NATO e Rússia: novos lances estratégicos
Em pleno trabalho interno de adaptação da Organização do Tratado do Atlântico
Norte (NATO) para responder aos desafios de segurança globais, o ministro dos
Negócios Estrangeiros russo declara «é necessário analisar os assuntos de
família da Europa e avaliar um conjunto de coisas, que não tenha na base a
euforia e o triunfalismo dos anos 90, mas uma análise séria das reais
consequências do que aconteceu nos últimos vinte anos»
1
. Estas palavras ilustram a posição russa acerca dos desenvolvimentos da
Aliança Atlântica, cuja pertinência foi posta em causa de forma recorrente
desde o fim da Guerra Fria. Enquanto a Aliança está centrada em redefinir
ameaças e áreas de intervenção para melhorar o seu papel, perdura um problema
de legitimidade da NATO aos olhos dos russos. A título de exemplo, a questão
dos alargamentos a Leste representa para os russos a quebra de uma promessa que
os Estados Unidos, e outros aliados, alegadamente fizeram a Moscovo em 1990.
Supostamente, o Kremlin concordou com a integração da Alemanha reunificada na
NATO porque houve um compromisso em não integrar outros países da Europa
Oriental na organização
2
. Coloca-se, portanto, a necessidade de avaliar os bloqueios no diálogo de
segurança europeu (e global) e as possibilidades de o transformar num diálogo
capaz de trazer soluções, tendo em conta o papel influente de actores-chave. A
criação de uma verdadeira parceria é a tarefa primordial inerente ao triângulo
de segurança composto pelas relações NATO-Rússia, Estados Unidos-Rússia e União
Europeia-Rússia. A exequibilidade dessas parcerias é diferenciada consoante os
actores envolvidos face à Rússia. No entanto, essas parcerias implicam a
existência de um ponto de vista minimamente comum acerca das fundações da
arquitectura de segurança europeia.
A cimeira da NATO de Abril de 2009 revestiu um simbolismo particular ao
festejar os sessenta anos da organização, sob égide franco-alemã. A Cimeira de
Lisboa, a decorrer no final deste ano, visa aprovar um novo Conceito
Estratégico. No entanto, ao contrário de cimeiras históricas precedentes (1999
e 2004), os aliados têm de lidar com uma Rússia transformada e opositora, para
além de um ambiente de segurança em rápida evolução. Isso foi visível na
decisão de adiar o alargamento da NATO à Ucrânia e à Geórgia em 2008, apesar
das pressões da Administração Bush nesse sentido. Países como a França e a
Alemanha optaram por uma postura mais cautelosa em relação à oposição russa. Em
Fevereiro de 2009, a nova posição americana em relação à Rússia foi divulgada
na Conferência de Munique. Poucos meses antes, a política externa do Presidente
russo Medvedev ainda estava a assumir os seus contornos. Essas circunstâncias
são particularmente propícias à novidade e à mudança e, consequentemente,
torna-se pertinente analisar a evolução doutrinária da NATO à luz das pressões
russas.
A presente análise não propõe uma leitura conclusiva acerca do debate em curso
relativo à ordem de segurança europeia mas tem por objectivo elucidar a
existência per sedesse debate. Essa discussão tem sido porventura evitada e
ignorada pelos actores intervenientes que se encontram num diálogo pouco
frutífero. As sucessivas revisões do Conceito Estratégico da NATO, assim como
aquela que decorre actualmente, não atendem questões importantes, tais como as
seguintes: Quais são os termos da relação da NATO com a Rússia? O que explica o
desacordo fundador na actualidade? Em que medida o alargamento da NATO ao
antigo espaço soviético é uma ameaça para a Rússia? Em que medida a próxima
Cimeira de Lisboa poderá acatar essas questões? Nesse contexto, a evolução do
papel da NATO na segurança europeia, e global, deve ser perspectivada à luz dos
interesses russos e da sua capacidade renovada em projectá-los externamente. O
uso da força armada, em 2008, na guerra de cinco dias contra a Geórgia, é
paradigmático de uma maior assertividade de Moscovo no seu «estrangeiro
próximo». Esse conceito remete não só para uma concepção geopolítica do lugar
da Rússia na Europa mas também para um conceito de soberania territorial. Ele
inclui os 14 Novos Estados Independentes que integravam coercivamente a antiga
União Soviética. Esta zona de interesse vital, ou pelo menos de esfera de
influência, é fundamental na percepção das ameaças por parte de Moscovo.
