Razões de um aliado
Razões de um aliado
Henrique Burnay
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BERNARDO PIRES DE LIMA
Blair, a Moral e o Poder
Lisboa, Guerra & Paz, 2008, 253 páginas.
Duas das principais virtudes da primeira obra de Bernardo Pires de Lima,
Blair, a Moral e o Poder, são também duas qualidades do próprio autor. Em
primeiro lugar, a recusa da periferia intelectual. Naquilo que escreve
regularmente, nomeadamente em blogs e, mais relevante, neste livro, Pires de
Lima aborda um tema do maior interesse para a compreensão das relações
internacionais dos últimos anos, e talvez mesmo dos anos que aí vêm, sem se
sentir limitado por este não ser um tema português nem sequer um tema falado em
português. O facto de um académico nacional se sentir impelido a escrever uma
análise, publicada em livro, da política externa de um líder britânico, sem que
haja nisso uma agenda portuguesa, é um facto que merece destaque. A outra
virtude desta obra que corresponde a uma qualidade do seu autor é a própria
escrita. O Bernardo Pires de Lima, autor de um estudo académico, como é esta
obra, escreve tão bem como o Bernardo Pires de Lima que lemos noutros lugares.
Se essa virtude o tornar mais lido, tanto melhor. Entretanto, ser mais legível
do que muitas vezes acontece com alguns escritos académicos é já de si
virtuoso.
Quanto ao conteúdo, aquilo que sobressai é que há aqui uma interpretação do
tempo de Blair feita com suficiente distanciamento para permitir uma análise
teórica e uma leitura contextualizada dos acontecimentos sem, no entanto, ser
demasiado fria, permitindo assim que a memória das discussões dos últimos anos
regresse, mas agora de forma mais teórica e menos ideológica ou simplesmente
alinhada com esta ou aquela posição.
Todos os tempos são interessantes, mas aquele que Blair passou no número 10 de
Downing Street tem, de facto, um interesse específico que fica muito bem
destacado nesta obra. Para além da revolução ideológica que introduziu nas
políticas nacionais do Labour Party, Tony Blair realizou, também, uma
verdadeira revolução na política externa do Partido Trabalhista. Isso, mais do
que o nascimento de uma nova doutrina externa britânica, como tentaremos fazer
notar, é o que marca este período e que resulta evidente na leitura deste
livro.
Não é certo que o mundo se reja hoje por normas diferentes, nem é líquido que a
moral e a ética que Blair queria que fossem marcas da sua política externa ' e
que Pires de Lima sublinha logo no título ' se tenham estabelecido ou sido,
sequer, os padrões de toda a sua acção, mas é evidente que o Partido
Trabalhista dificilmente voltará a ser o que era antes de Blair. Isso tanto é
verdade nas políticas internas, tema abundantemente tratado noutros lugares,
como na política externa, aqui retratada.
Para contextualizar devidamente o tema que escolheu tratar, Bernardo Pires de
Lima faz questão de nos recordar o pensamento dominante e as causas
determinantes da política externa britânica desde 1945 e as escolas de
pensamento que se digladiam em matéria de Teoria das Relações Internacionais,
filiando naturalmente o que irá ser o mandato de Blair nas doutrinas liberais.
Sobre o que foi essa política externa, é possível afirmar que Pires de Lima
identifica dois eixos. Um, a centralidade da relação anglo-americana,
comprovada pela leitura dos factos. O outro, a dimensão moral da política
externa, uma actualização da doutrina da Guerra Justa, manifestamente presente
nos textos políticos, mas cuja prova é difícil e, apesar do título, não é feita
na obra. Muito provavelmente arriscamos porque ela não é possível para lá do
domínio discursivo e de alguns momentos que claramente a sustentam (como é o
caso da intervenção no Kosovo, tão oportunamente aqui recordada). Um terceiro
aspecto reconhecido é a atitude de Blair face à Europa. Mais do que um
europeísta no sentido continental do termo, o seu europeísmo parece filiar-se,
como resulta deste próprio livro, na ideia de valor acrescentado para a Grã-
Bretanha, à semelhança da lógica que preside à relação anglo-americana.
