Liberdade contratual e discriminação em função do sexo: a Lei nº 14/2008
Die Geschichte der Vertragsfreiheit ist die ihrer Beschränkung
(Leisner, 1960, p. 323)
1. Introdução
O Parlamento português aprovou, por proposta do Governo[1], a 24 de Janeiro de
2008, aquela que viria a ser a Lei n.º 14/2008, de 12 de Março, que “Proíbe e
sanciona a discriminação em função do sexo no acesso a bens e serviços e seu
fornecimento, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2004/
113/CE, do Conselho, de 13 de Dezembro.”[2]/[3]
A Lei, aprovada por unanimidade, é composta por vinte artigos de natureza
diversificada, que podem ser agrupados em duas partes. Uma primeira, de âmbito
essencialmente[4] civil (artigos 1.º a 11.º) e uma segunda, de natureza
sancionatória pública.
Nos artigos 1.º a 3.º, define-se o objecto e âmbito de aplicação. Nos artigos
4.º a 7.º, definem-se as condutas proibidas. Nos artigos 8.º a 10.º, prevêem-se
os meios de defesa e estabelecem-se regras sobre o ónus da prova e
responsabilidade. No artigo 11.º atribuem-se direitos processuais a associações
e ONG’s.
Na segunda parte (artigos 12.º a 22.º), qualificam-se como contra-ordenações
certos comportamentos e regula-se o respectivo procedimento e direito
subsidiário. Prevê-se ainda que uma entidade integrada na Presidência do
Conselho de Ministros, denominada “Comissão para a Cidadania e Igualdade de
Género” [CIG][5], a quem cabe, entre outras funções, o acompanhamento da
aplicação da lei, elabore de um relatório anual, que deve ser publicitado no
respectivo site[6]/[7].
Interessa-nos, para esta breve análise, apenas a primeira parte do texto, sem
prejuízo de algumas referências avulsas a normas da segunda, de modo a
verificar se e em que medida a Lei n.º 14/2008 limita a liberdade contratual,
nos termos em que a mesma se encontra consagrada no artigo 405.º do Código
Civil.[8]
O legislador português, ao contrário, por exemplo, do alemão optou por transpor
a Directiva referida autonomamente, uma vez que anteriores directivas
comunitárias sobre discriminação por diferentes razões haviam já sido
transpostas para o direito português.[9]
2. O âmbito objectivo de aplicação da lei
De acordo com o artigo 1.º, a lei tem como objecto[10] “prevenir e proibir a
discriminação, directa e indirecta, em função do sexo, no acesso a bens e
serviços e seu fornecimento e sancionar a prática de actos que se traduzam na
violação do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres”.[11]
Para esse efeito, aplica-se a entidades públicas e privadas (art.º 2.º, n.º 1)
que forneçam bens e prestem serviços disponíveis ao público, sem quaisquer
excepções relacionadas com a natureza jurídica dos sujeitos, mas com várias
excepções em função do contexto ou área de actividade em que os actos
discriminatórios possam ocorrer[12]
A Lei proíbe o “Assédio” simples e o “Assédio sexual”, mas proíbe também, o que
mais nos interessa agora, a discriminação directa e a discriminação indirecta,
conceitos definidos no artigo 3.º. Nesta parte, o legislador português limitou-
se a transcrever as definições constantes do artigo 2.º da Directiva.
Considera-se haver discriminação directa em “todas as situações em que, em
função do sexo, uma pessoa seja sujeita a tratamento menos favorável do que
aquele que é, tenha sido ou possa vir a ser dado a outra pessoa em situação
comparável”. E haverá discriminação indirecta “sempre que uma disposição,
critério ou prática aparentemente neutra coloque pessoas de um dado sexo numa
situação de desvantagem comparativamente com pessoas do outro sexo, a não ser
que essa disposição, critério ou prática objectivamente se justifique por um
fim legítimo e que os meios para o alcançar sejam adequados e necessários”.
