A construção da paz: Relações e futuro
A construção da paz
Relações e futuro
Catarina Pimenta
OLIVER RICHMOND
Peace in International Relations
Routledge Studies in Peace and Conflict Resolution, 2008, 218 pp.
A relevância maior da obra de Richmond é a de suprimir, de um só fôlego, duas
lacunas persistentes no campo das relações internacionais (ri). Em primeiro
lugar, trata da inclusão da problemática da paz nas construções teóricas da
disciplina, quer no âmbito dos paradigmas clássicos (identificados com os
pensamentos de matriz idealista, liberal, realista e marxista), quer no
contexto de propostas mais recentes (pós-positivistas, particularmente as das
teorias críticas e pós-estruturalistas). Em segundo lugar, refere-se à
apresentação de alternativas epistemológicas, ontológicas e metodológicas, à
forma como a paz tem sido concebida e implementada, a qual, do ponto de vista
do autor, se transformou numa paz hegemónica, imposta como um conceito
ontologicamente estável e permanente, legitimador do exercício de determinado
tipo de poder.
A TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS REVISITADA PELOS ESTUDOS PARA A PAZ
A revisitação proposta por Richmond, com especial enfoque sobre a construção
teórica da paz que as diversas escolas de pensamento apresentam, revela o
conhecimento e o rigor profundos com que as apresenta e desconstrói, escapando
sempre a tentações simplistas e redutoras. Pela pena de Richmond relembram-se
os motivos de distanciamento e, mais relevante, porque tantas vezes
negligenciados e diminuídos, os pontos de contacto entre as várias propostas
teóricas. Na verdade, a propósito da visão que cada uma delas apresenta sobre a
paz ' umas vezes de forma expressa, outras quase por omissão (como no caso
particular do realismo) ', o autor recupera um pressuposto essencial em teoria
das relações internacionais: o de que, apenas para efeitos de facilidade de
exposição, os diversos contributos se apresentam tão distintos e, por vezes,
até antagónicos. Porque, na verdade, a caricatura que representa os grandes
debates teóricos em ri, com a valorização de supostas dissemelhanças registadas
a vários níveis (ontológico, metodológico e epistemológico), não traduz, com
rigor, a complexidade inerente ao processo de construção e de definição
teóricas.
A este propósito, Richmond ilustra com uma interessante análise comparativa
(ainda que não inédita) entre o marxismo ' considerado pelo autor uma
epistemologia positivista, à semelhança do que é defendido pela maioria dos
especialistas ' e a teoria crítica pós-positivista, com o conceito de
«emancipação» a aproximar claramente as duas propostas. A respeito ainda da
recusa de distinções artificiais, regista-se o modelo «híbrido» que Richmond
elabora a partir de ideias associadas ao realismo, «idealismo» e liberalismo,
salientando as suas semelhanças, em termos de construção teórica (e também
política) da paz. O abandono deliberado da facilidade caricatural, com a
inevitável dissecação das diferenças, sem contudo negligenciar o precioso
trabalho de valorização e interpretação dos pontos de aproximação entre os
vários contributos teóricos em relações internacionais, particularmente naquilo
que se refere à visão que cada um elabora sobre a paz, é, na verdade, uma das
grandes contribuições desta obra para os estudos para a paz e para a teoria das
relações internacionais.
A CONSTRUÇÃO POLÍTICA PAZ
O modelo de paz liberal que tem sido implementado um pouco por todo o mundo é
considerado por Richmond um mecanismo que reflecte uma paz política, distante
da vida quotidiana dos indivíduos (privilegiando a paz entre os estados),
perpetuadora das causas profundas, subjacentes aos conflitos. Os projectos e os
processos de paz são tidos como realidades tão aparentes, que a percepção da
sua suposta evidência e facilidade dificulta a resposta ao núcleo de questões
essenciais: o que é a paz, quem a cria e promove, por que motivos, em nome de
que interesses e para quem?
A alternativa oferecida pelo autor prende-se com uma abordagem genealógica,
pautada pelo pluralismo metodológico e pela defesa de perspectivas
multidisciplinares, requisitos essenciais para a construção de um modelo
conceptual e operacional de paz, que respeite a sua dimensão multinível (desde
o local ao global). A agenda para a paz proposta passa por dotar as comunidades
locais do controlo do processo de paz a que são sujeitas e pelo apoio
internacional a esses projectos, sem que isso signifique a criação de
dependências dessas áreas relativamente à intervenção externa. Assim, é
necessário que a acção dos actores de peacebuilding não se paute pela
formulação e aplicação de modelos universais a qualquer situação, mas que o
foco principal da agenda teórica e prática se desloque das instituições para a
vida quotidiana dos indivíduos.
De facto, no âmbito dos estudos para a paz, o autor elabora sobre a estreita
relação entre a investigação académica e a acção política. Desde a sua origem
que os peace studies assumem a intenção de se revestirem de uma dimensão
prática, manifestada em influência directa sobre o comportamento dos agentes
políticos. Mas Richmond vai mais longe, aliando ao conceito de relação causal
unívoca uma noção cíclica de influência mútua («relacionamento biunívoco entre
o meio académico e o meio dos decisores políticos», nas palavras de J. G.
