A NATO e o «regresso» da Turquia
A Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) está em mudança. O novo
Conceito Estratégico que, ao que tudo indica, será aprovado em Lisboa no fim de
Novembro, irá certamente realçar o que desde 1999 ' data do último Conceito
Estratégico ' tem sido uma progressiva reconfiguração da lógica e lugar da NATO
no mundo. De uma organização de defesa colectiva do espaço euroatlântico
durante a Guerra Fria, a Aliança Atlântica transformou-se numa organização de
alcance global, com missões no continente africano (Sudão e golfo de Adem),
Ásia (Afeganistão) e Europa (Kosovo), e com parcerias em 36 países desde a
Rússia a Marrocos.
Também a Turquia, membro da NATO desde 1952, aparenta estar em mudança, tendo
nos últimos ano vindo a revelar-se um actor com uma presença internacional cada
vez mais visível, com claro destaque para a região do Médio Oriente. O seu
único aliado estratégico na região, Israel, é-o cada vez menos, enquanto que
países tradicionalmente vistos com suspeição em Ancara, países como a Síria e o
Irão, viram as suas relações com a Turquia consideravelmente melhoradas.
Contudo, mais do que a especificidade das políticas de Ancara, importa
salientar a sua mudança de estratégia no sentido de tornar a Turquia num actor
de reconhecido peso internacional. Este redimensionamento da política externa
turca obriga, assim, ao reequacionar do papel deste país no quadro da Aliança
Atlântica.
É perante este contexto de mudanças mútuas que discutiremos o papel da Turquia
no quadro de uma NATO em vésperas de rever o seu Conceito Estratégico. Será
aqui defendido que, ao contrário do que acontecia durante a Guerra Fria, a
principal contribuição da Turquia para os interesses da Aliança será sobretudo
definida em termos político-diplomáticos e culturais e não tanto em termos
militares e estratégicos. Este contributo está, contudo, dependente do papel
que a NATO pretenda vir a desempenhar na próxima década. Parece claro, a partir
da análise do relatório do grupo de peritos liderado por Madeleine Albright,
«NATO 2020», que esse papel passa pela afirmação da NATO enquanto organização
de âmbito global. Para atingir esse objectivo, a NATO necessitará não só de
reforçar as suas actuais parcerias, como de criar novas parcerias com potências
emergentes como a China e a Índia. Importa assim saber qual o potencial
contributo da Turquia no contexto de uma NATO de dimensão global. Este artigo
procurará, de certa forma, responder a esta questão.
Em termos de estrutura, a primeira parte do artigo debruçar-se-á sobre o
significado do relacionamento entre as duas instituições e a forma como este
evoluiu desde o final da II Guerra Mundial de modo a melhor perceber o que
historicamente a Turquia representa para a NATO e vice-versa. O artigo passa em
seguida para a análise e avaliação das principais mudanças na actual política
externa turca, sendo aqui destacado o papel do actual ministro dos Negócios
Estrangeiros turco, Ahmet Davutoglu, na promoção de uma visão empreendedora e
activa na promoção dos interesses da Turquia no exterior. Finalmente, na última
parte serão apresentados os problemas e as mais-valias que a Turquia, enquanto
potência emergente, colocará a uma NATO de pendor global.
A NATO como pilar ocidental da identidade turca
1
Apesar do seu historicamente estratégico posicionamento geográfico, a Turquia
só passou a ser vista como um aliado indispensável pelos Estados Unidos após a
mudança de percepção por parte de Washington relativamente à emergente ameaça
soviética. O receio de contágio do expansionismo soviético ao Sudeste europeu
levou o então Presidente Henry Truman a definir o que ficaria conhecido como a
«doutrina Truman», pela qual se tornava fundamental garantir que a Grécia e a
Turquia não caíssem na zona de influência de Moscovo. Nos anos que se seguiram,
a Turquia e os Estados Unidos encetaram uma política de aproximação, com Ancara
a providenciar bases militares para os norte-americanos e a contribuir para o
esforço de guerra na Coreia e estes a ajudar económica e militarmente a Turquia
2.
Enquanto que para os Estados Unidos e aliados a adesão da Turquia à NATO
derivava de uma lógica estratégica ' só assim se justificava a adesão de um
país mais pobre e menos democrático (à semelhança do que já tinha acontecido
com Portugal) ao restrito grupo de membros da NATO ', na capital turca, a
adesão à NATO revestia-se de outra importância: correspondia à afirmação da
Turquia enquanto parte integrante do mundo ocidental
3
. Mais do que uma questão estratégica era para Ancara uma questão identitária.
