Um Incêndio Vindo do Oriente
Um Incêndio Vindo do Oriente
Marcel Luís Paiva do Monte
Tom Holland.
Fogo Persa. O Primeiro Império Mundial e a Batalha Pelo Ocidente.
Lisboa, Alethêia, 2006, 383 páginas
Autor de vários best-sellers no domínio da história antiga, Tom Holland
licenciou-se em Inglês e Latim no Queen's College, Cambridge. Apesar do seu
percurso académico, optou por desistir do doutoramento para dar largas à sua
vocação como romancista, conforme se pode constatar pelos diversos títulos de
ficção que já publicou. A divulgação histórica também o atrai: adaptou para a
bbc diversos autores clássicos, entre os quais Tucídides e Heródoto, e assinou
trabalhos como Rubicão, a sua mais famosa obra historiográfica (entretanto
também editada pela Alethêia), semelhante em estilo a este Fogo Persa, que
agora recenseamos.
PREOCUPAÇÕES CONTEMPORÂNEAS
O autor conta-nos, no prefácio, que alunos ingleses de História, de um
professor seu amigo, se insurgiram, com «gemidos de angústia», contra a troca
de um seminário, habitual no último ano do curso, por outro tema, «tão alheio e
tão distanciado das preocupações contemporâneas». Tratava-se de substituir o
estudo da ascensão de Hitler pelas Cruzadas. Segundo Holland, a pertinência
deste último tema, estruturante para as relações entre o Ocidente e o mundo
islâmico, só surgiu na consciência destes indignados pupilos a partir do dia 11
de Setembro de 2001 e dos acontecimentos que lhe sucederam. Subitamente,
parecia que a tese do «choque de civilizações» estava a ser verificada
materialmente: o ataque ao World Trade Center seria a prova. Da insanável
querela entre cristãos e muçulmanos, ao confronto entre gregos e persas, que o
autor narra, foi apenas um pequeno passo. Assim se justifica a génese deste
livro, considerando a boa oportunidade para ser publicado: o événement de 11 de
Setembro teria posto a nu estruturas milenares, reais ou fictícias, que dariam
forma à eterna dicotomia entre Ocidente e Oriente. Daí a escolha de Tom
Holland, que contrapõe assim o «fogo grego» das batalhas navais da Antiguidade
a um outro «fogo», vindo da Pérsia em direcção à Europa. Este livro e a
reflexão mais lata que ele suscita, representa uma tentativa de revisitar a
história das relações entre o Ocidente e o Oriente a partir do momento que é
geralmente assumido como seu «fundador». O mérito da escolha do tema é
indiscutível não só pelo seu interesse, mas também pela sua pertinência.
HISTORIOGRAFIA OU ROMANCE?
Contudo, não se pode classificar este livro como «historiográfico», muito menos
como trabalho académico, devido ao seu propósito de divulgação. O texto é uma
narrativa pura, mas, embora entrecortado com citações de fontes documentais,
enquadradas de forma correcta, falta-lhe o aparato crítico que aprofunda as
problemáticas e rejeita a simplificação. Holland, pelo contrário, abstém-se de
polémicas, não se enredando nas complexidades da arqueologia, história ou
filologia da Antiguidade. O livro é, se assim o podemos chamar sem menosprezo,
um subproduto da historiografia; rentável, é certo, mas falho do rigor que lhe
é exigido. Pelo dramatismo que Holland coloca na sua linguagem, talvez possamos
definir este livro como uma obra de história para ser lida «como um romance».
Se o leitor gosta de literatura, Michelet, Herculano, ou até mesmo algumas
biografias de -Stefan Zweig, fornecerão melhores exemplos de mestria e beleza
literária associadas à história; mas, apesar disso, Fogo Persa é uma leitura
cativante que procura reconstituir, não sem alguma «imaginação» típica dos
romances históricos, as acções e as motivações dos agentes históricos em
disputa.
GREGOS E «BÁRBAROS»
O autor começa por narrar as origens da expansão medo-persa e da sua
estruturação como império, remontando aos seus precursores assiro-babilónicos,
dos quais os aqueménidas extraíram muitos elementos da sua organização e
cultura política. Depois, conta-nos a génese de Esparta e a caracterização da
sua peculiar e rígida sociedade, para em seguida narrar o processo de formação
da demokratia ateniense e das suas principais fases e intervenientes. Até aqui,
tratou-se de uma espécie de apresentação das «personagens», colectivas e
individuais, que compõem o livro. O ritmo da narrativa começa a acelerar e a
encher-se de maior dramatismo, acompanhando a tensão provocada pela sucessão de
acontecimentos que, decerto, marcara historicamente as invasões persas contra a
Grécia. O combate nas Termópilas, os altos e baixos da armada ateniense e dos
seus aliados, são descritos com vivacidade, tornando-nos sensíveis às agruras
dos defensores da Hélade e das suas populações. Em verdade se diga que Holland
não caiu no erro, crasso e secular, de glorificar a democracia e liberdade
ateniense, numa oposição maniqueísta ao «despotismo» e «luxúria» oriental. Só
por isso, o livro merece um elogio. Parece-nos, contudo, perigosa a atribuição
que o autor faz aos estados gregos, particularmente Atenas e Esparta, de uma
natureza «terrorista», enquanto inimigos irredutíveis do Império Aqueménida.
