As manobras secretas de Washington no PREC
As manobras secretas de Washington no PREC
Maria Inácia Rezola*
BERNARDINO GOMES, TIAGO MOREIRA DE SÁ
Carlucci vs. Kissinger – Os EUA e a Revolução Portuguesa
Lisboa,
Dom Quixote,
2008, 492 páginas
A publicação, em 2008, da obra Carlucci vs. Kissinger – Os eua e a Revolução
Portuguesa teve um entusiástico acolhimento por parte da imprensa nacional. O
seu lançamento foi amplamente noticiado, proporcionando títulos como
"Carlucci comandou acções da CIA no pós-25 de Abril"1 ou
"Franco recusou uma intervenção militar em Portugal"
2
. A transcrição de passagens da obra, como aquela em que, em entrevista aos
autores, o ex-embaixador norte-americano confessa ter dirigido acções da CIA em
Portugal no Verão de 1975 – "Tudo o que a CIA fez foi sob o meu comando.
Qualquer acção que possa ter desenvolvido destinava-se a executar a política
dos Estados Unidos, que era apoiar as forças democráticas em Portugal. A CIA
era parte da equipa [da embaixada] e eles faziam o que lhes mandava" –
rapidamente chamaram a atenção da imprensa e do público. Depois de anos de
"esquecimento", o polémico Frank Carlucci volta à ribalta,
adensando-se a curiosidade sobre eventuais segredos da actuação norte-americana
durante a revolução portuguesa.
O CONTEXTO INTERNACIONAL DA REVOLUÇÃO PORTUGUESA
O interesse do estudo de Bernardino Gomes e Tiago Moreira de Sá transcende, no
entanto, o seu impacto mediático. Antes de mais porque vem colmatar uma lacuna
na historiografia contemporânea. Num momento em que cresce o interesse e se
multiplicam os estudos sobre a transição portuguesa, são poucas as obras que se
debruçam sobre a sua dimensão internacional. O norte-americano Kenneth Maxwell
teve o grande mérito de chamar a atenção para a importância dos factores
externos na evolução do processo revolucionário português: apesar de admitir
que "os factores internacionais só por si não explicam o resultado das
lutas sociais e políticas", para Maxwell "o contexto internacional
foi sempre um pano de fundo importante para os acontecimentos em
Portugal"3.
Tiago Moreira de Sá tinha anteriormente publicado Os Americanos na Revolução
Portuguesa (1974-1976) (Editorial Notícias, 2004), um estudo introdutório onde,
contrariando a tese dominante, procurava já fundamentar a ideia de que a
intervenção de Washington fora importante no contexto das lutas políticas do
PREC. Curiosamente, poucos meses antes da publicação deste Carlucci vs
Kissinger, o jornalista Nuno Simas reunira em livro as suas crónicas do Diário
de Notícias. Este Portugal Classificado com muitos e interessantíssimos
Documentos Secretos Norte-Americanos (1974-1975) fazia já empolgantes
revelações que, em muito, contribuíram para aguçar o interesse pelo tema.
A par do seu carácter pioneiro, a obra de Bernardino Gomes e Tiago Moreira de
Sá destaca-se pelo equilíbrio, rigor e meticulosidade. Fruto de um extenso
trabalho de investigação, o livro nasceu no âmbito de um projecto de
investigação patrocinado pelo IPRI – UNL e pela FLAD cujo objectivo último era
o de analisar a forma como os norte-americanos acompanharam a evolução política
portuguesa entre 1974 e 1976.
Apesar de, desde as primeiras páginas, os autores enfatizarem a ideia de que
não tiveram qualquer pretensão em escrever uma história da revolução
portuguesa, o certo é que essa história saiu amplamente beneficiada e renovada.
Isto porque os novos elementos e revelações de Carlucci vs Kissinger não só
conferem um novo "colorido", como ainda permitem interpretar de
forma diversa os acontecimentos já conhecidos e o papel dos protagonistas da
complexa transição portuguesa. Em suma, uma obra fundamental e incontornável
para todos os que se propõem estudar a transição portuguesa.
Neste contexto cabe enfatizar que uma das mais-valias da obra é o abundante
recurso a documentação de arquivo. Antes de mais dos arquivos norte-americanos
(National Archives, Ford Library e Library of Congress), muitos dos quais só
recentemente foram disponibilizados à consulta; depois, os nacionais
(Ministério dos Negócios Estrangeiros e Centro de Documentação 25 de Abril da
Universidade de Coimbra) e particulares. Sendo este um dos pontos fortes da
obra, é também neste domínio que cabem os poucos reparos ou observações
críticas que lhe podem ser feitos. Isto porque, entusiasmados com a
documentação encontrada, os autores por vezes se excedem na extensão das
passagens transcritas. Um problema facilmente - solucionável recorrendo a
extratextos ou remetendo para anexo esses mesmos documentos.