De acordo com o Ministério dos Negócios Estrangeiros turco, a Turquia «fez a
escolha histórica de se aliar ao mundo livre e de se opor ao comunismo e ao
expansionismo soviético»
4
, resultando essa opção na adesão à NATO em Fevereiro de 1952.
A NATO foi, durante a Guerra Fria, vista por Ancara como central para a sua
política de segurança e defesa, sendo que, em contrapartida, a Turquia
contribuía para a segurança da Aliança ao defender e controlar um terço da
fronteira da NATO com o antigo Pacto de Varsóvia
5
. Em boa verdade, o facto de pertencer à NATO fez com que até ao final da
Guerra Fria, apesar de toda a instabilidade interna, a Turquia tivesse um
estável pilar externo onde se apoiar
6
, ao mesmo tempo que permitia às elites de Ancara cumprir o desígnio kemalista
de tornar a Turquia um moderno país ocidental. Tal como salienta o actual
ministro da Defesa turco, Vecdi Gönül, «[a] Aliança contribuiu
significativamente para a integração da Turquia na área euroatlântica»
7
, levando, por sua vez, a que a Turquia tenha adoptado «os valores comuns
partilhados pelos aliados, defendendo-os de forma empenhada»
8.
Com o fim da Guerra Fria, e a necessária alteração na lógica de existência da
NATO, também o papel da Turquia na mesma parecia ter perdido alguma da sua
razão de ser; contudo, rapidamente se constatou o contrário. A Guerra do Golfo
e o eclodir das guerras dos Balcãs veio mostrar que a Turquia continuava a
ocupar um papel central no quadro da Aliança Atlântica. Esta era, pelo menos, a
percepção de Ancara, para quem a Turquia era agora um membro de valor acrescido
no quadro da Aliança, como defendia o então chefe de Estado-Maior das Forças
Armadas turcas, o general Bir
9
. Ainda de acordo com o mesmo, o país estava agora na linha da frente das novas
ameaças e desafios que se colocavam à aliança
10
. Deixava assim a periferia, passando a ocupar um lugar de destaque no seu
centro nevrálgico. Em confirmação disso mesmo, o ministro da Defesa turco,
Vecdi Gönül, teve recentemente oportunidade de afirmar que, com o colapso do
Pacto de Varsóvia, a Turquia deixou de ser um flanco da NATO e passou a estar
no centro da cintura euroasiática, assumindo assim uma nova relevância no
quadro da organização
11.
Apesar do fim da Guerra Fria, a Turquia continuava a considerar como
fundamental a existência de uma NATO forte e estável
12
. Nesse sentido, Ancara assumiu a participação nas missões de paz da
organização como prioritárias para os interesses estratégicos do país, tendo
estado presente em todas as missões da NATO nos Balcãs: IFOR e SFOR na Bósnia-
Herzegovina, KFOR no Kosovo, Essential Harvest, Amber Fox e Allied Harmony na
Macedónia
13.
Com o 11 de Setembro e o consequente recentrar das atenções a Oriente, a
Turquia manteve-se na linha da frente das iniciativas da Aliança. No quadro do
Afeganistão, a Turquia já assumiu diversas posições de responsabilidade,
incluindo o comando da ISAF entre Junho de 2002 e Fevereiro de 2003 e da ISAF-
VII em 2005 e a participação, desde 2006, no Comando Central de Cabul
juntamente com a França e a Itália. A Turquia lidera igualmente desde 2006 uma
Provincial Reconstruction Team na província de Wardak, mantendo actualmente no
país cerca de 1600 soldados. Finalmente, há ainda a realçar que entre 2004 e
2006 a NATO fez-se representar a nível civil no Afeganistão pelo antigo
ministro dos Negócios Estrangeiros turco, Hikmet Çetin
14.
Como já referimos, o empenho da Turquia deve-se tanto à importância militar da
NATO, como ao poder político e simbólico que esta representa
15
. Em bom rigor, apesar de a Turquia considerar a presença na organização como
importante na dissuasão de eventuais ataques provenientes do Médio Oriente
16
, não deixa de ver com cepticismo, particularmente depois do trauma da Carta de
Lyndon Johnson
17
em 1964, uma eventual assistência da NATO em caso de ataque iminente. É pois ao
nível político que a NATO assume maior relevo para Ancara. A presença da
Turquia na NATO constitui um dos pontos de estabilidade na instável relação
entre Ancara e Washington
18
, ao mesmo tempo que propicia um fórum de socialização com a esmagadora maioria
dos países da União Europeia (22 dos 27 estados-membros), importante no quadro
do processo de adesão a esta organização. Finalmente, a pertença à Aliança
Atlântica é uma clara marca de contraste da Turquia face à sua vizinhança
oriental. Na sua batalha pela contínua construção da sua identidade enquanto
nação, a Turquia encontra, na pertença a uma organização vincadamente
ocidental, um importante pilar no equilíbrio entre a sua herança cultural
ocidental e oriental.