Esta oposição, entre os gregos que assumem um papel de perturbadores, e os
persas, pilares de uma ordem política e moral que se pretendia estável e
promotora da normalidade da vida e da prosperidade, estrutura todo o livro. O
Império Aqueménida constituía, de facto, um modelo de dominação política
universal fundamentada numa noção de ordem cósmica, que não era, aliás, nova no
Próximo Oriente, na qual a agregação harmoniosa das inúmeras e diversas etnias,
culturas e religiões, presentes no espaço do império, era um ideal que a
etnoclasse medo-persa procurava concretizar. Apesar disso, é óbvio o
anacronismo e o exagero na aplicação do conceito, tão actual, de terrorismo, a
esta realidade: se para os persas a turbulência causada pelos habitantes das
franjas ocidentais do império, no Egeu e na Jónia, era, de facto, uma ameaça à
ordem trazida pelos aqueménidas, que por essa razão sentiam o dever de levar aí
a guerra para restabelecer a paz, entendida como ordem, isso não atribuía um
estatuto especial e ímpar de «malfeitores» aos gregos. Dario ou Xerxes não
teriam insónias pensando em como derrubar a perigosa e subversiva ideia de
democracia, pois a sublevação e a revolta eram frequentes no seio das grandes
potências do Oriente Antigo. Nem, na verdade, a democracia fora pensada, na sua
génese, apenas como um ideal completamente despido de calculismo e pragmatismo
político, alheio às lutas facciosas na Atenas do século v a. C. Importa não
cometermos o erro de projectar no passado, acriticamente, certos conceitos da
actualidade. Se a história é sempre a visão do presente em que vivemos sobre o
passado que reconstruímos, há, contudo, limites que, uma vez ultrapassados,
raiam a irresponsabilidade e o descrédito.
VIRTUDES E VÍCIOS
Algumas das virtudes da obra são claras: para o público em geral, Fogo Persa é
uma boa leitura, com uma escrita de qualidade, repleta de um dramatismo que
confere vividez aos factos e ao tempo cuja história conta. Não peca demasiado
por irresponsabilidade científica, daquela que teima em difundir interpretações
erradas ou deturpadas. Cremos, portanto, que é uma excelente obra de
divulgação, vocacionada para um público alargado, agradável de ler, embora lhe
falte o rigor que se exige a uma obra historiográfica. Mas também enferma de
vícios: o uso excessivo, abusivo até, de adjectivação e juízos de valor que
atribuem características altamente subjectivas a pessoas e a comunidades,
disfarça mal as inúmeras lacunas e respostas provisórias que a historiografia
encontra. É de evitar afirmar, num trabalho historiográfico, por mero capricho
literário, que Argos era uma potência «tão impaciente e arrogante como Esparta»
(p. 90), que os eupátridas eram snobs (p. 117), ou mesmo que os soldados do rei
persa, esmagados em Maratona, «viveram amalgamados como um bando de alimárias,
soltando guinchos animalescos, estrídulos e furiosos que nada significavam» (p.
200). Esta frase do autor, exagerada e desnecessária, reflecte apenas o
preconceito helénico em relação a todos os barbaroi, civilizados ou não. Por
outro lado, a reflexão que esperávamos acerca destas primor-diais relações
entre o Ocidente e o Oriente fica aquém das expectativas: colocar lado a lado,
na mesma narrativa, a descrição de duas civilizações diferentes e do seu
confronto nas Guerras Pérsicas, não é suficiente para se obter uma síntese
compreensível sobre este mito fundador de uma dicotomia geográfica e cultural
tão antiga.
Quanto à tradução: não precisámos de consultar a edição inglesa para saber que
o termo «escolástico» não se adequa a nenhum dos casos em que foi aplicado no
livro, para verter o termo scholars para português. «Investigadores»,
«estudiosos», qualquer um destes termos, entre outros, seria melhor do que este
com que designamos um dos principais esteios do pensamento medieval. Para além
disso, gralhas e incorrecções menos graves pontuam esta edição, retirando
alguma qualidade ao texto original. Por exemplo, «Acádia» é um termo a evitar:
prefira-se Acad, Agade ou Akkad. O mesmo vale para «as» Zagro: prefira-se «os»
(montes) Zagros. Faltou claramente a disponibilidade, por parte da editora,
para encomendar uma revisão científica mais cuidada.
Ficaríamos satisfeitos se o leitor educado, mas não especializado, estivesse
avisado dos riscos que corre ao tomar contacto com este género de literatura
histórica de divulgação. É preciso espírito crítico para colocar em perspectiva
a relevância de teses como a do «choque de civilizações», ou comparações entre
a «democracia» e liberdade ateniense e o «despotismo oriental», conceitos e
preconceitos vigentes desde Heródoto. Só depois dessa reflexão deverá o leitor
dedicar umas quantas horas a esta obra cativante, aqui e além inteligente, mas
despudoradamente superficial.
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