A principal diferença entre os dois conceitos passa, por isso, pela
circunstância de a discriminação ser imediatamente verificável ou surgir
ocultada sob um critério em que o género pode não ser sequer referido, mas que
conduz ao tratamento menos favorável, ceteris paribus, de homens ou de
mulheres.
A Directiva prevê, para além da responsabilidade civil, outras consequências,
ainda no plano civil, para a violação do princípio da igualdade de tratamento
entre homens e mulheres no fornecimento de bens ou serviços, admitindo que os
Estados consagrem disposições internas de acordo com as quais sejam ou “possam
ser declaradas nulas, ou sejam alteradas as disposições contrárias ao princípio
da igualdade de tratamento que figurem em contratos, regulamentos internos de
empresas ou estatutos de associações com ou sem fins lucrativos[13]” (artigo
13.º, al. b).
Na esteira da Directiva, o legislador português consagrou mecanismos, que
variam, no nosso entender, consoante o momento e o acto em que a discriminação
ocorre. Assim, se a discriminação resulta do conteúdo de uma relação contratual
já estabelecida, além da responsabilidade civil, haverá lugar à nulidade das
cláusulas discriminatórias, com as consequências que seguir se indicam no
texto. Se a discriminação ocorre antes ou independentemente de qualquer relação
contratual, os remédios civilísticos passam fundamentalmente pela
responsabilidade civil.
3. A discriminação inserida em cláusulas contratuais de contratos já celebrados
Quaisquer cláusulas inseridas em contratos não excluídos, celebrados com vista
ao fornecimento de bens ou serviços, ainda que a título gratuito, que
constituam discriminação directa ou indirecta, são proibidas pelo artigo 4.º,
n.º 1. Entre outras, consideram-se discriminatórias cláusulas que conduzam ao
fornecimento ou fruição desfavoráveis de bens ou serviços, incluindo serviços
de saúde, ou que condicionem a aquisição desses bens.[14]
As cláusulas discriminatórias são nulas, de acordo com o artigo 4.º, n.º 5 e
dão lugar a responsabilidade civil. A primeira solução é inovadora na
legislação anti-discriminação portuguesa. Com efeito, os diplomas legais
aprovados anteriormente, designadamente para prevenir a discriminação em função
da raça, nacionalidade, cor ou etnia, não consagram mecanismo semelhante.[15]
A nulidade das cláusulas não implica, necessariamente, a nulidade de todo o
contrato, podendo aplicar-se, na parte não afectada pela nulidade, as regras
legais supletivas. Porém, nos termos gerais, a nulidade de algumas cláusulas
poderá conduzir à nulidade total do contrato, se afectar elemento essencial não
suprível. É por isso patente, na lei portuguesa, a presença de um favor
negotii, no sentido da manutenção do contrato, expurgado das cláusulas
ilícitas.
Por outro lado, no artigo 10.º, n.º 3, afirma-se que nos “contratos que
contenham cláusulas discriminatórias, o contraente lesado tem o direito à
alteração do contrato de modo que os direitos e obrigações contratuais sejam
equivalentes aos do sexo mais beneficiado.”
Esta disposição, plenamente harmonizável com a nulidade das cláusulas
discriminatórias, poderá, pelo menos em alguns casos, conduzir a resultados
diferentes dos da clássica aplicação de normas supletivas de integração da
vontade negocial. Com efeito, as obrigações contratuais aplicáveis ao sexo mais
beneficiado podem ser mais ou menos[16] amplas ou extensas que as que
resultariam da aplicação das normas legais supletivas. Mas, mais importante do
que isso, o recurso a este critério poderá evitar a nulidade integral de certos
contratos cujas cláusulas discriminatórias respeitassem a aspectos essenciais,
insusceptíveis de serem supridos pela via tradicional.