Em suma, apesar de terem sido factores estratégicos, em detrimento dos valores
e princípios proclamados no Tratado de Washington, a determinar a adesão da
Turquia à NATO, a importância da pertença deste país à Aliança Atlântica foi-se
igualmente alicerçando no seu significado político e simbólico, essencial na
definição da identidade turca como tendencialmente ocidental. Esta dimensão
identitária é fundamental para perceber as razões pela qual a Turquia continua
a ver a Aliança Atlântica como central na sua política externa, apesar de, como
veremos em seguida, algumas das suas recentes medidas e atitudes na cena
internacional poderem, por vezes, indiciar o contrário.
A política externa do Partido Da Justiça E Do Desenvolvimento
Com a vitória eleitoral do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) em
Novembro de 2002 e a consequente formação de um governo maioritário de cariz
socialmente conservador, a Turquia entrava numa nova fase da sua conturbada
história política. Apesar de algum cepticismo interno e externo, o Governo de
Recep Tayiip Erdogan rapidamente se mostrou interessado em seguir as linhas de
política externa traçadas pelos seus antecessores, com um claro enfoque no
processo de integração europeia.
A grande excepção seria a questão do Iraque, criadora de divergências entre
Washington e Ancara e construtora de desconfianças mútuas que se prolongariam
pelo resto da Administração Bush. Na verdade, o Governo de Erdogan havia
chegado a acordo com os Estados Unidos relativamente ao estabelecimento de uma
frente de ataque a partir do Sudeste da Turquia; contudo, Washington veria as
suas intenções serem chumbadas pelo Parlamento de Ancara depois de mais de cem
deputados do partido do Governo se terem juntado à oposição no chumbo da
proposta. O relacionamento entre os Estados Unidos e a Turquia conheceria aqui
um forte período de turbulência, agravado pela inércia norte-americana ' na
perspectiva de Ancara ' relativamente ao reacender do conflito com o Partido
dos Trabalhadores do Curdistão (PKK).
A invasão do Iraque e consequente autonomização da região curda do Norte do
país (único pólo de estabilidade no Iraque) estabeleceram as condições
necessárias para o PKK aí encontrar um refúgio seguro a partir de onde encetar
os seus ataques em território turco
19
. Apesar dos pedidos de Ancara para que os Estados Unidos interviessem no
sentido de retirar as bases de apoio ao movimento rebelde curdo, Washington
respondeu sempre de forma ineficaz, procurando promover o diálogo entre as
diversas partes envolvidas na questão, protelando sempre a tomada de medidas
que pusessem em causa a estabilidade dos seus aliados do Norte do Iraque
20
.
Só a partir de finais de 2007 é que os Estados Unidos começaram a assumir uma
atitude mais convergente com os anseios securitários turcos
21
, aceitando uma incursão militar limitada de Ancara na zona das montanhas
Qandil no Norte do Iraque, no sentido de erradicar as bases do PKK. Contudo, a
desconfiança em Ancara de que Washington privilegiava o seu relacionamento com
os líderes curdos iraquianos Massoud Barzani (presidente da região) e Jalal
Talabani (Presidente do Iraque), em detrimento da aliança entre os Estados
Unidos e a Turquia, não se desfez com este consentimento norte-americano.
Apesar de estarem muito longe do período áureo dos anos 1950, as relações entre
Ancara e Washington melhoraram consideravelmente com a Administração Obama. Na
sua visita à Turquia em Abril de 2009, a primeira a um país muçulmano o
Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, deu sinais claros de querer
reavivar as relações entre os dois países
22
. Washington parece ter percebido a importância da Turquia no quadro de um
sistema internacional em que os eixos de poder se parecem mover para leste.
Alheias a este facto não serão certamente as mudanças em matéria de política
externa que a Turquia tem operado nos últimos anos. Importa pois agora analisar
em que é que se consubstanciam essas mudanças e quais as lógicas que lhes estão
subjacentes.