Como se recorda em Blair, Moral e Poder a política externa Britânica do pós-
guerra, e sobretudo após o fim de facto do império, com a crise do Suez,
seguiu dois rumos fundamentais: uma sucessiva aproximação à Europa e uma
relação verdadeiramente especial, da parte dos britânicos, com os Estados
Unidos. Aquilo que Bernardo Pires de Lima demonstra é que Blair, contrariando a
vocação anti-americana e mais esquerdista, recorrente entre militantes e
chefias do Labour, ao assumir o poder segue uma linha de política externa,
constante que obedece ao axioma: quanto mais próximo dos Estados Unidos, mais
importante no Mundo, quanto mais importante no Mundo, mais importante junto dos
Estados Unidos. O que não é inteiramente uma novidade na política externa
britânica. Churchill noutro contexto e com outras prioridades seguiu-o,
Thatcher claramente seguiu-o e outros líderes britânicos seguiram-no também. O
que é original é o empenho com que esta linha de rumo é seguida por Blair e a
consequência que o primeiro-ministro britânico daí procura extrair. Pires de
Lima afirma mesmo, talvez exageradamente, que este foi o único período em que
a relação bilateral poderá ser descrita, em bom rigor, de «especial». Mas
aquilo que não é duvidoso é que a intensidade desta orientação é um claro
confronto ao que havia sido o discurso Labour, em particular durante a longa
oposição nos anos Thatcher e mesmo antes.
O outro eixo aqui identificado, e constante dos discursos políticos do líder
britânico, é o espírito missionário que define a política externa de Blair,
conforme afirma o autor. Sendo menos visível, conforme cremos, ainda assim, ao
recordar a doutrina por detrás da reforma do Foreign Office, o pensamento
dominante da elite dos conselheiros de Blair em política externa e, muito
significativamente, a intervenção no Kosovo, Bernardo Pires de Lima torna
evidente a existência desse fio condutor. A política externa do Labour de Blair
(e de Robin Cook, que partiu por causa do Iraque) tem como conceito central,
nas palavras de Cook recordadas pelo autor ( )fazer da Grã-Bretanha,
novamente, a força pelo bem no mundo.
Mais adiante, um pouco mais militante do que no restante do livro, mas sem
qualquer prejuízo para o rigor, Pires de Lima pega na questão do Iraque e
desenvolve-a com enorme interesse, procurando recordar o contexto, os
argumentos e as opções que se colocavam então. Longe da leitura simplista,
Pires de Lima recorda o discurso moral de Blair, para procurar acomodar a
intervenção no Iraque nesse segundo eixo da política externa britânica. Apesar
da qualidade dos argumentos, os factos não sustentam esta aproximação sem a
outra, de resto presente de novo no final do livro.
Quanto à questão de fundo, e resumindo-a, ela coloca-se da seguinte forma: é
manifesto que Blair identifica um conteúdo moral na remoção de Saddam. Mas os
restantes critérios para um intervenção militar desta natureza, tão bem
elencado a propósito do Kosovo, não encontram aqui acolhimento. Mais, se Blair
insistiu mais nas ameaça das ADM e menos na necessidade de um regime change,
se, conforme é aqui recordado, essa não era a linha de Blair, tudo indica que,
apesar de haver um juízo moral sobre Saddam, aquilo que moveu o governo
britânico terá sido, em última análise, entre os Estados Unidos e aqueles que
se lhes opunham, escolher os Estados Unidos. De resto, como Pires de Lima
recorda, havia leituras legítimas, inclusive no plano das decisões
internacionais, a favor de uma intervenção. De toda a forma, confrontado com os
factos e as alianças, Blair decidiu que rumo seguir. E regressamos ao que
sobressai como eixo prioritário da política externa britânica: a proximidade
relativamente aos Estados Unidos. Não por ser um satélite da política externa
americana, mas por ter consciência de que o papel de pivotal power, como
Blair afirmou, é o que melhor serve a quem já não pode ser Império nem tem
condições de superpotência.
Pergunta o autor: ( ) poderia a Grã-Bretanha ter-se oposto à guerra, como
fizeram a França e a Alemanha? ( ) poderia a Grã-Bretanha ter apenas enviado
tropas após a operação militar, como o fizeram a Itália ou a Espanha? ( )
poderia a Grã-Bretanha ter mantido a unidade europeia?. A todas estas questões
a resposta, segundo Pires de Lima, é não. E o seu livro explica porquê. Afinal,
terá sido Blair um liberal realista? O livro de Bernardo Pires de Lima é um
excelente contributo para esta discussão. O primeiro originalmente em
português.
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Assessor político no Parlamento Europeu, mestrando do Instituto de Estudos
Políticos da Universidade Católica Portuguesa e autor de uma coluna de opinião
sobre temas europeus. Anteriormente foi director adjunto da revista Grande
Reportagem e jornalista n'O Independente.
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