O regresso da Rússia ao palco principal das relações internacionais tem sido
notório, e paradoxal, desde o segundo mandato do Presidente Putin. Desde 2006,
o ressurgimento russo tem colocado pressões sérias e renovadas na agenda de
segurança global.
Existe um conjunto de disputas interligadas, entre as quais sobressaem os
desacordos acerca do projecto europeu de defesa antimíssil de Washington e do
terceiro alargamento da NATO desde o fim da Guerra Fria, à Ucrânia e à Geórgia.
Moscovo tem manifestado a sua oposição a elementos fundadores da actual
arquitectura de segurança europeia. O Presidente Medvedev corporizou essa
tendência a nível retórico num discurso de Junho de 2008, em Berlim, no qual
ele advogou a criação de um novo pacto de segurança europeia
3
. No entanto, o crescente descontentamento russo com os quadros de cooperação
institucionais disponíveis tem vindo a materializar-se para além do nível
discursivo. Isso denota a capacidade russa em influenciar resultados e não só
uma postura retórica, à luz do regresso orquestrado desde os mandatos de Putin.
Concretamente, o Kremlin opôs-se a três desenvolvimentos: o controlo de
armamentos (defesa antimíssil e o Tratado CFE
4
), a legitimidade da NATO e a noção de uma «vizinhança partilhada» com a União
Europeia (UE). O rescaldo da guerra russo-georgiana do Verão de 2008 adensou as
dificuldades previamente existentes no diálogo de segurança com Moscovo.
Os russos têm manifestado vontade em redefinir as relações e as instituições de
segurança na Europa. Lavrov lembra esse desejo renovado quando afirma: «A
Europa e a América do Norte e nós na Rússia precisamos de um novo tratado de
segurança. Esta é a nossa proposta.»
5
A proposta de Medvedev para um novo pacto de segurança, acima mencionada, não
tem colhido reacções significativas. Por um lado, a sua formulação e a
dinamização de um debate pelos russos tem carecido de operacionalização. Por
outro lado, Bruxelas e Washington não têm demonstrado vontade em entrar nesse
debate. A proposta recebeu um enquadramento institucional aquando do lançamento
do processo de Corfu no âmbito da Organização para a Segurança e a Cooperação
na Europa (OSCE), não havendo de facto interesse em retomar essa proposta na
substância. Os ocidentais consideram que o conteúdo não traz novidade e a
questão levantada pela iniciativa russa remete mais para o processo no qual o
debate irá ser conduzido, do que para questões de fundo. A expectativa de ser a
OSCE a lidar com o assunto materializou-se a 28 de Junho de 2009 quando a
organização lançou o acima referido processo de Corfu
6
. Um diplomata europeu
7
considera que esse marco coloca o debate noutra fase que é menos generalista,
contrariamente ao mero brainstorminganterior. Foram especificadas oito áreas e
alguns estados-membros, nomeadamente da UE, têm avançado propostas. Apesar do
facto de Corfu ser encarado como uma mudança menor, representa uma evolução. O
diplomata sublinha também que uma das questões relevantes nesse processo será a
coordenação entre os vinte e sete estados-membros da UE, os quais são uma
maioria na OSCE. No entanto, tendo em consideração a promessa não cumprida da
OSCE servir de base para uma arquitectura pan-europeia de segurança, abaixo
referida, o debate encetado não deixa vislumbrar soluções aplicáveis.
No final da Guerra Fria, a ideia de criar uma arquitectura de segurança pan-
europeia foi alimentada através da OSCE. A discussão do papel da organização na
arquitectura de segurança europeia tem sido recorrente, apesar da proeminência
que a NATO assumiu na remodelação da ordem pós-Guerra Fria. A declaração de
Helsínquia de 1975 está na origem de um diálogo pan-europeu e reconhece
princípios tais como a paz, a consulta e o respeito pelos direitos humanos
8
. No entanto, esses princípios não viriam a ser interpretados da mesma maneira.