Davutoglue o «regresso» da Turquia
Seria abusivo afirmar que a passagem de Davutoglu do gabinete do primeiro-
ministro para ministro dos Negócios Estrangeiros marca o ponto de inflexão da
política externa turca da última década, na medida em que muitas das medidas e
atitudes tomadas desde então não foram mais do que a continuação do primeiro
mandato do AKP e até de governos anteriores; contudo, com Davutoglu ao leme do
Ministério dos Negócios Estrangeiros, a política externa turca passou a ter uma
coerência estratégica que não detinha nos primeiros anos do Governo de Erdogan.
Esta coerência deriva, em larga medida, do seu trabalho enquanto professor de
Relações Internacionais nas universidades de Marmara e Beykent, na Turquia. Aí
desenvolveu uma linha de pensamento que defendia a necessidade de a Turquia
aceitar a sua condição de potência pluri-regional e de se afirmar enquanto tal
nos diferentes cenários de actuação na sua vizinhança. No seu livro
Profundidade Estratégica(2001), Davutoglu afirma que a Turquia tem
responsabilidades históricas (do Império Otomano à adesão à NATO) e um
posicionamento geográfico que a deveriam levar no sentido de um maior activismo
externo
23
, de carácter mais cultural e económico
24
, que começasse na estabilização da sua vizinhança: a «política dos problemas
zero»
25
.
Esta profundidade estratégica a que Davutoglu se refere acaba, de certa forma,
por retomar a ideia do neo-otomanismo desenvolvida pelo antigo Presidente turco
Turgut Özal. Apesar de não se poder falar de uma ligação directa entre o
pensamento de Özal e a actual política do AKP
26
, ambos partem dos mesmos dois pressupostos: que a Turquia tem de ter uma
presença activa na cena internacional e que essa presença deve estar alicerçada
na combinação da sua história com o seu posicionamento geográfico. O neo-
otomanismo do AKP possui uma grande visão estratégica em que a Turquia se
afirma como um actor de pacificação regional e que serve de ponte efectiva
entre o Oriente e o Ocidente. Três factores ajudam a definir o neo-otomanismo
do AKP.
Em primeiro lugar, é uma perspectiva que assume uma atitude mais moderada
relativamente à influência do islão na Turquia e no exterior, em detrimento
tanto do secularismo radical kemalista, como do radicalismo islâmico. Essa
moderação deve, pois, de acordo com esta visão, servir de instrumento no
desenvolvimento das relações com o restante mundo muçulmano. O neo-otomanismo é
um conceito que, de acordo com Omar Taspinar, redefine o próprio sentido de
identidade turca, salientando a sua multiculturalidade e pluralidade geográfica
27
, na medida em que a Turquia é, na opinião de Davutoglu, um país de múltiplas
identidades regionais devido ao seu posicionamento entre o Médio Oriente, os
Balcãs, o Cáucaso, a Ásia Central, o Mediterrâneo, o golfo Pérsico, o mar
Cáspio e o mar Negro
28.
O segundo aspecto diz respeito à auto-redefinição do poder da Turquia face ao
panorama regional e internacional. O neo-otomanismo considera a Turquia como
uma «superpotência regional»
29
que deve desenvolver as relações com o exterior com confiança e determinação.
Finalmente, o terceiro aspecto diz respeito à materialização da ideia da
Turquia enquanto «ponte» entre o Ocidente e o Oriente. Uma ideia que faz parte
do discurso de e sobre a Turquia, e que, embora estivesse longe de corresponder
à realidade até há pouco tempo, assume agora uma verdadeira centralidade no
projecto de política externa turca.
O neo-otomanismo distingue-se, assim, do kemalismo que dominou várias décadas
de política externa turca nestas três dimensões: favorece um activismo regional
em oposição à precaução e modéstia kemalista; favorece o multiculturalismo e
laicismo liberal em oposição ao nacionalismo quase-étnico e a um secularismo
radical; e, finalmente, tenta avançar no sentido da integração europeia e do
estabelecimento de boas relações com os Estados Unidos, enquanto os kemalistas
vêem ambos com ressentimento e frustração
30
.