NOVOS DADOS SOBRE A REVOLUÇÃO
Merece também um elogio especial o trabalho de levantamento dos materiais de
imprensa, das memórias e testemunhos de protagonistas da Revolução e,
sobretudo, as entrevistas, directamente conduzidas pelos autores, a algumas das
figuras nacionais e norte-americanas que tiveram um papel de destaque nos
acontecimentos retratados nesta obra. Neste domínio, a maior proeza dos autores
reside provavelmente no facto de terem conseguido que, depois de décadas de
silêncio, Frank Carlucci fizesse revelações cruciais sobre a sua actuação em
Portugal. É pois fácil concluir que são muitas as novidades de Carlucci vs.
Kissinger e que, em muitos aspectos, elas transcendem o âmbito do mero
conhecimento da influência norte-americana na transição portuguesa. A título de
exemplo, podemos fazer alusão à interessantíssima descrição da personalidade e
do perfil dos membros do I Governo Provisório feita num telegrama enviado pelo
então embaixador em Lisboa, Stuart Nash Scott, ao Departamento de Estado a 16
de Maio de 1974; ao documento em que percebemos como, com oito dias de
antecedência, Scott analisou correctamente as implicações da iniciativa da
maioria silenciosa e o 28 de Setembro; aos dados sobre a agitação e a acção dos
movimentos independentistas nos Açores; à leitura norte-americana sobre o
significado das eleições para a Assembleia Constituinte, consideradas por
Kissinger como "um concurso de popularidade sem significado", e a
sua antecipação do resultado eleitoral; etc. Passagens que por si só justificam
uma leitura da obra.
A par dos múltiplos dados sobre os acontecimentos em curso, são também feitas
revelações sobre a forma como os norte-americanos interpretaram o papel e -
posicionamento de algumas das mais destacadas figuras da vida político-militar
dos anos 1974-1976. Costa Gomes é frequentemente invocado, sendo mais de uma
vez apresentado como o "fiel da balança", e rotulado pelo
secretário de Estado norte-americano como "um seguidor perspicaz"
mais do que "um verdadeiro líder". São também de Henry Kissinger
alguns comentários pouco elogiosos sobre o secretário-geral do PS, assim como
várias observações sobre Melo Antunes (não hesita em classificar a sua
concepção sobre o "futuro da democracia" como
"ingénua"). Quanto ao controverso primeiro-ministro Vasco
Gonçalves, a preocupação dominante parece ser a sua filiação ou não no PCP,
tema sobre o qual Kissinger e Carlucci estão em desacordo: se para o primeiro
Vasco Gonçalves é um comunista não "assumido e filiado", Carlucci
rotula-o como um "nacionalista esquerdista", "emocional e
idealista", "atento e inteligente".
AS RELAÇÕES LUSO-AMERICANAS
No que diz respeito às relações luso-americanas, os autores têm a preocupação
de, logo nas primeiras páginas, fazer cair por terra a tese segundo a qual os
Estados Unidos nada sabiam sobre a conspiração dos Capitães. Primeiro,
relatando o episódio da passagem por Lisboa, nas vésperas do 25 de Abril, de
Bob Bentley (antigo secretário da embaixada entre 1967-1971). A sua análise da
situação portuguesa leva-o a informar Washington sobre a iminência de
"uma mudança de regime em Portugal". A ideia é fundamentada com
outros documentos onde se dá conta de que os norte-americanos estavam
informados sobre a grave crise política que Portugal atravessava desde inícios
de 1974. Particularmente curioso e importante é o documento do embaixador
Scott, datado de 22 de Março de 1974, em que se faz alusão a um clandestino
"Movimento" de oficiais intermédios (movimento dos capitães) e se
revela como Washington reagiu a essa informação, instruindo os seus
funcionários para que se afastassem do Movimento, de António de Spínola e ou de
qualquer outro "conspirador"/"conspiração". Conclusão:
os norte-americanos tinham conhecimento das conspirações em curso para derrubar
Marcelo Caetano.
Depois, destacam-se os dados sobre as divergências entre Kissinger e Carlucci
quanto à posição a assumir perante a realidade portuguesa e o eventual apoio ao
processo de democratização; sobre as pressões norte-americanas e europeias
sobre os dirigentes portugueses e as tensões no seio da NATO; os estreitos e
frequentes contactos entre Carlucci e o Grupo dos Nove; as informações sobre a
estratégia de alguns partidos políticos e as suas relações com os Estados
Unidos; os dados sobre o alcance da contribuição norte-americana na ponte aérea
Portugal-Angola; etc.
