' ou falta
dela ' foi mais nociva. Sabe-se quais são os passos que cada um dos dois lados
tem de dar para que se caminhe no sentido de um modus vivenditolerável que
possa um dia levar à paz ' retirada de Israel para as fronteiras de 1967;
admissão da existência do Estado de Israel e renúncia à violência contra este '
e sabe-se também que não haverá progresso na questão sem intervenção dos
Estados Unidos: ninguém mais tem influência e força para obrigar as duas partes
a dar esses passos. Os Estados Unidos foram sempre o melhor aliado de Israel,
às vezes quase o único, os palestinos sabem e aceitam isso e as administrações
americanas que melhor encaminharam as coisas no sentido de um entendimento
foram as que levaram também em conta interesses dos palestinos (incluindo a de
Bush pai). Ora apesar de ter declarado a necessidade de um Estado palestino,
Bush, ou para satisfazer a sua clientela eleitoral evangélica, crente em
profecia que dá para sempre aos judeus terras que estes ocupam ilegalmente
desde a guerra de 1967, ou por ele próprio acreditar na profecia, não exerceu
sobre Israel a pressão necessária para um compromisso, deixando a direita mais
radical ir ganhando poder em Israel e, inversamente, o extremismo islâmico ir
ganhando apoio entre os palestinos (o Hamas consolida cada vez melhor o seu
controlo de Gaza). Essa recusa constante de intervenção significativa desde
Janeiro de 2001 deixará a região em muito pior estado do que no fim da
presidência Clinton ou mesmo em Dezembro de 1992 quando o pai Bush terminava o
seu mandato. Entre as muitas tarefas de recuperação do papel e da influência
dos Estados Unidos no mundo de que o próximo inquilino da Casa Branca deverá
ocupar-se urgentemente a partir de Janeiro, acudir à questão de Israel e
Palestina será uma das primeiras.
Quanto ao terceiro membro do Eixo do Mal, a segunda Administração Bush emendou
a mão da primeira e, em vez de ameaças vãs e declarações bombásticas, dedicou-
se ao trabalho de equipa pertinaz e reflectido que a questão nuclear norte-
coreana exige, tendo obtido até agora alguns resultados satisfatórios e
acentuando os méritos de quadro multilateral para abordagem de certos
problemas.
Em África e na América Latina a acção da Administração Bush foi positiva: na
primeira deu ajuda substancial à luta contra a sida que é, quer se queira quer
não, um problema fulcral do continente; na segunda, a despeito de barragem
quase constante de retórica antiamericana (e anti-Bush) ajudou a acantonar
Chávez e a promover Uribe e estabeleceu relação estável e frutuosa com Lula.
Sendo o Brasil, de longe, o parceiro latino‑americano mais vantajoso para os
Estados Unidos e os Estados Unidos o maior investidor e role modelda região, o
entendimento convém tanto ao inquilino da Casa Branca quanto ao inquilino do
Palácio da Alvorada.
Duas relações historicamente importantes que se projectam no futuro ' com a
Europa e com a China ' começaram muito mal com Quioto e a guerra no Iraque, por
um lado, e escaramuça aérea embaraçosa no mar da China, por outro, mas acabaram
menos mal. Bush, amparado pelas chegadas de Merkel e Sarkozy ao poder e avisado
pela experiência da negociação frustrada da ronda de Doha deixa ao seu sucessor
um ambiente desanuviado quando for a vez de este se sentar à mesa com os vários
representantes avalizados da União Europeia (o número de telefone único para
onde ligar continua a não existir). E as contradições inevitáveis ao tratar com
a China ' direitos do homem e interesses comerciais; relações bilaterais e
equilíbrio regional; Taiwan ' levam Bush a dar uma no cravo, outra na
ferradura, indo assistir à abertura dos Jogos Olímpicos depois de ter fustigado
dias antes a atitude oficial chinesa quanto ao exercício de direitos humanos
(tal como entendidos no Ocidente). Em suma, vai navegando à vista que é a
melhor maneira de prevenir naufrágios e não se tem dado mal com isso.
Quioto foi pomo de discórdia, o que talvez tenha trazido vantagens a todos, por
levar a revisões do problema e à procura de melhores métodos não só de avaliar
alterações climáticas, mas sobretudo de lidar com elas de maneiras
economicamente comportáveis. A tentação milenária de chegar ao Paraíso através
de um Inferno intermédio, tão cara a entusiastas da felicidade sobre a Terra,
tem vindo a levar um rombo. Contribuições estaduais americanas apoiadas em
indústrias de ponta e esforços europeus de avaliação mais exacta de condições e
circunstâncias sugerem que se possa vir a delinear um regime pós-Quioto
acordado por todos. A oposição de Bush a Quioto era, de resto, largamente
partilhada nos Estados Unidos; Clinton, que assinara o protocolo, sabia que, no
Senado, este seria um nado-morto.
Guardei para o fim o mal maior feito pelos oito anos de Bush à chamada
comunidade internacional ou, melhor dito, a todos nós. Desde 1945 que os
Estados Unidos haviam sido não só um resoluto detentor de força física
suficiente para desencorajar quem com eles se quisesse meter ' durante a maior
parte do tempo, a urss fora, nessa matéria, a fonte principal de preocupação ',
mas também um padrão moral de comportamento (mais do que os grandes aliados
europeus, marcados por passados coloniais). Nesses dois pilares se apoiara,
primeiro que tudo, o chamado mundo livre, e eles continuaram a vingar como
referência e seguro mesmo depois do colapso da urss. Ora Guantánamo, Abu
Grahib, tortura de presos, mentiras e ilegalidades ligadas à apresentação do
risco que o Iraque representava para a paz mundial (bem como outras
ilegalidades da Administração, nomeadamente a politização indevida de certos
sectores do funcionalismo público) deram um enorme golpe ao lado moral da
construção e afundaram os Estados Unidos nas tabelas de estima no estrangeiro
que agências especializadas elaboram e actualizam há muitos anos.
Em princípio, de volta desses pegos insondáveis os Estados Unidos levariam
muito tempo até chegarem à superfície. E todavia... Se a idolatria de Obama na
Europa for indicador fiável e ele ganhar a eleição, esse regresso seria muito
mais rápido do que o que se teria antecipado. Embora, evidentemente,
acompanhado pela descoberta de que, apagadas as tropelias indecentes da
Administração Bush, interesses americanos e interesses europeus (ou russos, ou
chineses, ou indianos, ou brasileiros) nem sempre coincidirão e o Presidente
dos Estados Unidos foi lá posto para defender os dos seus compatriotas e não os
nossos ' quer se chame Barack Obama quer não.
A concorrência implacável no mundo globalizado aproxima Estados Unidos e Europa
mais do que os anos entre a queda do muro de Berlim e a queda das torres de
Manhattan fizeram porque há interesses comuns mais visíveis agora e em comum
melhor defendidos. Mas restarão diferenças importantes que virão ao de cima,
esteja quem estiver na Casa Branca ' e não só quando chegar à Sala Oval outro
pedido de confirmação da condenação à morte de um soldado.
NB : Não falei de subprimesporque Bush teve nelas poucas e indirectas culpas,
nem do resto da política interna. Mas deve registar-se o ferro conservador
marcado no Supremo Tribunal.
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