4. A discriminação prévia à celebração de contratos
De acordo com a Lei, a discriminação pode igualmente ocorrer antes da
celebração de qualquer contrato. Prescreve o artigo 10.º, n.º 1, que é
“proibida a discriminação, directa ou indirecta […] assente em acções, omissões
ou cláusulas contratuais no âmbito do acesso a bens e serviços e seu
fornecimento”, considerando-se designadamente discriminatórias as práticas ou
cláusulas contratuais de que resulte “a) A recusa de fornecimento ou o
impedimento da fruição de bens ou serviços; b) O fornecimento ou a fruição
desfavoráveis de bens ou serviços; c) A recusa ou o condicionamento de compra,
arrendamento ou subarrendamento de imóveis[17]/[18]; d) A recusa ou o acesso
desfavorável a cuidados de saúde prestados em estabelecimentos públicos ou
privados.”
Consideram-se também discriminatórias, de acordo com o n.º 3 do artigo 10.º,
“quaisquer instruções ou ordens com vista à discriminação directa ou
indirecta.”
Deste modo, a discriminação pode resultar de práticas anteriores à celebração
de um contrato que dê origem ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços
não excluídos, resultando da discriminação o impedimento de acesso a esse bem
ou serviço por parte de um dos sexos ou exigindo-se a um dos sexos condições
especialmente gravosas, que conduzem à não celebração por indivíduos do sexo
prejudicado de contratos com a entidade que adopta a prática discriminatória.
A discriminação, neste contexto, verificar-se-á, por exemplo, quando certa
entidade prestadora de um serviço se recusar, pura e simplesmente, a prestar
tal serviço a homens ou a mulheres.[19]
Prevê a lei, sem discriminar, que os actos e cláusulas discriminatórios são
“nulos dando lugar a responsabilidade civil pelos danos causados” (artigo 10,º,
n.º 5). Não é claro se a responsabilidade civil é ou não indissociável da
nulidade. Creio que a norma só será operativa e eficaz se se entender que se
trata de sanções distintas e autónomas, ainda que cumuláveis, sendo caso disso.
Com efeito, se a nulidade das cláusulas discriminatórias verificadas em
contratos celebrados conduz aos efeitos apontados no parágrafo anterior, tal
nulidade é mais difícil de entender quando não tenha sido (ainda) estabelecida
qualquer relação contratual. Como afirmar a nulidade, por ser discriminatória
na acepção da lei, de uma cláusula inserta numa minuta de contrato composto por
cláusulas contratuais gerais ou num contrato de adesão, elaborado pelo
fornecedor de um bem ou serviço, mas à qual não aderiu ainda nenhum cliente do
sexo discriminado?[20]
Da mesma forma, se a discriminação ocorrer num “acto” ou “prática”
discriminatória, que não corresponda a qualquer cláusula contratual, é
igualmente difícil perceber em que medida a “nulidade” de tais actos ou
práticas é operativa.[21]
Acrescenta a lei, como referido, que a discriminação por esta via dará lugar a
responsabilidade civil “de acordo com os prejuízos causados”. Para que haja
lugar a esta responsabilidade, bastará a verificação de um acto, prática ou
cláusula discriminatória, ainda que tal acto ou prática não possa ser
considerado nulo, na medida em que nulidade e responsabilidade civil devem ser
entendidas como sanções distintas.
5. A responsabilidade civil
O artigo 10.º, n.º 1 prevê que a prática de qualquer acto discriminatório
confere ao lesado o direito a uma indemnização, por danos patrimoniais e não
patrimoniais, a título de responsabilidade civil extracontratual, nos termos
gerais.
No direito português, a lei e a doutrina distinguem responsabilidade civil
contratual e responsabilidade civil extracontratual. Apesar de alguns aspectos
comuns, há diferenças importantes entre elas, quer quanto ao ónus da prova,
quer quanto aos prazos de prescrição, estando o lesado numa situação mais
vantajosa, quanto a ambos os aspectos, tratando-se de responsabilidade
contratual.
