Os Estados Unidos da América e a nova identidade internacional do Brasil
Os Estados Unidos da América e a nova identidade internacional do Brasil
Thiago Carvalho
Investigador do IPRI-UNL e do Centro de Estudos de História Contemporânea
Portuguesa (CEHCP). Mestre em História das Relações Internacionais pelo ISCTE,
prepara actualmente uma tese de doutoramento sobre as relações luso-brasileiras
entre 1968 e 1985.
SPEKTOR, MATIAS
Kissinger e o Brasil.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2009. 234 páginas.
A recente obra de Matias Spektor, Kissinger e o Brasil, versa sobre um dos
momentos mais dinâmicos da política externa brasileira. O pano de fundo diz
respeito à reaproximação diplomática entre Washington e Brasília, que procurava
estabelecer um novo padrão de relacionamento bilateral ajustado à conjuntura e
à identidade internacional dos dois países em meados da década de 1970. A
partir desta análise, Spektor questiona a tese da rivalidade emergente,
amplamente aceite pelas elites brasileiras e que tem influenciado a concepção e
a condução da política externa1. Recorrendo a fontes multinacionais e a
documentação recém-desclassificada, o autor elabora uma análise mais sóbria e
sofisticada das relações entre os dois países.
Esta revisão é tanto mais oportuna se considerarmos que os vínculos com os
Estados Unidos permanecem prioritários para o Itamaraty e que o Brasil assume
uma posição de relevo no sistema internacional.
O BRASIL E A NOVA ESTRATÉGIA AMERICANA
O ponto de partida deste trabalho é a análise da conjuntura em que decorreu a
reaproximação diplomática entre Washington e Brasília. A doutrina Nixon
conferia importância acrescida às periferias do sistema na prossecução da
política externa norte-americana. Doravante, o Departamento de Estado pretendia
partilhar os custos da manutenção da ordem global com determinados países
emergentes, enquadrando-os na sua estratégia internacional. É neste contexto
que os Estados Unidos demonstram um interesse renovado pelas relações com o
Brasil que, devido ao rápido crescimento económico e a uma política externa
ambiciosa, assumia crescente protagonismo regional.
O autor observa que a iniciativa de redimensionar os vínculos bilaterais não
reunia consenso no seio de ambas as administrações. Em Washington, as opiniões
divergiam entre os que questionavam a importância do Brasil e os que viam uma
aliança com o país como o meio mais eficaz de implementar a estratégia norte-
americana no subcontinente. Junto das elites brasileiras, prevalecia a ideia de
que a melhor maneira de assegurar o interesse nacional e a autonomia política
seria mantendo uma posição equidistante em relação à potência dominante. Por
isso, o Itamaraty recebeu com reservas a iniciativa do Departamento de Estado,
estabeleceu um diálogo ambíguo que salvaguardasse alguma margem de manobra, e
condicionou qualquer aproximação ao «reconhecimento simbólico do status
ascendente do Brasil» (p. 48).
A tentativa de cooperação entre os dois países revelou a existência de
divergências de fundo não só quanto às respectivas agendas internacionais mas
também quanto ao sentido atribuído por cada parte à reaproximação. O resultado
foi que a cooperação assentou num compromisso vago, capaz de adaptar-se às
circunstâncias mais adversas. Porém, como observa Matias Spektor, um vínculo
com baixo grau de institucionalização tornava-se demasiado sensível aos
elementos simbólicos e retóricos e muito dependente da acção dos negociadores
directamente envolvidos (p. 62). Por isso, o autor assentou parte substancial
da sua tese na análise da relação desenvolvida entre, o então secretário de
Estado norte-americano, Henry Kissinger, e o seu homólogo brasileiro, António
Azeredo da Silveira, considerando-os actores decisivos no processo de
reaproximação que levou à ratificação do Memorando de Entendimento (1976) e que
estabeleceu um novo desenho para o relacionamento bilateral
2
. A opção por uma interpenetração histórica centrada na actuação de duas
personalidades que deixaram uma marca indelével na política externa dos seus
países, procura explicar como a cooperação avançou mesmo quando as suas bases
reais eram questionáveis.
Em meados dos anos 1970 parte substancial das preocupações de Washington em
relação à segurança vinha do hemisfério Sul. O Departamento de Estado julgava
que uma parceria com o Governo brasileiro permitiria relançar a sua estratégia
para o subcontinente com um mínimo de concessões. Por sua vez, o Itamaraty
ambicionava maximizar os benefícios de uma relação estreita com os Estados
Unidos evitando maiores comprometimentos. Foi com estas aspirações
contraditórias que ambas as partes procuraram redimensionar os vínculos
bilaterais.
