A Defesa Europeia em Lisboa
There are grave doubts at the largeness of the land, and whether one
Government can comprehend the whole.
Henry Adams
Poucos contestarão o papel notável que o processo de integração europeia teve
na questão da segurança e defesa no interior da própria Europa. Foi com a União
Europeia (UE) e as suas antecessoras, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço
(CECA), e a Comunidade Económica Europeia (CEE), que se deu uma transformação
fundamental, e sem precedentes, das relações entre os estados europeus.
Resolveram definitivamente ' ou pelo menos tão definitivamente quanto é
possível nos assuntos humanos ' o problema terrível da guerra entre estados
europeus. Foi a integração europeia que conseguiu a solução do maior problema
em termos da segurança europeia ' a questão alemã. Como é que seria possível a
existência de uma Alemanha unida sem essa unificação do maior grupo
populacional no centro do continente ser o prelúdio de um predomínio imperial
germânico no resto da Europa?
Porém, a grande questão nestes últimos anos tem sido outra. Tal é resultado,
aliás, deste notável sucesso. Será que a Europa conseguirá consolidar
suficientemente as suas instituições de modo a poder projectar eficazmente o
seu enorme potencial de poder no exterior, na sua vizinhança e globalmente?
Terá capacidade de desenvolver não só um «poder suave» de atracção ao nível
económico, cultural, de modelo político, mas também um «poder duro» de coacção,
que poderá ser necessário para a defesa pela força dos seus interesses e
valores em zonas vizinhas ou até mais distantes?
Há grandes dúvidas de que um território tão vasto como o da UE possa ter uma
forma de governação única, particularmente no campo da defesa. Mas foi assim
também com os Estados Unidos da América durante boa parte do século xix, e
mesmo nas décadas iniciais do século xx, com um potencial enorme, nomeadamente
económico, mas com pouco «poder duro» capaz de dar impacto às suas posições nas
grandes questões internacionais. E isto como resultado da recusa dos estados
que compunham a federação em conceder ao poder federal centralizado os recursos
militares necessários a uma capacidade de coacção global, não por falta dos
mesmos, mas por desejo de evitar um crescimento do poder e do orçamento de
Washington. É isso que nos recorda a citação em epigrama a este artigo, escrita
por um dos mais ilustres estadistas e historiadores americanos, membro de uma
das grandes dinastias políticas norte-americanas.
Hoje, há quem se esqueça que a experiência do federalismo norte-americano era
algo de politicamente inaudito e de sucesso improvável até se ter tornado lenta
e dificilmente numa realidade. E, no entanto, depois de problemas vários,
inclusive uma guerra civil terrivelmente sangrenta, hoje os Estados Unidos são
a mais importante potência a nível global, em particular no campo militar. Será
que a UE se transformará nos Estados Unidos? Não creio, pelo menos não
necessariamente e não imediatamente. Mas é uma experiência política igualmente
inaudita. Ela é particularmente imprevista num continente como a Europa que
tinha visto nascer e crescer o modelo do Estado moderno que agora a UE vem em
parte colocar em causa.
Claro que esta qualificação é fundamental: a UE em parte retira poderes aos
estados, mas em parte também corresponde aos interesses dos estados europeus e
foi criada e tem sido gerida por eles precisamente com esse fim. Ora, entre os
poderes fundamentais do Estado soberano moderno está o de reservar apenas para
si o uso da força. Quais são os desafios específicos que tal coloca no campo da
segurança e defesa? Quais as implicações nesse quadro dos acordos alcançados e
firmados no Tratado de Lisboa, que entrou em vigor há apenas dois meses? Estas
são as questões fundamentais com que se debate este texto.
Seria tentadoramente simples, mas também rigoroso, responder que ainda é cedo
de mais para sabermos. Afinal, se o primeiro-ministro chinês Zhou Enlai podia
dizer isso da Revolução Francesa que teve lugar em 1789, claramente isso faz
sentido relativamente a um tratado com apenas um par de meses de existência. É
sobretudo assim porque qualquer tratado ou lei constitucional é moldado
sobretudo pela fase da sua implementação. As normas definem princípios gerais.
Quando essas normas são tão complexas e numerosas como as do Tratado de Lisboa,
o campo de manobra para a interpretação é muito grande. Mais, o Tratado de
Lisboa cria novas instituições. Ora, como qualquer bebé, estas novidades
institucionais por natureza serão profundamente moldadas pelos seus primeiros
anos de existência. A tudo isto acresce o facto de a UE não estar sozinha no
mundo, e portanto haver que contar com os imprevistos e crises que podem
alterar o contexto da segurança internacional; assim como com dados estruturais
fundamentais do sistema internacional, nomeadamente a unipolaridade
particularmente evidente no campo da defesa, com os Estados Unidos a gastarem
sozinhos mais de metade da soma total dos orçamentos de defesa a nível global,
e a serem uma presença incontornável na segurança europeia desde 1945
directamente e por via da NATO.
Iremos, portanto, nas páginas seguintes abordar brevemente quatro temas
fundamentais:
i) O que é que diferentes estados europeus pretendem de uma
defesa europeia?
ii) Quais as normas e instituições mais relevantes do Tratado
de Lisboa neste ponto?
iii) Quais as crises e ameaças que poderão testar a segurança
europeia?
iv) Qual o impacto em tudo isto da relação de segurança da
Europa com os Estados Unidos, e vice-versa?
ESTADOS EUROPEUS E DEFESA EUROPEIA
O Tratado de Lisboa foi consistentemente apresentado pelos líderes políticos
dos estados europeus ' que o promoveram durante anos de incerteza e, por vezes,
investindo no processo algum capital político ' como uma necessidade
fundamental para lidar com uma preocupação com as dificuldades de a Europa se
afirmar como um actor credível no campo da política internacional.
É claro que neste campo há que ter em conta a mais que provável necessidade
política de inflacionar o valor do tratado para garantir a sua aprovação por
parlamentos e referendos. Um fenómeno político bem estudado, por exemplo, no
caso da política externa norte-americana.