A Turquia tem, nesse sentido, promovido a inflexão de relacionamentos
tendencialmente confrontacionais, promovendo a diplomacia cultural e económica
como factor de aproximação. Em Outubro de 2009, assinou um acordo com a Arménia
no sentido de restabelecer as relações diplomáticas, apesar das questões do
genocídio arménio e do conflito entre arménios e azeris em Nagorno-Karabagh
permanecerem por resolver31. Ainda em 2009, depois de périplos pelo Médio
Oriente de Erdogan e Davutoglu, a Turquia assinou acordos com a Síria, o
Líbano, a Líbia e a Jordânia no sentido de abolir a necessidade de visto para
cidadãos destes países entrarem na Turquia
32
. Também com o Irão, a Turquia tem desenvolvido um relacionamento mais
estreito, fruto dos interesses económicos turcos nesse país. O volume do
investimento da Turquia no Irão atingiu, no último ano, os dez mil milhões de
dólares, esperando-se que venha a triplicar no futuro próximo
33
. O seu papel de país próximo de Teerão fez com que, juntamente com o Brasil,
chegasse em Maio último a um compromisso com o regime de Ahmadinejad no sentido
de o Irão transferir 1200 quilos de urânio pouco enriquecido (que continuaria a
ser iraniano) para a Turquia em troca de um reactor de pesquisa
34
compromisso esse cuja implementação veio posteriormente a ser rejeitado pelos
Estados Unidos.
A excepção tem residido no relacionamento com Israel, cujo recente caso da
flotilha humanitária para Gaza interceptada pelos militares israelitas, que
levou à morte de oito cidadãos turcos e de um cidadão norte-americano de origem
turca
35
, foi o último episódio. A subida de intensidade na retórica turca, apoiada
pela maioria da opinião pública turca e acompanhada de medidas como a
interrupção de relações diplomáticas entre os dois países, faz antecipar uma
estrutural deterioração do relacionamento entre os dois países. O próprio
Presidente Abdullah Gül fez questão de referir nas cerimónias fúnebres
dedicadas às vítimas do ataque à flotilha humanitária, que as relações com
Israel «não voltarão a ser iguais»
36
.
As alterações de comportamento turco a nível externo vão, contudo, muito para
além do Médio Oriente. A Turquia tem hoje relações mais sustentadas com a
Rússia, a Índia e a China, reforçou a sua presença no Cáucaso e na Ásia
Central, tem sido um importante aliado da Bósnia-Herzegovina e tem promovido
uma política de diversificação de mercados, alargando o seu relacionamento a
países da América do Sul (com destaque para o Brasil) e África, continentes
onde desenvolve uma agressiva política de abertura de novas embaixadas
37
. Isto porque um dos aspectos defendidos por Davutoglu, e por vezes subestimada
por analistas alarmados com a dimensão político-cultural da política externa
turca no Médio Oriente
38
, diz respeito ao papel que a geoeconomia assume neste ressurgimento
internacional da Turquia. Como salienta Nora Fischer Onar, para Davutoglu é
fundamental que Ancara expanda os seus laços económicos através do
estabelecimento de ligações comerciais com novos países, com destaque para
mercados emergentes
39
. Esta expansão deve, contudo, obedecer a uma lógica estratégica que se
enquadra nas restantes vertentes da política externa turca. A Turquia tem tido
um constante crescimento económico acima dos cinco por cento ao ano, esperando
para 2010 um crescimento de 6,8 por cento
40
. Apesar de não ser critério único na definição da actual política externa
turca, não deixa de ser um factor a ter em consideração, na avaliação da actual
política externa turca, assim como na análise do potencial contributo da
Turquia para o futuro da Aliança Atlântica.
A Turquia na redefinição da lógica de existência da NATO
Como refere Jamie Shea, director de planeamento político do secretário-geral da
NATO, nunca a elaboração de um Conceito Estratégico gerou tanta expectativa e
cobertura mediática, factor que salienta a importância do documento para a
Aliança neste momento particular
41
. De acordo com o relatório do Grupo de Peritos liderado por Madeleine
Albright, o novo Conceito Estratégico deve clarificar «o que a NATO devia fazer
por cada Aliado e o que cada Aliado devia fazer pela NATO»
42
. Também para Shea, o novo Conceito Estratégico deve colocar uma ênfase
acentuada no papel global da NATO, com um claro enfoque no relacionamento para
lá das suas fronteiras, o que obrigará ao desenvolvimento de mais parcerias com
novos países, que não visam a adesão à organização, mas sim a estabilização de
relações com a Aliança Atlântica
43
. Tal como reiterou o grupo de peritos no relatório «NATO 2020», «o novo
Conceito Estratégico deve reconhecer que, à medida que a NATO avança para 2020,
não irá, em geral, actuar sozinha. Parcerias, em toda a sua diversidade,
ocuparão um lugar central na vida diária da Aliança»
44
, num quadro em que a NATO nem sempre ocupará um papel central no plano
internacional: «É provável que a NATO, entre 2010 e 2020, apareça menos no
palco central das questões globais.»