O PRAGMATISMO RESPONSÁVEL E A COOPERAÇÃO COM OS ESTADOS UNIDOS
Uma das principais marcas do Governo de Ernesto Geisel (1974-1979) foi o
desenvolvimento de uma política externa de longo alcance que ficou conhecida
por pragmatismo responsável
3
. A obra de Matias Spektor dá um contributo importante para a sua compreensão,
nomeadamente ao aprofundar o estudo da relação existente entre o processo
político interno e a orientação da diplomacia face à proposta de cooperação
norte-americana. O autor observa que, apesar do franco entendimento existente
entre o Presidente Geisel e o seu chanceler, Azeredo da Silveira, ambos faziam
leituras distintas dos dividendos a esperar do pragmatismo responsável.
No entender de Ernesto Geisel, a política externa deveria concorrer para o seu
plano de liberalização do regime. Neste sentido, ao apoiar uma inserção
internacional mais autónoma e flexível, livre dos condicionalismos da Guerra
Fria, o Presidente não só pretendia viabilizar o projecto nacional-
desenvolvimentista como alterar o equilíbrio político interno. Ao relativizar a
importância do combate ao comunismo, o Governo enfraquecia o principal
argumento que a linha dura do regime usava para justificar as suas acções
arbitrárias e o endurecimento político. Esta apropriação simbólica da
diplomacia em curso foi uma constante neste período. No que diz respeito à
reaproximação aos Estados Unidos, o Governo apresentou-a aos sectores mais
conservadores como um sinal inequívoco de que o Brasil permanecia no campo do
Ocidente. Por sua vez, os termos vagos da cooperação bilateral deveriam
constituir uma prova da autonomia brasileira em relação à superpotência,
atenuando as críticas das esquerdas do regime. Matias Spektor chama a atenção
para o facto de que a política externa tinha o propósito de fortalecer o
Presidente num contexto de progressivo declínio do regime militar, assegurando
que fosse ele a conduzir o processo de liberalização até ao fim (p. 79).
Para o chanceler Azeredo da Silveira a diplomacia deveria projectar o país no
futuro. A política externa por ele implementada pretendia aproveitar aquilo que
considerava ser uma conjuntura favorável ' o relativo declínio norte-americano
e a multilateralização das relações internacionais ' e conquistar para o Brasil
uma nova posição no sistema. Este propósito concorreu para que os vínculos com
os Estados Unidos fossem percepcionados para além do binómio alinhamento
versusdistanciamento, procurando conciliar a defesa do interesse nacional com
os benefícios de uma relação estreita com Washington. Neste contexto, a
proposta de cooperação avançada pela Administração Nixon, que reconhecia uma
voz própria à diplomacia brasileira, foi entendida como uma oportunidade não só
para reformular as relações bilaterais em termos mais favoráveis como para
afirmar a nova identidade internacional do Brasil.
O empenho pessoal de Kissinger e Silveira não foi suficiente para pôr termo às
desconfianças recíprocas e às incertezas existentes em ambos os lados quanto ao
modelo e à eficácia da cooperação. Por conseguinte, a aproximação foi gradual e
pensada caso a caso, dando origem a um compromisso vago e flexível que
subvertia a estratégia até então seguida por Washington na sua relação com as
periferias emergentes. O resultado foi que pela primeira vez o Brasil foi visto
como um parceiro capaz de participar na construção da ordem global norte-
americana e com margem de manobra para discutir a sua visão de mundo com os
Estados Unidos.
O 25 DE ABRIL E A DESCOLONIZAÇÃO DE ANGOLA
O trabalho de Matias Spektor revela como a actuação do Itamaraty durante o 25
de Abril e a descolonização de Angola contribuíram para a projecção do Brasil
como um actor global, nomeadamente junto de Washington.
No que diz respeito à Revolução portuguesa, a diplomacia brasileira manteve
desde o princípio contactos estreitos com o novo regime, o que favoreceu a
avaliação de que a transição encaminhar-se-ia para a democracia liberal. Ao
actuar com eficácia num cenário onde os Estados Unidos vinham encontrando
alguma dificuldade, o Governo brasileiro apresentava-se como um interlocutor
credível e um parceiro privilegiado em Washington. Como observou o autor, este
foi o primeiro momento em que o Itamaraty «começou a sugerir que o Brasil tinha
capacidade de agregar valor à política externa americana em termos globais» (p.
101). Dessa maneira, as relações com Lisboa transpunham a sua importância
bilateral e inseriam-se numa estratégia mais ampla que pretendia assegurar um
novo estatuto internacional para o país.