Na era pós-bipolar, o ponto de partida do pan-europeísmo pode ser encontrado em
1990 no que diz respeito a valores que presidiriam à construção de uma Europa
unida e democrática
9
. Em Novembro de 1990, a Carta de Paris para Uma Nova Europa foi adoptada
10
. O documento reafirmou os princípios assumidos em 1975 e previu mudanças
institucionais para adaptar a Conferência para a Segurança e a Cooperação na
Europa (CSCE) a um novo nível de ambição no sentido de criar «esforços comuns
para consolidar o respeito pelos direitos humanos, a democracia, o Estado de
direito, reforçar a paz e promover a unidade na Europa»
11
. Em Dezembro de 1994, a CSCE foi substituída pela OSCE num processo de
institucionalização da organização. Mais tarde, em Dezembro de 1996, os
estados-membros da OSCE adoptaram a Declaração de Lisboa que reafirma a
natureza indivisível da segurança europeia
12
. No entanto, essas declarações não resolveram a definição da arquitectura de
segurança europeia que ainda é desafiada hoje pelo Kremlin.
As divergências em relação aos compromissos assumidos em Helsínquia, e
posteriormente, têm sido, de facto, duradouras. Klimov
13
considera que chegou o momento de organizar uma grande conferência acerca da
segurança e ter em consideração os novos factos do século XXI. Ele sublinha que
Helsínquia aconteceu há muito tempo e que já não tem validade na actualidade.
Ela também sugere que as negociações em curso para resolver o problema criado
pela guerra russo-georgiana (processo de Genebra) deveriam ser uma oportunidade
para criar um género de «Helsínquia II». Essas conversas diplomáticas tiveram
início em Outubro de 2008 e têm por objectivo reunir as partes em conflito para
solucionar o problema da delimitação das fronteiras da Geórgia. Embora ele
reconheça a complexidade do processo, o deputado russo sublinha que, na
generalidade, a situação internacional requer um repensar dos documentos
existentes. O processo de Genebra tem sido encarado pelos russos como uma
oportunidade para figurar em posição de força na redefinição das relações de
segurança.
O Tratado de Redução das Forças Convencionais na Europa (Tratado CFE, com a
sigla inglesa) representa outra discórdia pendente na relação da Rússia com os
quadros de cooperação existentes. Desde Dezembro de 2007, o Kremlin suspendeu a
sua participação no tratado. Essa decisão prende-se com o receio russo em
relação a vários elementos. Moscovo quer evitar posicionamentos de tropas
convencionais da NATO às suas fronteiras. A Federação também estabelece uma
ligação entre o Tratado CFE e a defesa antimíssil na Europa no sentido de
provocarem uma desvantagem estratégica para a Rússia. Globalmente, a suspensão
reflecte a vontade de rever as provisões do tratado em si. Um diplomata francês
em Moscovo
14
sublinha que alguns dos argumentos russos são válidos. Considera que as flank
provisionsdeveriam ser modernizadas. No entanto, afirma que o método russo é
problemático uma vez que usa a ameaça da renúncia do tratado para obter algo
novo, instrumentalizando crises, ultimatos e provocação. Por exemplo, em Julho
de 2007 e no final de 2008, Moscovo ameaçou colocar mísseis no enclave russo de
Kaliningrado (vizinho da Lituânia e da Polónia no Báltico).
A declaração recente do ministro dos Negócios Estrangeiros russos em Munique,
acima referida, sintetiza a posição do seu país em relação aos regimes de
segurança na Europa, os quais são considerados obsoletos. Contrariamente a essa
perspectiva russa, parceiros como a UE consideram que os princípios de
Helsínquia ainda são válidos. Um funcionário do Secretariado do Parlamento
Europeu sublinha que «o Acto de Helsínquia não é obsoleto porque os valores são
mais importantes do que os signatários do tempo»
15
. Ele refere-se ao facto de alguns signatários fundadores serem estados que
hoje já não existem. Lembramos aqui as adaptações da CSCE durante o início da
década de 1990, acima mencionadas, as quais resolveram essa questão. Os
princípios foram reafirmados no novo ambiente estadual. Do mesmo modo, o
Tratado CFE foi assinado em 1990, e a sua versão adaptada foi assinada em 1999
na Cimeira de Istambul da OSCE.