Todos os dirigentes dos estados europeus parecem estar de acordo em desejar uma
Europa mais poderosa internacionalmente. Mas daí a estarem de acordo quanto ao
que isso implica em termos de cedência de poderes seus a novas instituições
europeias, ou mesmo de aceitarem um grau de cedência necessária a uma efectiva
coordenação intergovernamental que tire pleno partidos das possibilidades
abertas pelo tratado vai um espaço que facilmente se preenche de dúvidas.
É verdade que em termos da abordagem, assim como da agenda, das prioridades, e
do sentido desta política de defesa europeia se pode apontar para a Estratégia
Europeia de Defesa, recentemente reafirmada no essencial pelo relatório de sua
revisão. Mas será tal suficiente para dar uma definição pertinente face aos
desafios de segurança actual e futura?
Para tornar a tarefa mais fácil, procuramos dividir os estados europeus em
grupos quanto às suas tradições e preocupações estratégicas, sendo que estes
grupos não são, como será fácil de perceber de um modo geral mutuamente
exclusivos, havendo claramente várias sobreposições:
1. Atlantistas ' São em grande número e abrangem praticamente todos os estados-
membros da UE que pertencem à NATO, mas particularmente os mais pequenos e mais
periférios, que consideram uma boa relação com os Estados Unidos como essencial
para a segurança europeia, e preocupam-se com preservar o acquis doutrinal,
institucional e de segurança colectiva dessa organização. Os exemplos vão de
Portugal à Grã-Bretanha, à Dinamarca ou à Polónia.
2. Neutros ' São um grupo menor mas importante depois do alargamento de 1995
que incorporou estados que antes tinham procurado ficar à margem da Guerra
Fria, e que mantêm uma grande reserva relativamente a usos puramente
estratégicos, e não acima de tudo normativos, das suas Forças Armadas e uma
desconfiança face a uma lógica de aliança. Os exemplos são a Irlanda, a
Áustria, a Suécia e a Finlândia;
3. Europeístas ' São um grupo não necessariamente incompatível com os dois
anteriores, mas que agrupa mais propriamente os estados que vêem na promoção de
uma defesa europeia uma prioridade, caso da França, da Bélgica, ou do
Luxemburgo.
4. Grandes ' Sendo mais populosos e dotados de maiores recursos geralmente
terão maior potencial militar, isso é verdade mesmo no caso da Alemanha, que o
usou com grandes reservas mas não deixa de estar lá em quantidades impensáveis
noutros casos.
5. Pequenos ' Têm mais dificuldade em multiplicar a sua participação em várias
missões e, portanto, tenderão a ser mais selectivos; por outro lado, sentindo-
se mais vulneráveis, têm de um modo geral algum interesse em cooperar com os
demais no campo da segurança, mesmo que o façam com meios limitados.
6. Ex-impérios ' São estados com uma tradição de envolvimento em zonas fora da
UE, e portanto potencialmente com mais interesses e maior disponibilidade para
alagar a esfera de acção da defesa europeia para lá de um sentido restrito de
defesa territorial europeia.
7. Leste ' Estes estados têm um passado comum de subordinação forçada ao poder
russo soviético, além do seu interesse geopolítico na estabilização da sua
vizinhança próxima que os leva a valorizar elementos de defesa territorial
menos urgente noutros casos, e uma concepção da defesa europeia centrada
sobretudo na sua problemática vizinhança próxima a leste, tendo a Rússia como
uma preocupação importante se não mesmo e ainda uma ameaça.
8. Norte ' São estados com muito em comum e um hábito de cooperação também no
campo da defesa, e com evidente prioridade geopolítica para a segurança do
Árctico e do Leste, ambas zonas de tensão com a Rússia.
9. Sul ' São estados cuja grande prioridade para a segurança europeia é a
instabilidade e as ameaças terroristas na área do Mediterrâneo e do Médio
Oriente[1].
As prioridades destes grupos de países são diferentes, mas não são
necessariamente tão contraditórias quanto possa parecer. Aliás, a emergência da
Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD) mostra isso mesmo. Mesmo que
existam estados mais concentrados na vizinhança a Leste ou a Sul, todos
concordam que é vital que a UE consiga prever e se necessário ter a capacidade
para lidar com ameaças violentas à estabilidade e aos seus interesses nas áreas
que rodeiam a UE e com um evidente potencial desestabilizador da mesma. Também
as diferenças entre Neutros e Atlantistas e Europeístas têm sido atenuadas,
pelo facto de com o fim da Guerra Fria os países neutros europeus terem passado
a integrar uma parceria com a NATO que permite que muita da cultura
organizacional da Aliança seja incorporada ' facilitando a cooperação. Por
outro lado, o país mais europeísta em questões de defesa, a França, fez questão
nos últimos anos de se reaproximar da NATO e sublinhar que não quer uma UE em
competição no campo da defesa com os Estados Unidos ' o que poderá ser mera
táctica, mas nem por isso deixa de facilitar aproximações entre estes grupos,
antes relativamente convergentes.
Esta crescente convergência encontra expressão na doutrina estratégica da UE,
que procura deliberada e eficazmente funcionar como um nível de ligação entre
culturas e prioridades estratégicas nacionais. A Estratégia Europeia de
Segurança deve ser vista sobretudo como um elemento de conjugação e não de
substituição das prioridades e concepções estratégicas nacionais. Ela mostra,
no entanto, a emergência de uma cultura estratégica pan-europeia de tipo
ateniense' ou seja, que insiste na necessidade de um uso da força exemplar do
ponto de vista normativo, isto é, que corresponde aos grandes princípios do
direito internacional.