45
Se, como tudo indica, a NATO caminha para a sua afirmação de enquanto
organização de alcance global, então a Turquia terá, tal como defende o seu
ministro da Defesa
46
, um papel importante a desempenhar no seio da organização. Cenários como o
Afeganistão
47
, o Médio Oriente e os Balcãs ou questões como o terrorismo e a proliferação
nuclear, colocam a Turquia como actor central no quadro das políticas da
Aliança Atlântica.
Se nos anos 1950 a ameaça soviética justificava a adesão da Turquia por
questões estratégicas, a sua actual presença na Aliança é necessariamente
compreendida de outra forma. Em boa verdade, se havia uma clara discrepância
entre a identidade que a NATO pretendia assumir e a realidade da presença de
países como a Grécia, a Turquia e Portugal, agora a presença turca pode ser um
aspecto-chave na actual lógica de existência da NATO, uma lógica de
flexibilidade, operacionalidade e intervencionismo político e militar.
A Turquia possui um dos maiores exércitos da NATO, com experiência de contra-
insurreição; tem maior facilidade em estabelecer relações de proximidade em
regiões onde a NATO é vista, no mínimo, com suspeição, como, por exemplo, no
Afeganistão. Para Ancara, a sua política externa proactiva na sua vizinhança é
uma mais-valia para a NATO. Numa entrevista concedida ao jornal turco Today's
Zaman, um diplomata turco junto da NATO
48
considerou que a actual política externa turca lhe dá mais credibilidade junto
dos restantes 27 estados-membros e que reforça a presença da NATO em regiões
como o Médio Oriente e os Balcãs
49
. Ainda de acordo com o mesmo, esse efeito já se faz sentir com a Turquia a ser
cada vez mais consultada no quadro da NATO relativamente ao evoluir das
operações da organização
50.
Este activismo externo turco tem, contudo, consequências potencialmente
negativas. Tal como houve ocasião de salientar noutra circunstância
51
, seguindo a teoria dos complexos regionais de segurança da Escola de
Copenhaga, a Turquia é um «insulator», isto é, uma entidade política afectada
por vários complexos regionais, sem que no entanto pertença a qualquer um deles
52
. Isto faz com que, na realidade, a sua presença seja sempre a de um actor
exterior a interferir no relacionamento intra-regional. Por muito próximo que
esteja dessas mesmas regiões, por muito eficaz que seja a influência que tenta
assumir sobre estas e por muito negativas que sejam as externalidades oriundas
dessas mesmas regiões, a verdade é que a influência da Turquia será neste
contexto sempre limitada pela sua condição de actor exterior. Ao envolver-se
directamente no complexo regional do Médio Oriente, a Turquia tem tentado
alterar as relações de segurança da região. Em termos práticos, conseguiu
aproximar-se de países como a Síria e o Irão ao mesmo tempo que se distanciou
de Israel. A sua intenção de actuar como mediador na região serviu para mostrar
as suas próprias limitações enquanto tal. A verdade é que a Turquia parece cada
vez menos isenta nesse contexto. Por exemplo, em Outubro de 2009 a Turquia
retirou o convite a Israel para os regulares exercícios militares com a NATO em
território turco. No mesmo dia, anunciou a realização de exercícios com a
Síria, semanas depois de Ancara e Damasco terem estabelecido um «conselho de
cooperação estratégica», como fórum de diálogo estratégico entre os dois países
53
. Quanto mais a Turquia se envolve na região, mais se deixa influenciar pelos
precários equilíbrios de poder aí existentes, correndo o sério risco de passar
de mediador a desestabilizador.
Em suma, contrariamente à mais-valia estratégica (derivada do seu
posicionamento geográfico) e militar (derivada do seu poder militar), a Turquia
apresenta agora uma mais-valia política e diplomática, sendo capaz de dialogar,
negociar e ser ouvida em países onde a NATO, enquanto organização, não tem
acesso. Contudo, a materialização dessa mais-valia implica a aceitação dos seus
limites enquanto «insulator» e enquanto membro da Aliança Atlântica. Um
envolvimento demasiado acentuado na região pode facilmente tornar essa mais-
valia uma dor de cabeça para a Aliança Atlântica, com o potencial de ver um dos
seus principais membros arrastado para o explosivo clima securitário da região.
