A ordem de Huntington
A ordem de Huntington
Vasco Rato
Para muitos, o nome de Samuel Huntington ficará perpetuamente ligado ao livro O
Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial, a ampliação e
aprofundamento de uma tese originalmente publicada em 1993 nas páginas da
revista Foreign Affairs. Na sequência dos ataques terroristas de 11 de Setembro
de 2001, a narrativa do «choque civilizacional» transformou-se numa
«explicação» simplista do islamismo político. Contudo, à medida que a tese se
popularizava, as qualificações apontadas por Huntington, e a subtileza
analítica das clivagens civilizacionais que apontou e as consequências
políticas que delas resultavam, deram lugar à sloganização do conceito de
choque civilizacional e, de uma forma mais geral, à cartoonização das ideias de
Huntington.
Dada a influência (ou notoriedade) do livro, não deixa de ser irónico verificar
que O Choque das Civilizações é um trabalho menor; na melhor das hipóteses,
trata-se de um estudo que fica muito aquém dos trabalhos anteriores do autor. É
certo que mesmo os livros menores de Huntington sempre foram superiores aos
livros de outros politólogos. A sua envergadura intelectual colocava-o acima
dos seus pares de profissão, particularmente desde que a ciência política
profissional se burocratizou e, por conseguinte, perdeu grande parte da sua
relevância. O segredo de Huntington ' violado por grande parte da academia '
residia em relacionar a sua inovação teórica com os problemas mais prementes do
«mundo real». Problemas que, por norma, a academia ainda hoje teme ignorar.
Political Order in Changing Societies e The Soldier and the State são, sem
dúvida, os livros mais inovadores e influentes de Huntington, continuando a ser
de leitura obrigatória. O segundo praticamente deu origem ao estudo
contemporâneo das relações civis-militares; o primeiro, publicado em 1968,
desafiou grande parte dos pressupostos que dominaram o pensamento político no
pós-1945. Especificamente, Political Order questionou a teoria de modernização,
então preponderante nas universidades e no mundo de policymaking. Dito de forma
diferente, a análise de Huntington mudou a forma como se olhava a relação entre
o desenvolvimento e a participação política, ou seja, entre a modernização
socioeconómica e a construção das democracias pluralistas.
Em termos simplificados, o paradigma da modernização, teorizado por Seymour
Martin Lipset, David Apter, Walt Rostow e outros, mantinha que o
desenvolvimento socioeconómico invariavelmente produzia regimes democráticos.
Nem todos os defensores do paradigma concordavam quanto às variáveis que
conduziam a este desfecho. Mas, de forma geral, eram unânimes quanto à ideia de
que o crescimento económico ' ou as suas consequências, como sejam a
laicização, a literacia e a urbanização ' conduzia à democracia uma vez
assegurado um patamar mínimo de riqueza. Particularmente estimulante era a
ideia de que a transição para a modernidade, e a concomitante passagem para
regimes pluralistas, poderia ocorrer na ausência de profundas rupturas e
conflitos se se procedesse à cooptação política de novos grupos e
reivindicações.
Seria justamente este consenso em volta da veracidade do paradigma da
modernização que Samuel Huntington, em Political Order in Changing Societies,
questionava. Uma das observações nucleares de Huntington era que o problema
central da política radicava na existência de um lag temporal entre o
desenvolvimento das instituições e as mudanças socioeconómicas. Dito de forma
diferente, as instituições políticas usualmente revelavam alguma dificuldade em
proporcionar respostas adequadas às exigências sociopolíticas provocadas pela
mudança. Huntington ' e muito bem ' observou que a dinâmica motor da política
era a mudança; mudanças permanentes que, não infrequentemente, eram dramáticas
nos seus efeitos. Acrescentou que os efeitos da mudança são normalmente
minimizados porque existe um bias cognitivo que nos leva a pensar que «amanhã
será como hoje». Na medida em que pretendem preservar o poder adquirido, os
agentes políticos invariavelmente confrontam dificuldades em ultrapassar o seu
bias a favor do status quo, o que efectivamente os leva a resistir a mudanças
institucionais que, a médio e longo prazo, seriam mais propícias à preservação
da estabilidade, e do poder dos agentes políticos.
