A ilusão colectiva do colapso americano
A ilusão colectiva do colapso americano
Luís Pais Bernardo
Licenciado em História pela FCSH– UNL. Mestrando em Política Comparada no ICS–
UL.
JOSÉ LUÍS FIORI, CARLOS DE AGUIAR MEDEIROS E FRANKLIN SERRANO
O Mito do Colapso do Poder Americano
Rio de Janeiro, Editora Record, 2008, 280 páginas
A 11 de Setembro de 2001, os Estados Unidos sofreram o primeiro ataque
terrorista dentro das suas fronteiras continentais. Foi a primeira demonstração
de que a maior potência global não auferia de imunidade total e de que o seu
território continental era, de facto, atingível. Em suma, a queda do World
Trade Center constituiu um choque para a estratégia americana, provocando uma
reflexão prolongada em torno das assunções básicas do posicionamento americano
dentro do sistema internacional. A ideia emergente de que o «poder» americano,
essa esfera agregada composta pela situação estrutural e diacrónica dos Estados
Unidos (cuja excepcionalidade tem sido tacitamente assumida, até, pelos seus
opositores intelectuais e estratégicos mais aguerridos), estaria em declínio,
transformou-se em tema de um debate cujo fim não está à vista.
De facto, tal como no caso de todas as potências historicamente tendentes a um
posicionamento hegemónico, os Estados Unidos definem os termos de todo o debate
em torno da topologia e da ciclicidade do sistema internacional. A maioria dos
participantes neste debate tem defendido a reconfiguração do sistema
internacional, que acarretaria a redistribuição (necessariamente assimétrica)
do poder. O corolário lógico desta posição é a de que o poder americano teria
entrado num processo de declínio adaptativo; alguns teóricos mais radicais,
como Immanuel Wallerstein ou Giovanni Arrighi, investidos de um projecto
epistemológico específico, identificaram ' baseando-se na ideia de que o
sistema internacional capitalista teria entrado num novo ciclo ' uma
trajectória declinante dos Estados Unidos.
TRÊS CAPÍTULOS, UMA PERSPECTIVA DE BASE
A obra de Fiori, Medeiros e Serrano contraria esta perspectiva. Com base no
campo da economia política internacional, em que os três se especializaram,
através de estadas prolongadas em Cambridge, o livro em análise é constituído
por três capítulos estruturados como artigos independentes e de índole
distinta, mas guiados por uma noção fundamental: o poder americano não está em
declínio; pelo contrário: nos últimos anos do século xx e no princípio do
século xxi, o poder político e económico dos Estados Unidos, em termos
agregados, terá aumentado substancialmente e encontra-se em expansão.
O SISTEMA INTERNACIONAL COMO «UNIVERSO EM EXPANSÃO»
No primeiro desses artigos, intitulado «O sistema interestatal capitalista no
início do século xxi», José Luís Fiori empreende uma crítica à ideia,
propagada, por exemplo, pelos já referidos Wallerstein e Arrighi, de que o
sistema internacional estaria em presença de uma «crise terminal» do poder
americano. O autor afasta a hipótese de que o desenvolvimento histórico da
economia política mundial possa ocorrer em termos de «ciclos hegemónicos» (pp.
12-22), declarando a impossibilidade de comparar a situação actual dos Estados
Unidos a qualquer outro processo histórico, dada o seu carácter excepcional. Ou
seja, para Fiori, o desenvolvimento do sistema-mundo dá-se de forma
incremental. Por outras palavras, o sistema internacional é um «universo em
expansão contínua» e os seus momentos conjunturais críticos são «explosões
expansivas». Assim, o momento actual não é teórica ou empiricamente comparável
a momentos análogos de outras dominações hegemónicas. Desse modo, o autor
examina a realidade com base na noção de que a presença dos Estados Unidos,
como actor contemporâneo de um processo histórico de muito longa duração, detém
vantagens significativas sobre todos os outros actores. A própria presença da
potência hegemónica é transformada em motor do sistema: a «pressão competitiva»
observada em anos recentes é uma função dessa presença. A ascensão da China e
da Rússia, recuperada da desestruturação enfrentada nos anos 1990, é um produto
da nova corrida imperialista. Ao invés de um conflito declarado, o autor
sustenta que a crescente interdependência financeira entre os Estados Unidos e
a China será o fenómeno a ter em conta no início do século xxi (p. 68). A
corrida imperialista não significará, para Fiori, um declínio do poder
americano: será uma função da sua continuidade (pp. 60-68).
O PODER AMERICANO COMO ESTRATÉGIA ECONÓMICA
Franklin Serrano empreende uma análise mais especificamente económica do poder
americano, reflectindo acerca dos padrões de acumulação capitalista e da dívida
externa americana. Em «A economia americana, o padrão dólar flexível e a
expansão mundial nos anos 2000», o autor sustenta que o maior obstáculo ao
crescimento dos Estados Unidos não é um conjunto de desvantagens competitivas
conjunturais, mas a excessiva desregulação do seu sistema financeiro, que
também é a causa da crise actual. O fraco crescimento da procura e a crescente
desigualdade na redistribuição de rendimento constituem o principal factor
limitador da economia americana: o crescimento agregado da economia mundial,
nos anos 1990, terá sucedido pelo incremento exponencial dos mercados internos
asiáticos, ao mesmo tempo que o padrão dólar flexível continuava ' e continua '
a mediar todas as relações financeiras internacionais. Assim, e malgrado uma
trajectória de crescimento aparentemente desvantajosa para os Estados Unidos,
estes continuaram e continuam numa posição altamente privilegiada, apesar de se
cristalizarem desigualdades internas e de, por exemplo, a capacidade de pressão
dos trabalhadores estar em decréscimo acentuado (p. 163). A potência hegemónica
continua a dominar, ipso facto, o acesso ao sistema financeiro mundial. Em
suma, Serrano admite que existe, de facto, uma redução do poder agregado dos
Estados Unidos, visível na crise do acesso ao crédito, mas que, longe de ter
entrado em colapso, o poder da maior potência global continua assente em
elementos estratégicos essenciais, especialmente a «moeda mundial» (pp. 110-
134).