Deste ponto de vista o que é que o Tratado de Lisboa adianta? Desde logo,
revelou que algumas destas divisões ainda pesam. Assim, uma das razões apontada
pelo Governo de Dublin para explicar o não inicial dos irlandeses quanto ao
tratado foi precisamente o receio de que ele viesse comprometer a neutralidade
da Irlanda, obrigando a uma defesa conjunta. Foi por isso necessário incluir um
protocolo adicional explicando que o Tratado de Lisboa não afectava a
disposição constitucional que obriga a uma tripla autorização para o emprego
das forças militares irlandesas no exterior. Por outro lado, e por razões quase
opostas ' de atlanticismo hard-core ', a Dinamarca optou desde o início por
ficar de fora deste campo. Algo, no entanto, une estes dois países ' a
preocupação em manter firmemente no parlamento nacional o controlo das grandes
opções de defesa. Até que ponto isso se traduzirá na prática num distanciamento
face a futuros avanços da PESD é, no entanto, algo em aberto.
Por outro lado, e tomando boa nota disso mesmo, o tratado veio alargar o campo
das cooperações estruturadas permanentes à defesa.
NOVAS NORMAS E INSTITUIÇÕES
Se há área em que o Tratado de Lisboa tem sido apresentado como trazendo
grandes novidades é precisamente no campo da PESD.
Desde logo, porque o tratado acaba com o chamado sistema de pilares ' em que a
Segurança Externa e Defesa, e a Segurança Interna e Justiça permaneciam como
áreas à parte do pilar comunitário tradicional, sublinhando o seu carácter
essencialmente intergovernamental, coordenado pelos governos e não integrado
pelas instituições europeias.
No entanto, o fim dessa distinção formal teve como preço, num dos compromissos
e ambiguidades em que a UE é fértil, a reafirmação de que nada no tratado
violava o controlo último do campo da defesa pelos estados-membros. Reafirmado
ainda de forma mais explícita, como vimos, no caso da Irlanda e da sua
neutralidade.
É verdade que houve, no entanto, uma parcial integração desta área, e
nomeadamente o actor fundamental a encarná-la: o alto representante para a
Política Externa e de Defesa que até ao presente era exclusivamente um
representante do Conselho que reúne os estados europeus, só a ele prestando
contas. Actualmente, mantendo embora essa função e estatuto, passou também a
ser membro de direito próprio do poder executivo da União, a Comissão Europeia,
com o cargo de vice-presidente, assumindo o pelouro das Relações Externas. O
seu cargo é descrito assim pelo Tratado de Lisboa:
«O Alto Representante conduz a política externa e de segurança comum
da União. Contribui, com as suas propostas, para a definição dessa
política, executando-a na qualidade de mandatário do Conselho. Actua
do mesmo modo no que se refere à política comum de segurança e
defesa.»[2]
A grande questão em aberto é saber qual será o papel e a cultura institucional
que assumirá maior prevalência: será a nova alta representante sobretudo uma
criatura do Conselho e da sua intergovernamentalidade, ou será uma figura da
Comissão e da sua cultura de promoção da integração? Claro que há outras
possibilidades: que a própria Comissão tenha perdido essa cultura de integração
depois de Delors, e seja cada vez mais, nomeadamente sob a presidência de
Barroso, marcada pela aproximação às agendas dos grandes estados. Há ainda a
eventualidade de a alta representante assumir um papel de ponte e pivot
fundamental entre as duas instituições, eventualmente competindo até nesse
papel ' beneficiando da sua dupla qualidade ' para se sobrepor de facto ao
também recém-criado presidente do Conselho Europeu, e ao papel tradicional do
presidente da Comissão[3].
Uma tendência interessante a observar será a de perceber se o cargo de alto
representante passará a ser tendencialmente ocupado pelos estados maiores da UE
' como sucedeu com Solana e agora com a baronesa Ashton ' e o que isso poderá
significar no sentido de reforço do peso destes na definição da agenda
internacional europeia.
Mas estas são questões genéricas que se colocam em relação ao campo da defesa,
como em relação a outros. No entanto, do ponto de vista da nossa análise o que
talvez importe sobretudo sublinhar é que a nova alta representante, saída dos
termos do Tratado de Lisboa, passará também a contar nos termos do mesmo de um
novo Serviço de Acção Externa ' uma diplomacia ' da UE, que integrará quer
diplomatas dos estados-membros, quer elementos dos actuais serviços externos da
Comissão Europeia.
O que baronesa Ashton certamente não terá é um exército europeu. Só o esforço
de organizar efectivamente a nova diplomacia europeia irá consumir energias
importantes. Sobretudo, tendo que fazê-lo de forma a evitar os receios dos
estados, já manifestadas, inclusive por Portugal, de que esta nova instituição
europeia venha competir ou sobrepor-se à diplomacia dos estados europeus,
quando as deveria complementar.
Na medida em que o hábito faz o monge, será natural pensar que a tendência da
nova alta representante será para sublinhar sobretudo a componente diplomática
da sua função e desvalorizar ou prestar menos atenção ' até por falta de meios
' ao campo da segurança e defesa.
Ninguém contesta que a UE é muito importante globalmente ' é o maior dador de
ajuda ao desenvolvimento no mundo. O problema, claro está, em que se o poder é
multidimensional, nem todos os componentes do poder são iguais. A UE tem muito
soft power, é o modelo de Estado social de mercado invejado por mim. Mas falta-
lhe hard power, e um actor credível internacionalmente dificilmente poderá
deixar de aliar diplomacia competente e força credível. Desse ponto de vista a
UE está até mais avançada na sua doutrina estratégica, e nas suas instituições,
do que a maioria dos estados europeus, mas também do que as suas próprias
capacidades.
Os factos que acabámos de referir apontam potencialmente para uma evolução
descrita no próprio Tratado de Lisboa:
«A política comum de segurança e defesa inclui a definição gradual de
uma política de defesa comum da União. A política comum de segurança
e defesa conduzirá a uma defesa comum logo que o Conselho Europeu,
deliberando por unanimidade, assim o decida.»[4]
Mas resultados duráveis neste campo estão longe de ser um acquis.