Por conseguinte, pensar a revisão do Conceito Estratégico da NATO remete para
um debate mais amplo do que a mera adaptação da Aliança a um novo ambiente
estratégico. Esse trabalho relaciona-se com um debate alargado e antigo acerca
da legitimidade das soluções de segurança encontradas para o continente
europeu, no qual a Rússia é um elemento crucial. O facto de a NATO agir fora da
sua área inicial (Afeganistão) não constitui o maior obstáculo à inclusão de
Moscovo, no sentido de uma aceitação das mudanças da organização. O balanço das
respostas de Moscovo às necessidades logísticas dos aliados no terreno afegão
tem sido positivo. Contrariamente, a perenidade do artigo 5.º (garantia de
defesa mútua dos membros da Aliança), acoplada aos alargamentos a Leste,
levanta sérios desafios à segurança do ponto de vista russo. Adicionalmente, a
relação transatlântica perdura como um vector importante na definição da
projecção global da UE.
No contexto do mandato do novo Presidente norte-americano, a parceria com os
europeus tem sido procurada no sentido de potenciar soluções cooperativas e
colectivas a desafios globais. Larre sublinha o seguinte:
«não é a relação da América com a China, a Rússia ou a Índia, por
exemplo, mas as relações de Washington com a UE e o continente
europeu que proporcionam uma ilha de estabilidade num mundo em
crescente complexidade e volatilidade. [ ] Consequentemente, as
relações transatlânticas não representam apenas um eixo entre os
quatro ou cinco outros da política global de Obama. Em vez disso, as
relações transatlânticas permanecem um eixo crucial na política
externa dos Estados Unidos. Num mundo cada vez mais imprevisível e
undemocratic, a cooperação com a Europa continua a ser absolutamente
essencial para os Estados Unidos.»
16
Em Março último, um grupo de reflexão composto por políticos de renome publicou
uma proposta para reformular a relação da UE com os Estados Unidos. Consideram
que a natureza da relação transatlântica é paradoxal apesar das boas relações
diplomáticas e da partilha de visões do mundo. A diminuição de vontade política
é identificada e explicada pelos efeitos da globalização que levou a um maior
investimento dos parceiros nas questões internas. Assim, a dinamização da
parceria euroamericana no século XXI passaria por uma compreensão cabal da
globalização e do seu impacto nos actores e nas relações internacionais
17
.
A recente revisão de todas as doutrinas russas no que diz respeito à sua acção
externa evidencia a leitura que o Kremlin faz do ambiente estratégico global.
Importa decifrar correctamente a Rússia hodierna. As doutrinas estratégicas
russas formuladas em 2000 foram substituídas nos últimos dois anos por
documentos que traduzem a nova postura russa. O conceito de política externa de
Julho de 2008, o conceito de segurança de Maio de 2009 e doutrina militar de
Fevereiro de 2010 formam um novo tríptico a ser devidamente interpretado
18
. A proposta de Medvedev para um novo pacto de segurança europeu projecta a
essência do pensamento russo na medida em que procura devolver à Federação um
lugar de destaque na distribuição de poder, a nível europeu e mundial. No
entanto, não existe consenso entre os aliados acerca da interpretação dos
desenvolvimentos russos. O mesmo acontece no seio da UE, havendo estados-
membros que defendem uma postura mais dura em relação ao Kremlin, considerando
o seu desvio em relação aos compromissos internacionais assumidos (nomeadamente
na área dos direitos humanos), e outros que privilegiam os interesses
estratégicos e comerciais e, por isso, aceitam uma relação menos comprometida a
valores e princípios comuns.
As propostas russas e a feitura em curso do novo conceito estratégico da NATO
podem ser lidas em paralelo, uma vez que as duas constituem um desafio
recíproco. A 17 de Maio último, concluiu-se a primeira fase do trabalho de
grupo de peritos acerca do novo conceito da Aliança com a publicação de um
relatório, intitulado «NATO 2020: assured security; dynamic engagement.