A tese principal de Huntington adiantava que a instabilidade e o conflito que
marcavam a época em que escrevia, e o pós-II Guerra Mundial, resultavam de
mudanças sociais rápidas, invariavelmente associadas à mobilização de novos
sectores da população. À medida que estes novos grupos conquistavam poderio
económico e social, passavam a exigir uma quota maior do poder político, ou
seja, colocavam pressão junto das instituições existentes para que estas se
abrissem às suas preocupações e interesses. Todavia, as instituições, criadas
noutro contexto político e desenhadas para acomodarem outros grupos
politicamente dominantes, manifestavam dificuldades em adaptarem-se às novas
realidades. Por isso, não tinham capacidade para cooptar os novos sectores
sociais. Perante esta situação, a contestação e a violência resultavam, tanto
por parte dos novos grupos que exigiam participar politicamente como por parte
do Estado que, perante a imobilidade das instituições, recorria à repressão
para travar o aumento de novas reivindicações. A repressão era, pois, uma forma
de preservar a ordem política em períodos de profunda transformação.
Por estas razões, a problemática da «ordem» política torna-se central para a
nossa compreensão da modernidade. Na ausência de estruturas políticas
suficientemente adaptáveis e robustas para responderem à correlação de forças
existentes na sociedade, a contestação e a violência passam a dominar a
paisagem política. Huntington, em consequência, afirma que a mais importante
distinção política não reside na form of government (se democracia, comunista,
colectivista, de mercado, etc.) mas no degree of government. Quer isto dizer
que a questão da ordem, da estabilidade política, largamente resultante do grau
de institucionalização, é anterior à natureza específica do regime. Recorrendo
a uma linguagem corrente, dir-se-á que a questão da construção do estado (state
building) precede o problema do regime (especificamente, a democratização). Em
conclusão, Huntington sustenta que um Estado forte, mas não necessariamente
democrático, torna-se absolutamente necessário durante o decorrer de processos
de modernização.
Mas, afinal, que relevância para a política internacional contemporânea terá um
livro publicado em 1968? Se a análise de Huntington corresponde à realidade ' e
parece que assim é ', torna-se essencial desenvolver estratégias para gerir a
mudança, para garantir que a passagem para a modernidade seja o menos
desestabilizador possível. Essa estratégia terá de assegurar o gradualismo da
modernização, de forma a conceder aos agentes políticos e às instituições tempo
suficiente para se reformarem de modo a poderem absorver novos sectores e
reivindicações sociais. Mudanças rápidas são, portanto, de evitar, sob pena de
se despoletar a necessidade de recorrer à repressão para conservar a ordem. Eis
uma estratégia que, grosso modo, tem sido seguida em países como a Birmânia e a
China; em Portugal, ocorreu o inverso depois do golpe de Abril de 1974.
Por outro lado, a visão de Huntington coloca dúvidas quanto às estratégias de
democratização seguidas ao longo das décadas mais recentes. Primeiro, políticas
de engagement podem ser contraproducentes. Por exemplo, a abertura de
sociedades fechadas através do comércio internacional pode gerar mudanças
rápidas que provocam instabilidade política, obrigando o retorno à repressão, a
ditaduras ainda mais ferozes. A ideia subjacente ao engagement, de que o
comércio internacional dá origem a uma nova classe média que inexoravelmente
assume o papel de motor da democratização, deixa de ser sustentável se as teses
de Huntington forem adoptadas. Por último, se aplicarmos as observações
contidas em Political Order a países como o Egipto e a Arábia Saudita, onde se
verificaram processos de modernização acelerada, melhor poderemos compreender
as causas do islamismo político e de organizações como a Al-Qaida. E, mais
importante de tudo, estaremos em posse de um mapa cognitivo que nos poderá
ajudar a evitar que, no futuro, a promoção da modernidade venha a gerar
movimentos que, na prática, pretendem recriar um passado longínquo que aniquile
a modernidade.
Rua Dona Estefânia, 195, 5 D
1000-155 Lisboa
Portugal
ipri@ipri.pt