Os estados na União
Os estados na União
Bernardo Pires de Lima
ANAND MENON
Europe: The State of the Union
Londres, Atlantic Books, 290 páginas
O rácio não deve andar muito longe disto: por cada dezena de livros publicados
sobre a União Europeia (UE), apenas um merece alguma atenção e até o dispêndio
de alguns euros. A fornalha de propaganda maçadora mistura-se com a linguagem
da burocracia e das instituições europeias. As odes mitológicas alternam com as
análises catastrofistas que chegam a ridicularizar meio século de história
política e económica entre países que até então se entretinham a congeminar
estratégias para verem quem detinha o prémio de maior facínora dos tempos
modernos.
Portanto, cada vez que alguém ousa fazer uma análise séria, realista e
necessariamente céptica de um projecto «à frente do tempo», como é a UE, deve
merecer alguma da nossa atenção. Em último caso, por exactamente se debruçar
sobre uma construção política desfasada do mundo real, hobbesiano, que de
quando em vez tenta alcançar alguma estabilidade por via de alianças mais ou
menos duradouras, cínicas por definição, e maioritariamente de carácter
económico. Portanto, uma primeira salva de palmas para aqueles que escrevem
sobre realidades fora do seu tempo, sobre a maldita política europeia tão
carregada de artefactos jurídicos e jargões cheios de nada. Não é fácil
simplificar a UE ao que de facto ela é: relações de poder entre estados que
passaram a definir o seu interesse nacional como fazendo parte de uma esfera
mais alargada, porque partilhada. O argumento de Menon é este: a UE é um
«acidente da história», forjada num contexto em que os estadistas encaravam as
instituições ou organizações internacionais como os garantes da paz e da
segurança. Ao longo do tempo, tornou‑se mais complexa. Mas esse caminho foi
plenamente assumido pelos seus membros, ou seja, pelos estados que a compunham
ao abrigo dos respectivos entendimentos sobre os interesses nacionais de cada
um.
De facto, tentar compreender a construção europeia até ao estado actual da
União é um exercício que muitas vezes fica esquecido quando apressadamente
queremos emitir um juízo sobre a UE. Do tradicional divórcio entre as
instituições e políticos europeus e eleitores ' como se isto fosse exclusivo da
UE ', até ao número de «eurocratas» que trabalham nessas instituições ' como se
os burocratas fossem um exclusivo de Bruxelas ou Estrasburgo ', tudo serve para
tornar ridículo e simplista um quadro que, se calhar, por ser tão singular
inibe o mais brilhante dos analistas de parar para pensar no que realmente foi
atingido nestas décadas: um sistema político interestadual, com dinâmicas
próprias, feito por países com distintos trajectos históricos e cujo
entendimento das suas relações de vizinhança mais próxima os conduziu a
determinadas decisões. Decisões essas vinculadas à avaliação dos respectivos
interesses nacionais.
Não é de certo fácil aceitar historicamente que a França e a Grã-Bretanha
tenham aceite uma Alemanha reunificada, nem tão-pouco olhar para depois de
1989, onde todo o antigo espaço de influência soviética seria absorvido pela
«maldita» UE. Mas estes foram mesmo dois momentos marcantes na história do
século xx e dois cenários que ajudam a exemplificar o âmbito da construção
europeia.
POUCOS, MAS BONS
Tendo em conta a literatura mais recente, podemos enquadrar este The State of
the Unionnum restrito grupo de obras relevantes para o entendimento político da
União. Desde logo, Simon Hix e What's Wrong with the European Union & How
to Fix it.
O autor é já um clássico da linha provocadora e crítica do caminho levado pela
UE, sobretudo pela sua «crise de legitimidade» que, segundo ele, ainda agora
começou. Em seguida, e numa linha que acentua a encruzilhada europeia face aos
desafios que as potências emergentes representam, dois italianos radicados na
academia norte-americana (um mixexplosivo), procuram identificar alguns pontos
críticos onde a UE pode continuar a ser relevante no plano internacional e
outros onde, se não tomar algumas decisões estratégicas vitais, corre o risco
de definhar globalmente. Alberto Alesina e Francesco Giavazzi ajudam-nos nestas
respostas emThe Future of Europe: Reform or Decline. Sobre a concepção
«imperial» da construção europeia e o significado dos sucessivos alargamentos,
convém não perder Europe as Empire, de Jan Zielonka. Por fim, e para não deixar
de lado os excitantes exercícios de cepticismo europeu, não devemos deixar
passar The End of European Integration: Anti-Europeanism Examined, de Paul
Taylor.