Analysis and recommendations of the group of experts on a new strategic concept
for NATO»
19
. Esse grupo de 12 pessoas foi nomeado, em 2009, pelo secretário-geral da
Aliança. Em Setembro, será elaborado o primeiro rascunho e, de seguida, os
estados-membros darão início às negociações com base nessa primeira versão.
Para além de uma análise das ameaças que identifica sete factores de risco, o
relatório sublinha a importância de duas tarefas, porventura difíceis de
compatibilizar. Por um lado, a importância do artigo 5.º (segurança colectiva)
é reafirmada, o que pode ser imputado à necessidade de tranquilizar os países
da Europa Central e Oriental face à eventual ameaça russa, adensada pela guerra
russo-georgiana, pelas disputas energéticas e pelos ataques cibernéticos contra
a Estónia em 2007 (imputados não oficialmente ao Kremlin)
20
. Por outro lado, os peritos definem a missão de segurança no sentido de
alargar a sua zona de intervenção, uma vez que a segurança dos aliados se
encontra muitas vezes longe das suas fronteiras e implica também ameaças não
militares
21
. Nesse âmbito, a Rússia é um dos parceiros privilegiados no âmbito das
parcerias que o relatório enaltece, tendo por base o artigo 4.º da NATO. Existe
um trabalho conjunto, em curso, no sentido de definir ameaças e desafios comuns
entre Bruxelas e Moscovo. O objectivo consiste em fomentar uma diminuição dos
temas de divergências. De 9 a 12 de Fevereiro deste ano, os peritos da NATO
visitaram Moscovo com o objectivo de partilhar ideias e pontos de vista
22
. Em Junho último, o Conselho NATO-Rússia reuniu-se pela primeira vez em
formato confidencial e informal para, nomeadamente, discutir o seu papel na
segurança europeia
23
. O relatório do grupo de peritos, acima mencionado, foi também disponibilizado
em russo (árabe e ucraniano).
No entanto, apesar desses passos em direcção a Moscovo, sublinhamos que já
existe um diálogo institucionalizado NATO-Rússia, desde 1997, que discute um
elenco alargado de questões, nomeadamente combate ao terrorismo, espaço e
questões logísticas
24
. Um alto responsável russo
25
para a cooperação com a NATO sintetiza a perspectiva russa sobre as relações.
Apesar de valorizarem o formato do Conselho NATO-Rússia, a Aliança é vista como
um «clube» ao qual Moscovo não pertence e cuja visão estratégica é curta. Ele
sublinha que o cenário actual é completamente novo, o que requer que a
segurança não seja garantida só para os membros desse clube, reforçando a
rejeição do artigo 5.º. A título de exemplo daquilo que considera ser um
contra-senso, o funcionário russo refere a participação russa na missão da NATO
no Afeganistão e o facto de muitos estados-membros da organização não fazerem
parte dessa missão. Adicionalmente, ele identifica a existência de uma
coligação anti-Rússia no seio da organização desde os seus alargamentos a
Leste. A proposta de Medvedev, as novas doutrinas russas e a contestação da
arquitectura de segurança não deixam, portanto, perspectivar evoluções
significativas na relação após a adopção do novo conceito da Aliança em
Novembro de 2010, apesar dos esforços recentes de aproximação no âmbito do
trabalho do grupo de peritos. Assim, o lema «um tecto de segurança de Vancouver
a Vladivostok» promovido pela NATO
26
na sua revisão actual não apresenta traços comuns significativos com a ideia
pan-europeia de segurança promovida pelos russos.