A Estratégia de Segurança Europeia adopta um conceito muito actualizado de
segurança abrangente. E o próprio alto representante tem essa dupla
responsabilidade ' a exemplo do conselheiro de Segurança Nacional dos Estados
Unidos. Mas, realmente, o que lhe sobra em responsabilidades integradas, falta-
lhe em capacidades efectivas no campo militar.
Apesar de tudo isto, há que reconhecer que o alargamento das cooperações
estruturadas permanentes à defesa poderá permitir ' embora para tal seja
necessário o acordo de todos os estados, mesmo os que não queiram participar '
que haja estruturas da UE no campo da defesa de que apenas alguns dos estados-
membros fazem parte, permitindo potencialmente ultrapassar as reservas dos mais
neutros, ou dos atlantistas hard-core que possam recear que qualquer avanço
europeu poderia levar a um distanciamento face aos Estados Unidos. De facto, o
tratado afirma:
«estados-membros cujas capacidades militares preencham critérios mais
elevados e que tenham assumido compromissos mais vinculativos na
matéria tendo em vista a realização das missões mais exigentes,
estabelecem uma cooperação estruturada permanente no âmbito da
União.»
Tal poderá gerar uma dinâmica semelhante à do euro em que cada vez mais países
acabaram por pretender pertencer à Eurolândia, pelo menos até à recente crise.
Uma instituição que poderá tornar-se crucial, assim se concretizem as
aspirações que levam à sua criação, cuja importância sai sublinhada do tratado,
é a Agência Europeia de Defesa, encarregue no quadro da UE de organizar
projectos de investimento conjunto em novos tipos de armamento. Este
potencialmente será um campo fundamental para permitir reforçar as capacidades
no campo da defesa da Europa de uma forma integrada e no quadro da UE.
É possível, ainda, que novas crises, e algumas mudanças no contexto
internacional, favoreçam o desenvolvimento destas mesmas capacidades e de uma
dinâmica de maior cooperação, se não integração, entre os estados-membros com a
ajuda das novas estruturas centrais da PESD em Bruxelas, neste campo
fundamental para qualquer actor internacional de peso.
Os europeus muitas vezes queixam-se que não têm um peso na política de
determinadas regiões proporcional ao nível de ajuda ao desenvolvimento, de
investimento, e de trocas comerciais ' o exemplo mais citado será provavelmente
o de Israel e da Palestina. Mas qualquer actor racional, na vida privada, como
na vida internacional, se tiver de escolher entre o bem-estar material e a
sobrevivência, entre a bolsa e a vida, escolherá esta última. Portanto, se a UE
quiser ser mais influente no campo internacional, mesmo que seja ao serviço de
uma política mais ética e mais promotora da paz, terá de se preparar mais
credivelmente para a guerra.
CRISES E DESAFIOS PARA A SEGURANÇA EUROPEIA
É um cliché afirmar que não há nada melhor do que uma ameaça iminente para
despertar a atenção para o campo da segurança e defesa e solidificar uma
determinada comunidade política, que passa a ser concebida em termos de nós
contra eles[5]. Mas os clichés existem por alguma razão. De facto, é normal que
períodos de paz levem ao relativizar das necessidades defensivas. Foi essa a
tendência dominante na Europa sobretudo desde 1991, com o fim da urss, tanto
mais que existe, mais ou menos implicitamente, a ideia de que se alguma ameaça
séria viesse a surgir a Europa poderia contar com os Estados Unidos.
Portanto, o que caberia perguntar mais precisamente é qual o tipo de crise que
levaria a Europa a questionar essa assunção sobre o carácter essencialmente
pacífico das suas relações com outros estados, ou que a levassem a questionar a
sua dependência confortável face aos Estados Unidos?
Tal pode parecer altamente improvável ' uma ameaça iminente e directa à Europa,
além de improvável no curto prazo, seria dificilmente indiferente aos Estados
Unidos. Mas há outros tipos de crises que, não colocando uma ameaça vital, no
entanto afectam significativamente os interesses europeus e não os americanos.
Foi precisamente como resultado de uma crise desse tipo ' no Kosovo em 1998-
1999 ' que o processo de construção da defesa europeia começou. Poderá voltar a
suceder algo parecido ' crises e migrações descontroladas de estados falhados
na vizinhança imediata da eu?
Além dos Balcãs ' que parecem a caminho da estabilização, mas ainda não
estabilizados ', da Macedónia à Albânia, à Moldova e às zonas da Europa de
Leste, do Cáucaso ou ainda áreas do Magrebe, como Marrocos ou Argélia, que,
sendo aparentemente estáveis, no entanto vivem situações políticas ambíguas
entre o autoritarismo e a democracia pluralista e por vezes estão sujeitos a
ameaças externas, como é o caso paradigmático da Geórgia face à Rússia.
O exemplo da guerra civil argelina, que tanto preocupou e ameaçou a segurança
da França, sem que isso tenha interessado muito os Estados Unidos, mostra que
tal divergência de percepções de ameaça e de disponibilidade para lidar com ela
está longe de ser inconcebível.
Uma outra ameaça bem real é a colocação por terroristas de bases em estados
falhados em zonas mais afastadas, mas que podem mais facilmente levar a cabo
atentados na Europa, mais permeável e mais próxima da África e do Médio Oriente
do que os Estados Unidos. Em concreto, a Al-Qaida, baseada no Afeganistão-
Paquistão e afiliados vários, pode vir a ser uma ameaça bem mais real para os
europeus do que para os norte-americanos caso as acções militares e
clandestinas contra esse rede se revelarem em última análise infrutíferas.
Não é, no entanto, evidente que esta percepção seja clara na Europa, nem que
numa arena potencialmente vital para a segurança europeia a UE tenha vontade de
investir muito significativamente na sua capacidade de dar uma resposta à
altura do desafio, no quadro da NATO e não só. Mais, se esta difícil campanha
levar os Estados Unidos a rever a sua estratégia e a retirar-se mais, e
resguardar-se de intervir em crises futuras como aconteceu no pós-Vietname,
pode bem ser que a Europa seja confrontada com um novo caso, uma nova crise com
o excesso de confiança no alinhamento automático e na capacidade ilimitada dos
Estados Unidos para defender a segurança europeia.