A Lei 14/2008 qualifica a responsabilidade por actos discriminatórios como de
responsabilidade extracontratual, mesmo nas hipóteses em que a discriminação
ocorra em cláusula de contrato celebrado. Isto implica a aplicação do prazo de
prescrição de 3 anos, a contar do conhecimento do acto discriminatório (que
pode não coincidir com a celebração do contrato), de acordo com o artigo 498.º
do Código Civil.
Todavia, a Lei 14/2008 consagra regras próprias quanto ao ónus da prova,
prevendo no artigo 9.º que quem invocar ter sido alvo de uma conduta
discriminatória deve fazer prova dessa discriminação, cabendo à parte demandada
demonstrar que não houve violação do princípio da igualdade de tratamento.
No meu entender, uma interpretação literal do preceito importaria a violação do
artigo 9.º da Directiva 2008/113/CE. Com efeito, este prescreve que ao lesado
cabe apresentar os “elementos de facto constitutivos da presunção de
discriminação directa ou indirecta”, ficando, por isso, dispensado de fazer
prova de todos os elementos constitutivos do seu direito, prova muitas vezes
difícil, sobretudo na discriminação indirecta. A referência, na Directiva 2008/
113/CE aos “elementos de facto constitutivos da presunção de discriminação”
corresponde a um “aligeirar do ónus da prova (“Beweiserleichterung”)[22],
idêntico ao verificado nas anteriores directivas anti-discriminação[23].
Assim sendo, a norma portuguesa deve ser interpretada conforme a Directiva, não
devendo o tribunal ou outra instância incumbida de a aplicar exigir ao lesado
mais do que a demonstração de um tratamento diferenciado face a outros
sujeitos, cabendo, então, ao réu provar que tal diferença de tratamento não
constitui discriminação na acepção da lei.
Por outro lado, prevê-se no número 2 do artigo 10.º que o tribunal deve atender
ao grau de violação dos interesses em causa, ao poder económico dos autores do
ilícito e às condições da pessoa alvo da prática discriminatória. A utilização
de tais critérios, que conjugam a justiça estrita com a equidade, poderá
conduzir a resultados distintos dos que se obteriam com recurso aos critérios
de determinação da indemnização por responsabilidade civil nos termos gerais,
em que o critério é dos danos efectivamente sofridos pelo lesado, pelo menos
nos casos de dolo.
Também neste ponto, o diploma português parece não respeitar integralmente o
artigo 8.º, n.º 2, da Directiva, o qual exige que os Estados adoptem medidas
capazes de “garantir a existência de uma real e efectiva indemnização ou
reparação, conforme os Estados-Membros o determinem, pelos prejuízos e danos
sofridos por uma pessoa lesada em virtude de um acto discriminatório na acepção
da presente directiva, de uma forma dissuasiva e proporcionada em relação aos
prejuízos sofridos”. O poderio económico dos autores do ilícito e as condições
da pessoa alvo da prática discriminatória apenas podem ser utilizados para
fixar o quantum indemnizatório em montante inferior ao dos danos efectivamente
sofridos, uma vez que existem, paralelamente, mecanismos de direito público
adequados à repressão de tais comportamentos. A fixação de indemnização em
montante superior aos danos sofridos pelo lesado contrariaria a remissão para
as regras gerais da responsabilidade civil (em que tal fixação não é permitida)
e implicaria uma inadmissível dupla sanção pelo mesmo comportamento.
6. Liberdade contratual e princípio da igualdade de tratamento
No direito português, o princípio da liberdade contratual encontra-se previsto
no já citado artigo 405.º do Código Civil e ainda, no que respeita à vinculação
das partes, no artigo 406.º.