Identificamos, portanto, dois níveis diferenciados que colocam dificuldades na
relação da Rússia com a NATO. Em primeiro lugar, a longo prazo, as divergências
acerca da legitimidade da ordem de segurança europeia não deixam vislumbrar uma
acomodação satisfatória do lugar de Moscovo na mesma. Adicionalmente, o
«estrangeiro próximo» russo representa um limite político e operacional
dificilmente transponível. As perspectivas de cooperação nessa área de
soberania particularmente sensível apontam para a necessidade de esforços
continuados de aproximação a longo prazo. Nesse contexto, a Ucrânia reveste uma
importância particular aos olhos do Kremlin. Em segundo lugar, a curto prazo,
as perspectivas de cooperação na segurança global (fora da Europa) não se
afiguram tão problemáticas e já existem registos de diálogo e cooperação,
nomeadamente no Afeganistão. As adaptações da aliança e a sua influência na
relação com o gigante russo têm, portanto, um impacto diferenciado nas questões
europeias e nas questões globais. No entanto, existe um debate fundador e
perene subjacente às reacções russas e que os ocidentais têm marginalizado. O
ressurgimento russo poderá traduzir-se numa resposta unilateral mais assertiva
na ausência de condução desse debate. As novas doutrinas russas apontam nesse
sentido e as evoluções russas desde o segundo mandato de Putin evidenciam,
porventura, que essa resposta já estar a ser materializada. O actual Presidente
russo indicia uma postura expectante quando declara estar à espera de
«obter uma imagem mais clara do que irá acontecer à NATO. Gostaríamos
de ver a Aliança completar as suas transformações e tornar-se uma
organização de segurança, uma organização que seja orientada para o
século XXI e não para o século XX. Desejaríamos participar numa
parceria igualitária com outros actores, incluindo os do continente
Europeu. Mas se falamos sobre a NATO, é essencial que se mantenham os
contactos com a Rússia [ ]»
27
.
Não sendo expectável a adesão da Rússia à NATO, é imperioso encontrar um modus
vivendi e um modus operandique sejam capazes de equilibrar dois elementos
opostos que marcam a sua relação: as controvérsias fundadoras e a necessidade
de cooperação assente nas interdependências existentes.
Notas
1
LAVROV, Sergey ' Transcript of Speech by Russian Minister of Foreign Affairs
Sergey Lavrov at the 46th Munich Security Conference. Munich (February 6,
2010).[Consultado em: 7 de Fevereiro de 2010]. Disponível em: http://
www.securityconference.de/lavrov-sergey.463.0.html?&l=1
2
Kramer analisa esse argumento russo e conclui que essa promessa não foi feita
pelos aliados. Kramer, Mark ' «The myth of a no-NATO-enlargement pledge to
Russia». in The Washington Quartlerly. vol. 32, n.º 2, pp. 39-61, 2009.
3
MEDVEDEV, Dmitry ' Speech at Meeting with German Political, Parliamentary and
Civic Leaders. Berlin (June 5, 2008).[Consultado em: 10 de Junho de 2008].
Disponível em: http://www.kremlin.ru/eng/speeches/2008/06/05/2203_type829
12type82914type84779_202153.shtm
4
O Tratado de Redução das Forças Convencionais na Europa(tratado CFE, com a
sigla inglesa).
5
LAVROV, Sergey ' «Shake loose the Cold War. Europe, North America and we in
Russia need a new security treaty. So this is our proposal». in The Guardian,
20 de Janeiro de 2009.
6
OSCE ' Corfu Informal Meeting of OSCE Foreign Ministers on the Future of
European Security Chair's Concluding Statement to the Press (June 28, 2009).
[Consultado em: 30 de Junho de 2009]. Disponível em: http://www.osce.org/
documents/cio/2009/06/38505_en.pdf
7
Entrevista realizada pela autora no Council of the European Union, em 1 de
Março de 2010.
8
CONFERENCE ON SECURITY AND COOPERATION IN EUROPE ' Conference on Security and
Co-operation in Europe Final Act (1975). [Consultado em: 21 de Março de 2004].
Disponível em: http://www.osce.org/documents/mcs/1975/08/4044_en.pdf
9
IVANOV, Igor S. ' The New Russian Diplomacy. Washington, DC: The Nixon Center
and Brookings Institution Press, 2002, pp. 93-94.
10
CONFERENCE ON SECURITY AND COOPERATION IN EUROPE ' Charter of Paris for a New
Europe (1990). [Consultado em: 21 de Março de 2004]. Disponível em: http://
www.osce.org/documents/mcs/1990/11/4045_en.pdf
11
Ibidem.