Conclusão
Como salienta Jamie Shea, vai ser difícil à NATO distanciar-se muito do
documento apresentado pelo grupo de trabalho liderado por Madeleine Albright
54
. Nesse sentido, a ideia da NATO global, mas não necessariamente central,
parece ser o cenário que se desenha para o novo Conceito Estratégico. Nesse
contexto, a Turquia, enquanto potência emergente alicerçada na combinação de um
poder militar sem igual na região, com um crescimento económico superior a
qualquer outro membro da Aliança e com um património histórico e cultural
únicos, pode e quer desempenhar um papel central no futuro da NATO. Isso
acarreta, contudo, responsabilidades para ambas as partes: para a Turquia, a
aceitação dos seus limites, principalmente no quadro do Médio Oriente; para os
restantes membros da Aliança Atlântica, a compreensão das mais-valias que uma
Turquia forte e diplomaticamente activa pode trazer para o seio de uma
organização, que, de um quadro de Guerra Fria, necessita agora de se situar num
mundo de potências emergentes, de polaridade indefinida.
Notas
1
Todas as citações contidas neste artigo estavam originalmente em inglês, tendo
sido traduzidas pelo próprio autor.
2
KIRISÇI, Kemal ' «U.S.-Turkish relations: New uncertainties in a renewed
partnership», In RUBIN, Barry e KIRISÇI, Kemal (orgs.) ' Turkey in world
politics. An emerging multiregional power, Istambul: Bogazici University Press,
2002, p. 171
3
RUBIN, Barry ' «Turkey: A transformed role», In RUBIN, Barry e KIRISÇI, Kemal
(orgs.) ' Turkey in world politics. An emerging multiregional power, Istambul:
Bogazici University Press, 2002, p. 3.
4
Ministry of Foreign Affairs ' «Turkey's Security (NATO)», 2008, Disponível em:
http://www.mfa.gov.tr
5
Ministry of Foreign Affairs ' «Turkey's Security (NATO)».
6
Cf. KUT, Sule ' «The contours of Turkish foreign policy in the 1990s», In
RUBIN, Barry e KIRISÇI, Kemal (orgs.) ' Turkey in world politics. An emerging
multiregional power, Istambul: Bogazici University Press, 2002, pp. 7-18.
7
GÖNÜL, Vecdi ' «Turkey-NATO relations and NATO's new strategic concept», In
Hurriyet Daily News & Economic Review, 27 de Julho de 2010.
8
Ibidem.
9
ÖZCAN, Gencer ' «The military and the making of foreign policy in Turkey». in
RUBIN, Barry, e KIRISÇI, Kemal (orgs.) ' Turkey in World Politics. An Emerging
Multiregional Power. Istambul: Bogazici University Press, 2002, p. 35.
10
Ibidem.
11
GÖNÜL, Vecdi ' «Turkey-NATO relations and NATO's new strategic concept», In
Hurriyet Daily News & Economic Review, 27 de Julho de 2010.
12
ROBINS, Philip ' Suits and Uniforms. Turkish Foreign Policy Since the Cold War.
Londres: Hurst&Company, 2003, p. 20.
13
GÖNÜL, Vecdi ' «Turkey-NATO relations and NATO's new strategic concept».
14
Ibidem.
15
Cf. Williams, Michael ' Culture and Security. Symbolic Power and the Politics
of International Securit y. Londres: Routledge, 2007.
16
ERALP, Yalim ' «An Insider's View of Turkey's Foreign Policy and Its American
Connection», In ABRAMOWITZ, Morton (org.) ' The United States and Turkey.
Allies in Need. Nova York: The Century Foundation Press, 2003, p. 117
17
Em 1964, num contexto de crescente polarização social e política no Chipre, o
presidente norte-americano Lyndon Johnson, aconselhou à não intervenção da
Turquia na ilha, sob pena de originar uma resposta da união soviética (URSS) e
de nada garantir que a NATO pudesse intervir em defesa da Turquia.
18
ERALP, Yalim ' «An insider's view of Turkey's foreign policy and its American
connection», p. 117.
19
LARRABEE, Stephen ' «Revitalizar las relaciones con Estados Unidos», In
Vanguardia Dossier, 32, Julho/Setembro 2009, p. 101.
20
Cf. BARRINHA, André ' «The Copenhagen School in US-Turkey relations: the War
on Terror' in Northern Iraq», Oficina do CES, n.º 295, Centro de Estudos
Sociais, Universidade de Coimbra, 2008.
21
Ibidem.
22
Cf. ONAR, Nora Fisher ' «Neo Ottomanism, historical legacies and Turkish
Foreign Policy», EDAM Discussion Paper Series, 2009.
23
BARYSCH, Katinka ' «Can Turkey combine EU accession and regional leadership?»,
Policy Brief, Center for European Reform, 2010, p. 4.
24
Ibidem, p. 5.
25
Ibidem, p. 6.
26
Sobre as diferenças entre uma e outra doutrina ver ONAR, Nora Fisher ' «Neo
Ottomanism, historical legacies and Turkish Foreign Policy».