A liberdade contratual integra diversas dimensões, de acordo com a doutrina
nacional. Desde logo, a liberdade contratual negativa – a liberdade de
contratar ou não contratar. Num segundo momento, a liberdade de escolha da
parte contrária. Integra ainda o conceito a liberdade de fixação ou modelação
do conteúdo contratual (expressamente referida no citado artigo 405.º) e ainda,
segundo alguns autores, a liberdade de forma.
A liberdade contratual, em todas as referidas dimensões, é entendida como uma
manifestação (a principal, mas não a única) da autonomia privada. A autonomia
privada encontra-se constitucionalmente consagrada nos artigos 26.º, n.º 1 e
61.º da Constituição. O primeiro integra-se nos Direitos Liberdades e
Garantias, uma categoria especial de direitos fundamentais. O segundo (que
acentua a dimensão económica, lato sensu, da autonomia privada), constitui
igualmente um direito fundamental, ainda que sem a dignidade de direitos,
liberdades e garantias, por força da sua integração sistemática no articulado
constitucional.
A autonomia privada ou autonomia da vontade “consiste no poder reconhecido aos
particulares de autoregulamentação dos seus interesses, de autogoverno da sua
esfera jurídica”[24].
A liberdade contratual pode ser limitada pela lei. Assim o afirma o próprio
artigo 405.º, n.º 1 do Código Civil. No entanto, tais limitações têm de ser
justificadas, adequadas e proporcionadas, atenta a natureza de direito
fundamental da autonomia privada. E os graus de limitação legal da liberdade
contratual serão variáveis consoante a dimensão daquela liberdade que se
considere. Assim, as limitações à liberdade de forma tendem a ser muito
frequentes, nomeadamente por razões de segurança jurídica. Do mesmo modo, são
comuns as limitações à liberdade de fixação do conteúdo dos contratos[25].
Mais complexas são as limitações às outras duas dimensões. A liberdade de
contratar ou não contratar e a liberdade de escolha da parte contrária.
A Lei 14/2008 introduz[26] limitações importantes a todas as apontadas
dimensões da liberdade contratual, com a eventual exclusão da liberdade de
forma.
7. Limitação da liberdade de fixação do conteúdo do contrato.
A proibição de cláusulas discriminatórias constitui, claramente, uma restrição
da liberdade de fixação do conteúdo contratual. Ao cominar-se a sanção de
nulidade para as cláusulas que impliquem discriminação directa ou indirecta,
limita-se a liberdade de fixação do conteúdo contratual. Tal limitação ocorrerá
mesmo que a cláusula discriminatória tenha sido expressamente aceite pela parte
lesada, na medida em que não se estabelece na lei nenhum regime especial para a
nulidade com este fundamento. No direito português vigente, a nulidade é de
conhecimento oficioso, salvo disposição legal em contrário, por força do artigo
286.º do Código Civil. Assim, no caso alguma das partes num contrato que
contenha uma cláusula discriminatória instaurar, por exemplo, uma acção com
vista ao respectivo cumprimento, nada impede que o tribunal declare a nulidade
de uma cláusula, retirando dessa declaração as pertinentes consequências, se
dispuser, naturalmente, de elementos suficientes para o efeito, mesmo que tal
nulidade não tenha sido invocada por qualquer das partes, designadamente pela
parte lesada.
Em todo o caso, o resultado previsto pela lei poderia, em muitos casos, ser
atingido por outras vias, designadamente através do mecanismo da usura,
consagrado no artigo 282.º do Código Civil.[27] Sendo certo que a usura
pressupõe a exploração de um estado de especial necessidade, ligeireza,
inexperiência, etc., da parte contrária, tal exploração ocorrerá em muitos dos
casos abrangidos pela Lei 14/2008. Com efeito, resulta das noções de
discriminação directa ou indirecta que há alguém que sofre um tratamento menos
vantajoso em razão do seu sexo. Este tratamento desvantajoso implicará, em
princípio, a obtenção de um benefício injustificado para a parte contrária.