12
CONFERENCE ON SECURITY AND COOPERATION IN EUROPE ' Lisbon Document 1996.
[Consultado em: 21 de Março de 2004]. Disponível em: http://www.osce.org/
documents/mcs/1996/12/4049_en.pdf
13
KLIMOV, Andrey ' Speech at Extraordinary Meeting of the European Union-Russia
Parliamentary Cooperation Committee(September 23).Bruxelas: European
Parliament, 2008. Andrey Klimov é deputado e presidente da delegação da
assembleia federal russa junto do Conselho de parceria e Cooperação UE-Rússia.
14
Entrevista realizada pela autora na Embaixada Francesa em Moscovo, a 11 de
Outubro de 2007.
15
Entrevista realizada pela autora no Parlamento Europeu, a 24 de Setembro de
2008.
16
LARRE, Klaus ' Obama and Europe (April 1, 2010). AICGS Advisor.[Consultado em:
2 de Abril de 2010]. Disponível em: http://www.aicgs.org/documents/advisor/
larres0410.pdf
17
GNESOTTO, Nicole (rapporteur) ' «reshaping EU-US relations: a concept paper».
in Notre Europe, Março de 2010.
18
PRESIDENT OF RUSSIA - The Foreign Policy Concept of the Russian Federation
(July 12, 2008).[Consultado em: 7 de Setembro de 2008]. Disponível em: http://
eng.kremlin.ru/text/docs/2008/07/204750.shtml. ZYSK, Kataryna ' Russian
National Security Strategy. Expert comment. In Geopolitics in the High North,
15 de Junho de 2009. [Consultado em: 3 de Fevereiro de 2010] Disponível em:
http://www.geopoliticsnorth.org/
index.php?option=com_content&view=article&id=87:russian-national-
security-strategy&catid=1:latest-news. ADMIN ' Russia's new military
doctrine: more threats, smaller risks. In Russia Today, 17 de Dezembro de
2009. [Consultado em: 21 de Janeiro 2010]. Disponível em: http://
www.infowars.com. A doutrina militar está disponível em russo, no site oficial
da Presidência, em http://news.kremlin.ru/ref_notes/461 (consultado em Março de
2010).
19
O relatório está disponível em: http://www.NATO.int/strategic-concept/
expertsreport.pdf.
20
Os ataques cibernéticos são identificados como ameaças não militares, tais
como os ataques conta as redes de abastecimento de energia.
21
MAULNY, Jean-Pierre ' Le rapport du groupe des experts sur le nouveau concept
stratégique de l'OTAN OTAN 2020: sécurité assurée engagement dynamique'."
In Les analyses stratégiques de l'IRIS. 10 de Junho de 2010.
22
NATO - NATO's new Strategic Concept to be discussed in Moscow. [Consultado em:
4 de Março de 2010]. Disponível em: http://www.NATO.int/cps/en/SID-9FC1F9E0-
FA72D530/NATOlive/news_61401.htm?
23
NATO- Making the NATO-Russia Council a substance-based forum, 15 de Junho de
2010 Consultado em: 29 de Juho de 2010] Disponível em: http://www.NATO.int/cps/
en/NATOlive/news_64844.htm?
24
O sítio internet NATO-Rússia descreve as principais áreas de cooperação,
acessível em http://www.NATO.int/cps/en/sid-52C4a8fe-8f657df5/NATOlive/
topics_50090.htm?#key.
25
Entrevista realizada pela autora no ministério dos negócios estrangeiros russo,
em Moscovo, a 27 de Setembro de 2007.
26
NATO - ''One security roof'' from Vancouver to Vladivostok, 27 de Março de
2010. [Consultado em: 2 de Abril de 2010]. Disponível em: http://www.NATO.int/
cps/en/NATOlive/news_62391.htm?
27
PRESIDENT OF RUSSIA - Speech at meeting with Russian ambassadors and permanent
representatives in international organisations, 12 de Julho de 2010.
[Consultado em: 16 de Julho de 2010]. Disponível em: http://
eng.news.kremlin.ru/transcripts/610/print
Rua Dona Estefânia, 195, 5 D
1000-155 Lisboa
Portugal
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