A observação de que a estratégia norte-americana relativamente à transição
portuguesa não foi nem constante nem homogénea, leva à identificação de cinco
etapas evolutivas. O 11 de Março merece especial destaque uma vez que, segundo
os autores, o fracassado "golpe spinolista" coincide ou determina a
conclusão da segunda fase ou ciclo da política norte-americana. Terá sido então
que "a atitude de “envolvimento de baixa intensidade” foi substituída por
um endurecimento da posição da Administração Ford para Portugal",
destacando-se neste domínio a posição de Henry Kissinger segundo a qual
"Lisboa devia ser isolada no seio da NATO de molde a tornar-se a “vacina”
para o resto da Europa Ocidental". A questão complexifica-se uma vez que,
de acordo com o revelado nesta obra, esta perspectiva do secretário de Estado
norte-americano "não foi partilhada pelo seu embaixador em Lisboa",
Frank Carlucci, que "advogou alternativamente uma política de apoio às
forças “moderadas” internas, sobretudo procurando maximizar a realização das
eleições para a Assembleia Constituinte". Nasce e desenvolve-se, a partir
de então, um conflito entre ambos que "se foi progressivamente agudizando
ao ponto de se transformar numa disputa no seio do governo dos Estados
Unidos".
UM "VERÃO QUENTE"
Apesar da inegável importância destes dados, as páginas mais interessantes do
livro são, em nosso entender, as relativas ao "Verão Quente" de
1975. Primeiro porque, como já referimos, se dá a conhecer a existência de
contactos e relações entre os norte-americanos e os Nove. Veja-se, a título de
exemplo, a passagem em que se conta como, quando da suspensão dos subscritores
do Documento dos Nove, Carlucci informa Washington das suas intenções em
"usar os seus canais junto do grupo “moderado” do MFA para instá-los a
reagir, pois se não o fizessem “podiam não ter outra oportunidade”".
Depois, pelo retrato minucioso da complexidade da correlação de forças na
Administração Ford e da tensão / discordâncias quanto à estratégia a seguir em
relação a Portugal. O capítulo "Carlucci vence Kissinger" é
particularmente sugestivo, dando conta que a vitória do embaixador sobre o
secretário de Estado se deveu, em grande medida, ao facto de ter conseguido
apoios de peso. Além do mais, é nessas páginas relativas ao Verão de 75 que,
pela primeira vez, nos surge o nome de Ramalho Eanes e são divulgados dados que
nos ajudam a compreender o papel que virá a assumir no grupo dos operacionais
(saliente-se, a este respeito, a informação de que terá sido o comandante das
forças da NATO na Europa, Alexander Haig, a identificar Ramalho Eanes com um
oficial promissor, convidando-o a participar num programa de formação da NATO).
Finalmente, pelas referências à eventualidade de uma guerra civil em Portugal
(alerta da intelligence para Kissinger, a 29 de Agosto de 1975), ao plano dos
moderados de "instalar o seu quartel-general no Norte, declarar
publicamente a sua intenção de livrar o governo e os militares de todos os
comunistas […] e lançar uma operação militar em direcção a Lisboa" (p.
311) e, ainda, ao plano de contingência americano para a guerra civil
portuguesa (p. 329). Ao já conhecido Plano Callaghan juntam-se agora novos
dados sobre o plano e alcance da intervenção norte-americana em Portugal na
eventualidade da eclosão de uma guerra civil.
Chegamos assim ao 25 de Novembro, com novas revelações sobre a forma como
Washington acompanhou e interpretou as operações e movimentações político-
militares desses dias. Em telegrama para Washington, Carlucci assume uma das
mais bem-sucedidas teses interpretativas do 25 de Novembro ao afirmar que
"uma das causas do choque militar foi a tentativa dos comunistas de
forçar a recomposição do Governo Provisório, bem como do Conselho da
Revolução". Desenganem-se, no entanto, os que esperam encontrar aqui
revelações bombásticas sobre este nebuloso momento. Além do mais, o 25 de
Novembro continua a ser apresentado como sendo "essencialmente o
resultado da conjugação de factores internos". Todavia, alerta-se,
"é hoje possível demonstrar que existiu uma dimensão externa no contexto
do choque militar".
Em suma, conclui-se, apesar de a actuação norte-americana não ter sido "o
elemento decisivo para o resultado final da transição do autoritarismo para a
democracia em Portugal, residindo este na balança de poder político-militar
interna", ela constituiu um contributo fundamental "para a vitória
das forças democráticas".
NOTAS
1 Jornal de Notícias, 22 de Setembro de 2008.
2 Expresso on-line, 1 de Outubro de 2008.
3 Maxwell, Kenneth – A Construção da Democracia em Portugal. Lisboa: Editorial
Presença, 1999, p. 203.
* Investigadora do Instituto de História Contemporânea e docente na Escola
Superior de Comunicação Social. Autora de Mitos de Uma Revolução (2007)
Rua Dona Estefânia, 195, 5 D
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