Todavia, a sanção para a usura não é a nulidade da(s) cláusula(s) usurária(s)
mas a mera anulabilidade (do negócio jurídico) ou a modificação do contrato de
acordo com juízos de equidade. Nesta medida, o regime da Lei 14/2008 é mais
vantajoso para o lesado do que o regime da usura, pois não está sujeito aos
apertados prazos de caducidade da acção de anulação e a modificação do conteúdo
contratual, quando tenha lugar, é feita, apesar de tudo, em termos mais
previsíveis do que os que resultam dos critérios da equidade.
Em todo o caso, o fundamento da proibição da discriminação em função do sexo é
o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição.
O artigo 13.º encontra-se fora do capítulo respeitante aos Direitos, Liberdade
e Garantias. Como tal, a sua natureza de “direito fundamental” de tal princípio
é controvertida[28], podendo, por isso, pôr-se em causa a sua aplicabilidade
nas relações horizontais, prevista expressamente apenas para os Direitos,
Liberdades e Garantias pelo artigo 18.º da Constituição, no qual se afirma que
os preceitos que os consagram “vinculam entidades públicas e privadas”.
Independentemente da posição que se adoptar em tal polémica doutrinal, o artigo
26.º, n.º 1, incluído no capítulo dos Direitos Liberdades e Garantias e, como
tal, beneficiando expressamente do regime próprio previsto no artigo 18.º,
consagra o “direito à protecção legal contra quaisquer formas de
discriminação”. Este direito à “protecção legal” implicará a necessidade de
mediação de lei (infra-constitucional) para que a discriminação seja ilícita
ou, pelo contrário, é autónomo de tal mediação, pelo menos nos casos em que a
discriminação se encontre proibida pela Constituição? Entendo ser de defender
esta última posição. Na medida em que a Constituição proíbe expressamente a
discriminação em função do sexo, qualquer acto discriminatório seria já
ilícito, por violação daquele artigo 26.º, n.º 1, mesmo na ausência de um
diploma legal específico.[29]
No entanto, a Lei 14/2008 constitui um avanço na protecção contra a
discriminação em razão do sexo, na medida em que clarifica o que deve entender-
se por conduta discriminatória, por um lado, e em que especifica as sanções
para tais comportamentos.
8. Limitação da liberdade contratual negativa
Ao proibir condutas discriminatórias que conduzam à “recusa de fornecimento ou
o impedimento da fruição de bens ou serviços”[30], a Lei 14/2008 pode
constituir um limite à liberdade contratual negativa. Implicará tal proibição
um verdadeiro dever de contratar?
A liberdade de contratar ou não contratar integra um núcleo “altamente
protegido e só em casos excepcionais pode ser afectado por um dever jurídico de
contratar”[31].
Há muito que a doutrina admite a possibilidade de sujeitos privados estarem
submetidos a tal dever[32]. Citam-se, como exemplos clássicos, o seguro
obrigatório de responsabilidade civil automóvel, o dever de prestação de
serviços médicos em caso de urgência ou as empresas concessionárias de serviços
públicos[33]. Discute-se ainda se, pelo menos certas empresas, em regime de
monopólio, devem ou não estar sujeitas a tal dever. Pense-se no caso de um
restaurante ou numa farmácia, que sejam os únicos existentes numa determinada
localidade. As regras da concorrência seriam suficientes, em princípio, para a
imposição de tal dever, sem necessidade de recurso a normas de proibição da
discriminação.
Nem a Directiva nem a Lei portuguesa consagram expressamente o dever de
contratar, designadamente quando as entidades que fornecem bens ou prestem
serviços adoptem práticas das quais resulte a impossibilidade de contratação
por parte de algum dos sexos.