27
TASPINAR, Omer ' La compleja política turca para Oriente Médio, In Vanguardia
Dossier, 32, Julho/Setembro, pp. 108-109.
28
DAVUTOGLU, Ahmet ' «Turkish Foreign Policy and the EU in 2010», In Turkish
Policy Quarterly, vol. 8, n.º 3, 2009, p. 12.
29
TASPINAR, Omer ' «La compleja política turca para Oriente Médio», p. 109.
30
Ibidem, p. 110.
31
Cf. GRIGORIADIS, Ioannis ' The Davutoglu Doctrine and Turkish Foreign
Policy, Working Paper n.º 8, Middle Eastern Studies Programme, ELIAMEP, 20100.
32
Cf. BARYSCH, Katinka ' «Can Turkey combine EU accession and regional
leadership?», Policy Brief, Center for European Reform, 2010.
33
MATTHEWS, Owen ' «Ankara in the Middle», InNewsweek, 2 de Agosto de 2010.
34
«Iran signs nuclear fuel-swap deal with Turkey». in BBC News, 17 de Maio de
2010, disponível em: http://news.bbc.co.uk/2/hi/middle_east/8685846.stm
35
«Turkey mourns Gaza aid flotilla dead». in The Daily Telegraph, 3 de Junho de
2010.
36
Ibidem.
37
GRIGORIADIS, Ioannis ' The Davutoglu Doctrine and Turkish Foreign Policy,
Working Paper n.º 8, Middle Eastern Studies Programme, ELIAMEP, 2010, p. 8.
38
O director do programa de política árabe do Washington Institute for Near East
Policy questiona mesmo se o governo islamista' de Ancara, em face da
orientação de política externa turca e em face dos seus problemas internos,
devia ter acesso à próxima geração dos Joint Strike Fighter, aviões caça que
serão entregues à Turquia em 2014, aviões tecnologicamente muito avançados
(SCHENKER, David ' «A NATO Without Turkey?», In The Wall Street Journal, 5 de
Novembro de 2009).
39
ONAR, Nora Fisher ' «Neo Ottomanism, historical legacies and Turkish Foreign
Policy», EDAM Discussion Paper Series, 2009, pp. 11-12.
40
«Turkey growth forecast almost doubled by OECD», In Hurriyet Daily News &
Economic Review, 26/05/2010.
41
SHEA, Jamie ' «What Will be in NATO's New Strategic Concept?», In Turkish
Policy Quarterly, Vol. 9 (1), 2010, p. 47
42
ALBRIGHT, Madeleine et al. ' «NATO 2020: Assured Security; Dynamic Engagement».
Analysis and Recommendations of the Group of Experts on a new strategic concept
for NATO, 17 de Maio de 2010, p. 6.
43
SHEA, Jamie ' «What Will be in NATO's New Strategic Concept?», In Turkish
Policy Quarterly, Vol. 9 (1), 2010, p. 56
44
ALBRIGHT, Madeleine et al. ' «NATO 2020: Assured Security; Dynamic Engagement»,
17 de Maio de 2010, p. 10
45
Ibidem, p. 12.
46
GÖNÜL, Vecdi ' «Turkey-NATO relations and NATO's new strategic concept».
47
No caso do Afeganistão, a OTAN já reconheceu oficialmente a centralidade do
papel da Turquia. De acordo com o porta-voz da OTAN, James Appathurai, nenhum
outro membro da Aliança pode desempenhar o papel que a Turquia desempenha na
região ' especialmente o seu papel político (In ÇELIK, Minhac ' «Turkey's role
in Afghanistan unique, NATO spokesman says», In Today's Zaman, 27 de janeiro de
2010).
48
Falando sob condição de anonimato.
49
ÇELIK, Minhac ' «Turkey's role in Afghanistan unique, NATO spokesman says».
50
Ibidem.
51
BARRINHA, André ' A Turquia e a ilusão do Médio Oriente, In revista Relações
Internacionais, nº 21, IPRI-UNL, 2009.
52
Cf. BUZAN, Barry e WÆVER, Ole ' Regions and Powers. The Structure of
International Security. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. Cf. KAZAN,
Isil ' Regionalisation of Security and Securitisation of a Region: Turkish
Security Policy After the Cold War. PhD Series. Copenhaga: Institute of
Political Science, University of Copenhagen 2003.
53
SCHENKER, David ' «A NATO Without Turkey?», In The Wall Street Journal, 5 de
Novembro de 2009.
54
ALBRIGHT, Madeleine et al. ' «NATO 2020: Assured Security; Dynamic Engagement»,
p. 48.