TRANSIÇÕES ECONÓMICAS E INFLUÊNCIA EXTERNA
O último artigo da obra, da autoria de Carlos Aguiar de Medeiros, empreende uma
análise comparativa da transição económica na China e na Rússia. Em
«Desenvolvimento económico e ascensão nacional: rupturas e transições na Rússia
e na China», o objectivo é claro: demonstrar que a transição entre modelos
económicos, nos dois países em causa, é explicável, em grande medida, pelo
papel dos Estados Unidos. Embora defenda que as configurações internas de
poder, a gestão dos desafios transicionais pelas elites governativas e a
concepção estratégica das reformas devem ser consideradas variáveis
explicativas, Medeiros atribui um papel essencial à evolução do sistema
internacional definido pelas prioridades dos Estados Unidos. Ou seja, o
desmoronamento da União Soviética terá sido, num grau maior do que é,
geralmente, suposto, um efeito das políticas e decisões estratégicas americanas
ao longo de um período relativamente extenso; a adaptação da Rússia a uma nova
realidade foi feita num contexto de supremacia americana e incapacidade
governativa das elites herdeiras da URSS. Na China, por outro lado, a transição
iniciada por Deng Xiaoping e continuada, até ao presente, pelo Partido
Comunista Chinês, ocorreu de forma controlada e num contexto de
interdependência crescente entre a República Popular e os Estados Unidos.
Assistimos, actualmente, a uma reaproximação entre Moscovo e Pequim. Em suma, e
controlando as restantes diferenças, o factor diferenciador da transição
económica na China e na Rússia é a sua relação com os Estados Unidos e a
estrutura do sistema internacional.
UM EXAME EMPIRICAMENTE QUESTIONÁVEL
O resumo alargado dos artigos em causa revela-se necessário pela diversidade de
argumentos construída a partir de uma única assunção: o poder dos Estados
Unidos não entrou em colapso. Uma primeira aproximação crítica a esta obra
obriga-nos a sustentar a hipótese de que o exame empírico não foi efectuado com
as precauções necessárias para diminuir o enviesamento resultante das posições
ideológicas e epistemológicas dos autores. Consideramos, de facto, que a
assunção de posições claras é refrescante, num contexto académico em que a
negação da interpretação se tornou, em si mesma, um axioma normativo e
enviesado. Contudo, esta obra centra-se, em excesso, na inversão da análise
empírica dotada de princípios básicos de cientificidade. Embora concebamos a
hipótese de que o poder americano se tenha mantido incólume, parece-nos que os
autores não efectuaram uma análise sistemática ou simétrica do desenvolvimento
do sistema internacional. Por outras palavras, a estrutura da obra ' que,
repetimos, não pretende ser uma obra asséptica, é o produto de convicções
devidamente fundamentadas (teorica e politicamente) ' é problemática porque não
existem falhas na confirmação empírica das proposições analíticas dos artigos;
a coerência dos postulados teóricos com as inferências empíricas é artificial.
PARA UMA LEITURA CRÍTICA DA OBRA
Embora o artigo de Franklin Serrano seja menos sugestivo, dado limitar a
afirmação mais clara de conclusões taxativas, é o mais bem-sucedido, propondo
uma conclusão coerente com a análise empírica efectuada. José Luís Fiori, por
outro lado, procura limitar a comparabilidade da situação actual dos Estados
Unidos, afirmando que o seu declínio «relativo» esconde a manutenção de uma
hegemonia agregada; a sua crítica à teoria dos ciclos hegemónicos e adopção da
ideia de um «universo em expansão contínua» é, na nossa opinião, um artifício
intelectual erigido no sentido de confirmar uma pressuposição. Carlos Medeiros,
ao efectuar uma análise histórica comparativa das transições económicas na
Rússia e na China, incorre no erro de atribuir uma significância arbitrária à
influência e padrão de decisões estratégicas americanas; ainda assim, trata-se
de um estudo descritivamente interessante.
Em conclusão, trata-se de uma obra cujo interesse advém da sua honestidade
intelectual. Na medida em que os postulados teóricos e o posicionamento dos
autores são claros, o leitor estará na posse das ferramentas necessárias a uma
leitura crítica dos três artigos, que confirmam taxativamente as pressuposições
dos autores, com a excepção relativa de Serrano. Nesse sentido, O Mito do
Colapso do Poder Americano oferece uma interessante visão alternativa do
sistema internacional contemporâneo, mas é uma leitura a efectuar com precaução
e um olhar crítico muito atento.
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