Cravinho[1]). É nesse contexto que considera que a reprodução de um modelo
uniforme de paz está relacionada com a defesa de interesses de determinados
grupos e políticas.
Este livro é, na verdade, uma recusa da «regra da parcimónia», tal como
formulada por Nye, citando Guilherme de Occam: «as boas explicações eliminam os
pormenores desnecessários»[2]. Para Richmond, a «navalha de Occam» não serve
como ponto de partida para a construção de uma teoria e prática da paz que
satisfaça o objectivo último de garantir a paz efectiva, vivida no seio das
populações. A parcimónia tem sido, aliás, na sua opinião, um dos problemas
maiores das teorias de ri, em geral, e dos estudos para a paz, em particular,
cujas explicações não têm conseguido concretizar o principal objectivo que
assistiu à fundação das ri, enquanto disciplina académica, em 1919, e que
orientaria igualmente a génese dos peace studies décadas mais tarde: encontrar
mecanismos que erradicassem os conflitos armados e criassem condições para uma
paz permanente e profícua.
A MEDICINA SOCIAL DOS ESTUDOS PARA A PAZ
É nesse sentido que, utilizando um paralelismo que, décadas mais tarde, seria
recuperado pelos fundadores dos estudos para a paz (particularmente por Johan
Galtung, um dos seus nomes mais ilustres), J. G. Cravinho considera que «para
os fundadores da disciplina universitária, ri era uma ciência social aplicada:
tal como a medicina estudava as formas de curar o corpo humano,ri tratava de
encontrar formas de atacar os males de que padecia o sistema internacional»
[3]. O que nos leva a questionar, como sucede com Richmond, o sentido da
existência da disciplina de RI: senão para a paz, para que serve? Neste
contexto, os estudos para a paz são a recuperação, na década de 50 do século
XX, da formulação original da própria disciplina de ri, quarenta anos antes.
Uma disciplina que Richmond considera claramente insuficiente para, agindo
isoladamente, responder, por um lado, aos desafios que a construção da paz
acarreta e, por outro lado, colocar a problemática da paz na agenda teórica das
ri. A proposta que apresenta no sentido de conferir maior visibilidade ao
conceito e à construção política da paz na disciplina de relações
internacionais passa, então, por apostar numa abordagem multidisciplinar.
Concordando na essência com este enunciado, considero, todavia, que, ainda que
acolhendo conceitos e abordagens próprios de outras disciplinas ' mais
vocacionadas para a esfera micro e individual ', as ri não deverão negligenciar
uma dimensão estatal e institucional como aquela que enforma as contribuições
de outras áreas académicas (que privilegiam abordagens mais fluidas e
informais), sob pena de esvaziar o conteúdo que as distingue de ciências
sociais «limítrofes».
A perspectiva bottom-up que emerge da obra de Richmond e da obra de uma série
de autores seus contemporâneos (R. Muggah e M. Duffield, entre outros) tem
identificado as principais fragilidades (e consequente crise) do modelo de
construção de paz dominante, particularmente no que se refere à reprodução e
perpetuação das causas profundas de conflitualidade, as quais não são atendidas
pelos mecanismos de direcção top-down. Mas matéria que ainda não foi abordada
de forma sistematizada, pese embora algumas pistas fornecidas por Richmond, é a
que corresponde à forma como se concretiza, em termos muito pragmáticos, a
articulação entre as abordagens top-down e bottom-up, ou seja, como é que se
envolve a sociedade civil local em projectos de âmbito internacional. A
transferência do controlo das operações para os agentes locais é, a priori, uma
proposta muito promissora. Todavia, a questão que se me apresenta como
essencial é a de saber como se criam as condições para que tal aconteça, ou
seja, a principal dificuldade operacional reside, a meu ver, a montante do
debate top-down versus bottom -up ou da alternativa (perfilhada pelo autor) que
procura maximizar e conciliar as vantagens de cada um dos modelos e aquilo que
representam concretamente em termos de peacebuilding.
É que, como prevê o autor, enquanto a necessidade de uma paz pluralista,
heterogénea e distinta da paz hegemónica não se fizer sentir nas sociedades
demoliberais nem pelos Estados que as representam, dificilmente os apelos de
académicos como Richmond encontrarão eco na acção dos decisores políticos e se
realizará o propósito original das relações internacionais e dos estudos para a
paz.
NOTAS
[1] Cravinho, João Gomes ' Visões do Mundo. As Relações Internacionais e o
Mundo Contemporâneo. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2002.
[2] Nye, Joseph S. ' Compreender os Conflitos Internacionais. Uma Introdução à
Teoria e à História. Lisboa: Gradiva, 2002.
[3] Cravinho, João Gomes ' Visões do Mundo. As Relações Internacionais e o
Mundo Contemporâneo, p. 106.
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