Ao reconhecer o MPLA como representante do novo Estado angolano o Governo
brasileiro tomou uma decisão de longo alcance que contribuiu determinantemente
para alterar a sua imagem em África. Mais uma vez o Itamaraty seguira uma
estratégia própria e em discordância com o Departamento de Estado, obtendo
êxito num cenário que se revelaria de suma importância e onde os Estados Unidos
não estavam presentes. Matias Spektor demonstra como a diplomacia brasileira
procurou actuar como um intermediário entre Luanda e Washington, explorando ao
limite a dimensão simbólica que este papel poderia ter tanto no plano externo
como no interno. Caso Washington recorresse aos préstimos de Brasília, não só
reconhecia a sua intenção de actuar como mediadora no diálogo Norte-Sul,
nomeadamente entre o Ocidente e os movimentos de libertação, como conferia
alguma equidade ao relacionamento bilateral. Por outro lado, a cooperação com
Washington, no que diz respeito à questão angolana, poderia contribuir para
aplacar as críticas internas e externas relativas ao apoio brasileiro a um
movimento de inspiração marxista (pp. 118-122). No que diz respeito a uma
hipotética acção concertada na África, nomeadamente em Angola, teria sido
oportuno que o autor avaliasse até que ponto o Itamaraty e o Departamento de
Estado pretendiam realmente implementá-la e tinham possibilidades de o fazer.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O livro de Matias Spektor elucida como a aproximação entre o Brasil e os
Estados Unidos, ao longo da década de 1970, esteve sujeita às estratégias e
objectivos de cada momento. Enquanto que para Brasília as relações com
Washington eram centrais, para o Departamento de Estado o Brasil era apenas
parte de uma política mais ampla. Estas diferenças de percepção explicam a
formulação de um acordo vago que não foi capaz de resistir às suas próprias
contradições. No princípio da década de 1980 a incipiente cooperação bilateral
seria rapidamente substituída por conflitos crescentes. O unilateralismo da
Administração norte-americana e o reacender das tensões da Guerra Fria
diminuíram a importância do Brasil em Washington. Por sua vez, o neoliberalismo
emergente e o declínio do diálogo bilateral ressuscitou junto das elites
brasileiras a ideia de que a melhor maneira de salvaguardar o interesse
nacional seria distanciando-se dos Estados Unidos.
Ao reavaliar as relações entre o Brasil e os Estados Unidos, Spektor dá um
contributo fundamental para o estudo da política externa brasileira. Em
primeiro lugar, permite compreender em profundidade a história recente do
principal vínculo externo do país. Em segundo, questiona pertinentemente a
teoria da rivalidade emergenteao demonstrar que o desenvolvimento económico e a
afirmação internacional do Brasil não eram de todo contrários aos interesses
estratégicos norte-americanos.
Em terceiro, elucida que apesar da reaproximação bilateral ter ficado aquém dos
propósitos iniciais o seu legado foi inequívoco. Isto é, marcou o momento em
que o Brasil foi reconhecido pelos Estados Unidos como um actor global capaz de
influenciar a agenda internacional. Kissinger e o Brasilreflecte sobre um dos
raros episódios em que as duas partes estiveram empenhadas em aprofundar a
cooperação, revelando as contradições e potencialidades deste projecto. Ontem
como hoje é imperativo que ambos os países mantenham um diálogo que concilie as
divergências com o respeito pelas respectivas aspirações.
NOTAS
1
A tese da rivalidade emergentedefende que a modernização económica do Brasil e
a sua projecção internacional seriam entendidas pelos estados Unidos como um
desafio à sua hegemonia. Como consequência, era expectável que Washington
procurasse conter o desenvolvimento brasileiro. Esta teoria é transversal a
diversos segmentos da sociedade brasileira e encontrou eco em inúmeros
trabalhos académicos, dentre os quais destacamos: BANDEIRA, Luiz A. Moniz –
Brasil-Estados Unidos: a Rivalidade Emergente. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1989; BUENO, Clodoaldo, e CERVO, Amado L. – História da Política
exterior do Brasil. Brasília: UNB, 2002; VIZENTINI, Paulo F. – A Política
Externa do Regime Militar Brasileiro. Porto Alegre: UFRGS, 1998.
2
O memorando de entendimento (1976) constituiu um marco ao formalizar a parceria
estratégica entre Washington e Brasília. A sua importância foi tanto prática
quanto simbólica. Pela primeira vez, os Estados Unidos comprometiam-se a manter
encontros regulares com um país em desenvolvimento, reconhecendo assim o novo
estatuto internacional ambicionado pelo Brasil.
3
O pragmatismo responsávelassentava em três vectores: a política externa era
entendida como um instrumento do desenvolvimento económico; a diversificação
das relações diplomáticas pretendia a integração do país na economia mundial,
ampliando o seu peso internacional e relativizando as suas vulnerabilidades; e
a maximização da capacidade de decisão do estado face ao sistema internacional.
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