Há ainda, evidentemente, ameaças a rotas fundamentais para os interesses
europeus de que o caso mais flagrante actualmente são os piratas da Somália.
Este é um bom exemplo de insurreição marítima, já que utilizam a cobertura de
actividades marítimas civis e a difusão e o carácter episódico destas
emboscadas a navios mercantes como forma de iludir a capacidade de as marinhas
europeias e outras darem resposta à situação. Este é o tipo de desafio para o
qual a Europa tem de se preparar melhor, com equipamento e treino mais adequado
' por exemplo, ao nível da expansão dos fuzileiros e da capacidade de abordagem
aerotransportada. Aliás, helicópteros, a par de aviões de transporte, e
veículos de blindagem reforçada para deslocação de tropas são meios por
excelência de projecção do poder, em falta no arsenal europeu, sendo vitais
para operações de projecção de força fora da Europa, no sentido da
estabilização e contra-insurreição em zonas de crise.
Ainda, neste quadro de ameaças estratégicas vitais cabe também a perturbação do
potencial do abastecimento de produtos estratégicos para a Europa, recursos
energéticos fundamentais à indústria, ou de produtos alimentares necessários à
sobrevivência dos europeus. Ainda que os cortes de gás natural por parte da
Rússia reflictam sobretudo uma disputa com a Ucrânia, ainda assim servem para
recordar a vulnerabilidade da economia e de necessidades básicas dos europeus.
Há ainda que considerar, neste quadro económico, uma outra crise que poderá ser
sumamente relevante para o desenvolvimento de uma defesa europeia. Trata-se da
crise financeira de 2008 em diante. Ela tem claramente também dimensões
estruturais na Europa, que têm a ver com a capacidade futura dos estados
europeus sustentarem um sistema de segurança social generoso num quadro de
crescente competição económica do resto do globo. Mas, se bem aproveitada, uma
crise pode ser uma boa oportunidade para expandir a capacidade de resposta
colectiva, de criar novas instituições capazes de dar uma resposta de conjunto
à instabilidade que tenderá a resultar deste tipo de fenómenos.
Sobretudo é lógico que um forte esforço de contenção orçamental a partir de
2011 com que os estados da UE se comprometeram também tenderá a favorecer
iniciativas no quadro da Agência Europeia de Defesa no sentido de conter custos
pela convergência de investimentos, mantendo o compromisso dos estados-membros
para melhorar progressivamente as suas capacidades de defesa, de investigação,
de aquisição e de armamento[6]. Resta saber se esta agência tem realmente
condições ' nomeadamente financeiras ' para avançar e trabalhar em ligação com
a indústria norte-americana de defesa.
SEGURANÇA EUROPEIA E ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA
É impensável, no curto e médio prazo, que a Europa venha a assumir posições no
campo da defesa e segurança em oposição directa aos Estados Unidos. A protecção
dada pelos Estados Unidos tem sido fundamental para a segurança europeia, e
mesmo como mecanismo de protecção e garantia última de segurança colectiva que
permitiu a estados como a França e a Alemanha darem-se ao luxo de avançar com
confiança em políticas de integração crescente das suas economias, depois de
séculos de guerras[7].
No entanto, este «império por convite» dos Estados Unidos na Europa criou
também um grau de dependência pouco saudável da parte dos europeus, que os
deixou fragilizados e incapazes de tomar a iniciativa em áreas estratégicas
fundamentais[8]. Mesmo quando isso não implica qualquer desejo de oposição aos
Estados Unidos, e possa levar a dinâmicas que seriam positivas para os próprios
norte-americanos, limitando a sua capacidade de avançar com políticas
inapropriadas, e permitindo menos dispêndio de recursos no campo da defesa por
parte dos Estados Unidos.
A NATO, e em particular a realidade substantiva a que esta dá corpo da aliança
entre os Estados Unidos e a maioria dos estados europeus, tem sido o melhor e o
pior do ponto de vista da segurança e defesa europeia, que tem vivido entre o
conforto do artigo 5.º do Tratado de Washington como garantia última da sua
segurança, e o incapacitante acordo Berlim Plus que limita o desenvolvimento de
um quartel-general operacional europeu e coloca a UE numa situação de
dependência dos recursos do comando militar conjunto da NATO, dando assim a
esta última poder de veto sobre as acções europeias neste campo.
Poucos contestarão que, para o melhor ou para o pior, de acordo com os pontos
de vista, a NATO tem também sido averdadeiradefesa europeia. A segurança da
Europa tem sido em boa medida garantida e paga pelos Estados Unidos, resultando
em poupanças substanciais dos europeus, permitindo nomeadamente um Estado
social bem mais generoso na Europa relativamente ao outro lado do Atlântico.
A NATO tem sido igualmente o escudo seguro que tem permitido o desenvolvimento
gradual, cauteloso, titubeante da política de defesa e segurança europeia, sem
que isso seja visto como colocando um risco para a segurança dos estados
europeus. A PESD, com as suas dezenas de relativamente modestas e pouco
militarizadas missões no exterior, pode ser vista como um sucesso, em boa
medida porque ninguém realmente espera que esse seja o real teste da segurança
e defesa europeias, que continuam a ser, no essencial, garantidas pela aliança
com os Estados Unidos ao abrigo do famoso artigo 5.º do Tratado de Washington
de 1949 que constitui a NATO.
Se os países do antigo bloco soviético quiseram entrar na UE, quiseram primeiro
entrar na NATO, pois viam aí ' com uma nitidez de visão muito facilitada pela
sua anterior fragilidade face o poder de coacção da Rússia soviética ' a real
garantia de segurança europeia. Só depois deste ponto essencial estar
garantido, se preocuparam com o luxo adicional, sem dúvida altamente
apetecível, que é fazer parte da UE[9].