No entanto, este autor parte dos dilemas europeus desta última década para
prescrever os desafios a um renovado projecto europeu, onde a diluição da
relevância dos estados não seja promovida, mas onde políticas comuns como a da
defesa sejam definitivamente uma realidade.
Neste conjunto de livros que o actual debate europeu relevou para primeiro
plano, Anand Menon tem uma palavra a dizer porque simplesmente procura
respostas ao momento actual com doses cavalares de realismo. E este facto, num
quadro «pós-moderno» definidor da UE (como lhe chamou Robert Cooper), merece
por si só um sublinhado particular. No fundo, o que Menon nos vem dizer é que
tanto os «europeístas convictos» como os «eurocépticos» são perniciosos para
qualquer leitura relevante dos vários domínios europeus, porque apenas mascaram
um debate que vive sob uma parafernália conceptual entre a criação de um
«super-Estado» e o secreto desejo do regresso à política do século XIX.
Por outras palavras, o realismo de Menon traduz-se num olhar para o que existe
na política europeia e no modo singular de tudo o que foi atingido ' com
particular ênfase para a criação de um mercado comum e uma moeda única (até
esta não adoptada por todos) ' negando as teorias dos eufóricos pós-Guerra Fria
mas, também, dos ingratos que não perdem uma oportunidade para sacudir
responsabilidades nacionais para as «diatribes» de Bruxelas. No fundo, Anand
Menon coloca no mesmo plano idealista estas duas categorias, porque se recusam
a aceitar a realidade.
AINDA HÁ POLÍTICA NA EURO PA?
Robert Kagan, no seu pequeno mas acutilante livro The Return of History and the
End of Dreams, considera que o mundo fora da UE está mais próximo do quadro de
poder inspirado no século XIX, enquanto que a realidade interna europeia está
num século XXI desprovido destas intempéries. Em bom rigor, isto não se passa
assim, e este é também um dos grandes argumentos de Anand Menon: os equilíbrios
de poder continuam a marcar a política europeia e a UE serve, antes de mais,
para complementar o Estado-Nação, e não para o anular. O que existe, segundo o
autor, é um constante jogo entre governos, entre instituições europeias
compostas por representantes dos estados-membros e que, por via dessas
características, alimentam os equilíbrios de poder europeus. No fundo, a UE
continua a ter as características da política internacional, embora os estados
tenham optado por se degladiarem através de um quadro institucional mais ou
menos balizado (o que aumenta o fervor legislativo e burocrático,
característica não exclusiva da União, como bem sabemos) e não pelos mecanismos
que os outros usam ou a Europa tradicionalmente privilegiava: as armas. O
problema não está tanto no que se passa dentro da União, mas sim nas opções que
esta tem de tomar sobre a forma como se quer relacionar com os novos pólos de
poder regionais: a China, a Índia, a Rússia e os EUA.
O livro de Menon tem uma linguagem pouco ou nada académica. Este facto deve,
por si só, motivar a leitura. Por outro lado, ao ligar constantemente as
vontades políticas dos estados às políticas europeias concertadas, acaba por
promover de forma pedagógica a verdade dos factos: a história europeia do pós-
guerra é profundamente vincada pela definição pura e dura da velha escola
realista, da prevalência dos estados e dos seus interesses nacionais. A única
pequena‑grande diferença é que estes passaram, pelas razões conhecidas de
todos, a contemplar opções políticas e económicas comuns, mais ou menos
duradouras, mais ou menos estruturadas. É sobretudo por responsabilizar os
estados e os seus eleitos do que de bom ou mau a UE foi produzindo, que este
livro merece ser lido. De preferência logo no primeiro ano da faculdade.
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