Será que isso poderá continuar a ser assim? Pode parecer duvidoso que os
Estados Unidos, sobretudo numa situação de crise, se permitam tal luxo. O
Estado providência europeu é em parte um luxo pago pelos contribuintes norte-
americanos na forma de enormes despesas militares dos Estados Unidos que depois
se traduzem numa dissuasão militar credível norte-americana extensível à defesa
da Europa. Esta situação estará necessariamente sob pressão das exigências de
competitividade crescente do Ocidente face a economias mais periféricas e, pelo
menos por enquanto, não tão exigentes do ponto de vista da qualidade de vida.
Tradicionalmente, o grande sacrificado no campo da despesa do Estado ' veja-se
as dinâmicas de descolonização, ou do pós-Guerra Fria ' foi precisamente o
campo da defesa no exterior. Não há razão para pensar que os Estados Unidos
continuarão a ser imunes a essa pressão. Pelo contrário, há já indicadores
claros de uma política de corte nas despesas militares norte-americanas por
parte do secretário da Defesa, Robert Gates[10].
Claro que perante uma ameaça iminente e vital para a segurança e sobrevivência
da Europa, por razões de interesse próprio ' económico e estratégico '
dificilmente os Estados Unidos deixariam de alinhar ao lado dos europeus. No
entanto, num contexto pós-Guerra Fria, de ameaças muito difusas e variadas, são
muitas as crises possíveis em zonas próximas da Europa a que a ligam
importantes interesses, mas em que os norte-americanos não partilhariam nem a
avaliação da gravidade da crise, nem a vontade de se empenhar na sua resolução.
Foi precisamente quando isso sucedeu no caso do Kosovo, em 1998-1999, que se
deu um impulso decisivo no sentido do arranque da psde, por via da Cimeira de
Saint-Malo entre a França e a Grã-Bretanha.
Evidentemente, o reverso é também verdadeiro ' a Europa pode agora dar-se ao
luxo de se envolver menos ao lado dos Estados Unidos ' como o caso do Iraque de
2003 ilustrou em relação a uma parte significativa de estados europeus, que ou
ficou de todo de fora, ou enviou forças mínimas. Tal também tem ilustrado a
tendência para divisões significativas no interior da Europa, uma fractura da
sua política externa e de defesa, sempre que surgem divergências importantes
com os Estados Unnidos, acabando por paralisar uma acção conjunta da UE.
Foi condição compreensível de desenvolvimento da PESD a partir de 1999 ' por
exigência de países atlantistas como Portugal, a Grã-Bretanha e a Holanda ' que
esta fosse explicitamente formulada como não podendo nunca surgir em oposição à
NATO. Isso é mais uma vez religiosamente reafirmado, como seria de esperar, no
Tratado de Lisboa:
«respeitará as obrigações decorrentes do Tratado do Atlântico Norte
para certos Estados-Membros que vêem a sua política de defesa comum
realizada no quadro da Organização do Tratado do Atlântico Norte
(NATO) e será compatível com a política de segurança e de defesa
comum adoptada nesse âmbito.»[11]
Há, no entanto, uma oportunidade doirada de, com o apoio da Administração
Obama, acabar com o chamado acordo Berlim plus. O Presidente Obama quer mais
investimento do Estado no interior dos Estados Unidos. Para isso, precisa de
uma Europa mais activa no campo da segurança e defesa global para ter espaço
para uma relativa redução do esforço norte-americano neste campo sem que tal
possa criar um vazio substancial e perigoso no campo internacional. Os Estados
Unidos podem ter alguns receios de uma Europa demasiado autónoma no campo da
segurança e defesa, mas sobretudo os decisores actuais em Washington estarão,
acima de tudo, desejosos de ver uma Europa mais capaz neste campo.
Cabe aos líderes europeus assumir a liderança no sentido de uma mudança
indispensável para permitir uma real cooperação entre a UE e a NATO, assim como
para um verdadeiro desenvolvimento de uma política europeia de defesa comum, em
vez de uma subordinação paralisante desta última face à NATO, que não é
actualmente do interesse estratégico da Administração Obama.
Esta mudança não corresponde simplesmente a um desejo norte-americano
compreensível de reequilibrar contas e responsabilidades. É também um
investimento razoável por parte da Europa. Até mesmo em termos económicos
poderão daí advir importantes dividendos no quadro da chamada Estratégia de
Lisboa para tornar a Europa economicamente mais inovadora e dinâmica.
Historicamente, verifica-se que muitos dos avanços tecnológicos que têm tornado
os Estados Unidos uma economia tão dinâmica e inovadora vêm precisamente de
spin-offs civis de tecnologias desenvolvidas inicialmente no campo da indústria
militar.
Mais ainda, do ponto de vista dos princípios, um reforço das capacidades
militares europeias corresponde aos seus objectivos estratégicos, à sua
doutrina oficial, expressa na Estratégia Europeia de Segurança de 2003 a qual
estabeleceu como prioridade que se desenvolva uma abordagem preventiva
proactiva e holística das crises: «uma abordagem coerente baseada na pessoa
como princípio da segurança humana»[12]. Sendo que uma capacidade de abordagem
civil-militar destas crises seria uma vantagem estratégica fundamental da UE,
em resposta à grande ameaça nas últimas décadas à segurança internacional:
estados em crise. Ora tal só será possível, por muito importantes e necessárias
que sejam as componentes de reconstrução e governação civil, se existir também
a componente militar que crie o ambiente de segurança e mesmo as infra-
estruturas de base de comunicação, transporte, abastecimento de água,
indispensáveis para que tudo o resto possa funcionar. Não só os militares
muitas vezes são os únicos disponíveis e treinados para funcionar eficazmente
em zonas de crise em campos tradicionalmente civis. Mais, a criação de
condições de segurança mínima para as populações é algo essencial para um
efectivo exercício dos direitos fundamentais dos habitantes locais. Sem
segurança militar a segurança humana, o conceito holístico de segurança
explicitamente adoptado pela UE na última revisão da ESS, em 2008, não é
possível. Sem uma capacidade real europeia no campo da defesa a UE não terá
capacidade para defender os seus interesses próprios, mas também não poderá ser
uma potência normativa exemplar até às últimas consequências, garantindo, se
necessário pelo uso proporcional da força, o respeito pelas normas
internacionais da onu, apresentados como os grandes guias da política externa e
de defesa europeia.
O Tratado de Lisboa reconhece isso explicitamente:
«política comum de segurança e defesa garante à União uma capacidade
operacional apoiada em meios civis e militares. A União pode empregá-
los em missões no exterior [...] de acordo com os princípios da Carta
das Nações Unidas.»[13]
O que é um indicador positivo de que há uma consciência generalizada desta
realidade ao nível dos 27 estados-membros da UE, mesmo que nem todos estejam
dispostos a tirar as mesmas conclusões em termos de investimentos necessários
para tornar estes princípios uma realidade.
CONCLUSÃO
Uma verdadeira defesa europeia exigirá passos em direcção aos quais o Tratado
de Lisboa aponta mas que realmente ainda não concretiza. A criação pelo Tratado
de Lisboa de um serviço de acção externa europeu, em parte comum, em parte
constituído por contribuições nacionais, aponta para o seu paralelo numa força
de defesa europeia que, no entanto, ainda não está prevista no acordo
constitucional entre os membros da UE que entrou em vigor em Janeiro de 2010.
Tal corresponde à tradição gradualista da política de integração europeia, ao
facto de a defesa e a segurança serem áreas de reserva da soberania dos estados
' são tradicionalmente o seu núcleo duro ' e portanto representaram desde o
início campos complicados de integrar como demonstraram o falhanço do Tratado
de Paris e da CED em 1954. E apesar das dificuldades de ratificação causadas em
parte, como vimos no caso irlandês, também pelas questões da defesa europeia, a
verdade é que tal como foi deixada clara no preâmbulo do Tratado de Lisboa a
intenção de
«executar uma política externa e de segurança que inclua a definição
gradual de uma política de defesa comum que poderá conduzir a uma
defesa comum, de acordo com as disposições do artigo 42.º,
fortalecendo assim a identidade europeia e a sua independência, em
ordem a promover a paz, a segurança e o progresso na Europa e no
mundo»[14].
Ou seja, a intenção da parte de um número suficiente de estados da UE avançarem
no sentido de uma defesa integrada é suficientemente forte para merecer esta
menção, mas não ao ponto de se concretizar desde já em mudanças institucionais
substanciais neste domínio que ficam no campo das possibilidades.
Uma componente essencial da segurança ocidental actual é a existência de uma
capacidade de defesa por dissuasão contra quaisquer ameaças estatais por via
das armas nucleares. O passo inicial da integração europeia foi a plena
integração da grande energia do presente ' o carvão ' e, imaginava-se, do
futuro ' a atómica. Foi assim que surgiu a CECA, mas também a EURATOM. Pode
dizer-se que o passo final na integração da defesa europeia será a integração
dos sistemas nucleares da França e da Grã-Bretanha. Da mesma forma que a
integração diplomática plena passaria por um lugar único para a Europa no
Conselho de Segurança. Todos estes passos no entanto parecem estar num
horizonte longínquo. Contudo, a pressão de acontecimentos inesperados que
sublinhem a vulnerabilidade europeia, ou de alguns dos seus estados em
particular, nomeadamente daqueles que ainda alimentam uma política com ambições
globais, nomeadamente no campo da defesa. Isso poderá surgir por via de um
envolvimento de um desses estados em situações no exterior que lhe escapam ao
controlo e às capacidades. Ou poderá advir de uma ameaça premente a interesses
vitais do conjunto da Europa, ou de boa parte dela, por exemplo, no campo da
energia ou de outros recursos estratégicos.
Portanto, não só o mais provável, mas talvez também o mais desejável, será uma
transição gradual e gradualista neste campo politicamente muito delicado. Basta
imaginar qual poderia ser o efeito numa defesa europeia comum de uma acção
militar falhada no exterior ' esta é uma política em que não estão em causa
apenas mais ou menos subsídios, mais ou menos exportações, mas sim vidas de
soldados e civis.
Tendo em conta este facto, e a existência de tradições estratégicas
diferenciadas ainda apenas minimamente ligadas pela Estratégia de Segurança da
UE de 2003, o elemento que poderá contribuir para um arranque de uma defesa
europeia mais integrada e mais eficaz, será o de usar os mecanismos do Tratado
de Lisboa ' particularmente o papel de condução desta área pelo alto
representante e da Comissão, assim como ao papel da Agência Europeia de Defesa
no sentido de identificar e resolver problemas ao nível de equipamento
necessário aos estados europeus. E, sobretudo, do mecanismo das cooperações
estruturadas permanentes, com a sua lógica de atracção dos mais reservados que
inicialmente se excluiriam desse mecanismo[15].
Neste momento é enorme a pressão por via da crise económica e do seu custo em
termos de crescimento da despesa pública, para fazer grandes cortes na mesma. É
difícil ver como tal será possível sem que isso limite a disponibilidade dos
estados Unidos para se envolverem militarmente na resolução de crises futuras
que possam surgir a ameaçar a Europa. Enquanto na Europa é difícil ver mais
cortes significativos neste campo da defesa sem que eles afectem decisivamente
a capacidade mínima de cada um dos Estados europeus manter por sua conta
instrumentos militares fundamentais.
A solução lógica será portanto fazer cortes sem perder meios efectivos por via
da integração de recursos em programas europeus conjuntos de rearmamento e
modernização, por iniciativa do alto representante e sob a égide da AED, e
mesmo na constituição de algumas unidades militares europeias integradas. Isso
será mais provável, inicialmente, em áreas fundamentais para concretizarem a
Estratégia Europeia de Segurança, como sejam os meios logísticos militares
necessários para uma capacidade credível de projecção rápida e sustentável de
cerca de 60 mil efectivos europeus em qualquer parte do mundo. A logística
sempre foi a Cinderela dos militares ' indispensável, mas destinada a ficar nos
bastidores sem que ninguém repare muito nela, ou queira investir grandes meios
para a vestir decentemente ' e, portanto, provavelmente haveria menos
resistências, por exemplo, à criação de uma frota europeia de A400, ou, pelo
menos, à sua gestão de uma forma coordenada permitindo a máxima utilização de
recursos de todos os estados europeus numa qualquer situação de crise.
A Europa perdeu poder de controlo sobre o mundo nestes últimos dois séculos.
Primeiro foram as Américas a tornar-se independentes nos séculos xviii e xix.
Depois, foi a vez da Ásia e da África na segunda metade do século xx. Os
grandes impérios coloniais europeus desapareceram entre 1945 e 1975, mas os
estados europeus têm conseguido manter uma influência nas questões
internacionais desproporcionada face ao seu tamanho. Isso deve-se sobretudo à
manutenção de grandes capacidades produtivas e organizacionais, no campo
económico, mas também ao nível diplomático e militar.
Mas esta vantagem relativa tende a perder-se com a passagem do tempo, a
crescente assertividade de potências não ocidentais, que têm começado a
organizar-se cada vez melhor no campo produtivo, e também na campo da projecção
militar de poder.
O processo de integração europeia correspondeu a vários objectivos estratégicos
fundamentais. Alguns já foram obtidos, e são de enorme valor apesar de serem
dados adquiridos. É assim particularmente com a pacificação da Europa e das
relações entre os seus estados; hoje em dia é inconcebível um conflito armado
entre membros da UE. No entanto, os objectivos estratégicos principais da
integração europeia precisam de um esforço contínuo de adaptação: nomeadamente
garantir para uma Europa pós-imperial, se não um peso dominante na agenda
internacional, que perdeu desde 1945, pelo menos um papel global importante e
mesmo indispensável a qualquer grande decisão no campo internacional. A Europa
não é um império unificado desde o tempo dos romanos, e não tem hoje impérios
coloniais. Os europeus terão de decidir nos próximos anos se ainda querem
contar, por via de uma coordenação estreita e alguma integração eficaz da
política externa e de defesa no seio da UE, numa política internacional cada
vez mais dominada por estados de dimensões continentais ' superpotências de que
a Rússia e os Estados Unidos foram o primeiro exemplo, mas entre os quais,
actualmente, se destaca a China, o Brasil, a Índia, e mesmo, em dimensões
diferentes, a Nigéria, a África do Sul, a Arábia Saudita, a Indonésia, a
Austrália.
A decadência reactiva da Europa que se tem verificado desde 1914 era
dificilmente evitável. Mas não implica uma redução dos europeus à
insignificância no campo da defesa e segurança internacionais ' para a qual, em
aliança com os Estados Unidos, mas por vezes também sozinhos nomeadamente na
África, têm continuado a dar um contributo importante. Mas se a Europa vier a
ser sobretudo, e apenas, uma expressão geográfica e não política, então mesmo
os seus estados de maiores dimensões e capacidades ' a Alemanha, a França, a
Grã-Bretanha ' ficarão cada vez mais relegados para um segundo plano no campo
internacional.
O futuro da Europa no mundo estará portanto dependente da medida em que os seus
estados utilizem o mais possível os instrumentos do Tratado de Lisboa para
fazer mais investimentos conjuntos numa nova geração de equipamentos militares
para eficaz projecção de força no exterior, e para colocar de pé uma capacidade
militar europeia coordenada e pelo menos em parte integrada, adequada às
ameaças de um novo século, cujas dinâmicas internacionais surgem dominadas por
um aumento do número de potências emergentes, potencialmente revisionistas[16].
Esta só não é uma receita para uma nova guerra mundial graças sobretudo ao
armamento atómico que qualquer grande potência poderá desenvolver, o que
significa que qualquer conflito entre grandes potências seria certamente
catastrófico. Mas é uma situação que aponta pelo menos para uma elevada
probabilidade de sérias tensões, em que os instrumentos militares certamente
continuarão a desempenhar algum papel numa sociedade internacional regida por
mais regras, mas ainda longe de um governo mundial único.
NOTAS
[1] A este respeito ainda que uma visão não inteiramente convergente de
Giegerich, Bastian ' «European militar crisis management». Adelphi paper 307.
Londres: IISS, 2008.
[2] Artigo 18.º do tuc.
[3] A preocupação com isso está presente na referência explícita que não há
choque a rentre a nova diplomacia e os Estados Unidos, cf. artigo 15.º do tuc.
[4] Artigo 42.º do Tratado da União Europeia (TUE).
[5] A afirmação clássica desta lógica é Schimtt, Carl ' The Concept of the
Political. Chicago: CUP, 1996.
[6] Artigo 41.º do TUE.
[7] Brooks, Stephen, e Wohlforth, William ' «Hard times for soft balancing». In
International Security. Vol. 30, No. 1, 2005, pp. 72-108.
[8] Lundestad, Geir ' «Empire by invitation? The United States and Western
Europe, 1945-1952». In Journal of Peace Research. Vol. 23, N.º 3, 1986, pp.
263-277.
[9] Rühle, Michael, e Williams, Nick ' «Why NATO will survive?». In Comparative
Strategy. Vol. 16, N.º 1, 1997, pp. 109-115.
[10] Rubin, Elizabeth ' «What is Robert Gates really fighting for?». In Time, 3
de Fevereiro de 2010. (Consultado a: 12 de Fevereiro de 2010). Disponível em:
http://www.time.com/time/printout/0,8816,1959013,00.html.
[11] Artigo 42.º do TUE.
[12] 2008 ESS Review: 2, 11.
[13] Artigo 42.º do TUE.
[14] Preâmbulo do TUE.
[15] Artigo 42.º do TUE.
[16] E.g. Klare, Michael ' Emerging Power, Shrinking Resources.Nova York:
Columbia, 2008.
Rua Dona Estefânia, 195, 5 D
1000-155 Lisboa
Portugal
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