No entanto, o artigo 10.º, n.º 1 da Lei, ao consagrar a responsabilidade civil
extracontratual, remete para os “termos gerais”. Ainda que ali se fale em
“direito a uma indemnização”, o argumento não deve impressionar-nos. Com
efeito, numa secção sob a epígrafe “Obrigação de indemnização”, o artigo 562.º
do Código Civil consagra, como princípio geral, a reconstituição da “situação
que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”. O
legislador português consagrou por isso o princípio da reparação natural, tendo
a indemnização em dinheiro carácter subsidiário. Ora, a reconstituição da
situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à
reparação pode perfeitamente passar pela celebração do contrato recusado, se o
lesado mantiver o interesse na sua celebração, bem entendido, e sem prejuízo de
indemnização em dinheiro dos danos não reparados por aquela via,
Ainda que se entenda que a Lei 14/2008 consagra um verdadeiro dever de
contratar, haverá casos em que a violação de tal dever não dará lugar a acção
de cumprimento, mas apenas a acção de indemnização. Com efeito, como refere
Garcia Rubio[34], “la obligación de contratar […] debe limitarse pues a los
casos en los que este contrato es todavía posíble, sin perjuício de terceros de
buena fe”.
9. Conclusões
O legislador português transpôs para o ordenamento jurídico nacional a
Directiva 2004/113/CE através da Lei 14/2008, de 12 de Março, optando por
tratar separadamente a discriminação em razão do sexo de outras formas de
discriminação, constantes de Directivas anteriores.[35].
A legislação portuguesa acompanha integralmente a Directiva no que respeita à
definição de discriminação.
Porém, a lei portuguesa afasta-se – mal – do dispositivo comunitário em matéria
de ónus da prova, parecendo onerar a vitima de actos discriminatórios com a
prova de factos que vão para além do permitido pela Directiva e mesmo para além
do que, para outras formas de discriminação, se prevê em diplomas nacionais
anteriores. Uma interpretação do direito interno conforme ao direito da União
permite ultrapassar tal dificuldade, a qual, no entanto, poderia ter sido
evitada através de uma redacção diferente do artigo 9.º da lei.
Por outro lado, o legislador português foi para além da directiva, ao conferir
ao lesado, vitima de discriminação em cláusulas de contratos celebrados, o
direito de exigir a modificação do contrato, com o afastamento das cláusulas
discriminatórias, consideradas nulas e à sua substituição pelas cláusulas que
seriam aplicáveis ao sexo não discriminado. Trata-se de solução inovadora, de
aplaudir, por evitar a nulidade integral do contrato e por ser uma forma eficaz
de assegurar a igualdade de tratamento, fim primeiro da lei e da Directiva.
Alguns dos direitos conferidos pela Directiva poderiam já ser alcançados antes
da entrada em vigor da lei, recorrendo a figuras clássicas do direito civil,
designadamente a proibição da usura. O âmbito de aplicação das normas que
proíbem a discriminação e os remédios previstos na lei, porém, são diferentes
dos da usura, sendo a Lei 14/2008, em geral, mais favorável ao lesado. Em
alternativa, também o princípio da boa fé poderia ser utilizado para impedir
determinadas práticas discriminatórias.[36]
A proibição da discriminação em razão do sexo, no âmbito de relações
horizontais, constitui uma limitação da liberdade contratual em várias das suas
dimensões. Tendo esta, enquanto dimensão da autonomia privada, dignidade
constitucional, na forma mais solene de Direitos, Liberdades e Garantias, o
instrumento legislativo adequado para a sua limitação é a Lei do Parlamento (em
lugar do Decreto-lei do Governo, a forma mais comum para a transposição de
directivas comunitárias). A lei 14/2008 procede à ponderação de dois valores
fundamentais, ligados à dignidade da pessoa humana e, como tal consagrados no
mesmo artigo da Constituição: a autonomia da vontade e a proibição de qualquer
forma de discriminação, dissipando-se assim as dúvidas que poderiam suscitar-se
sobre a conjugação de ambos os valores.
A aplicação da Lei 14/2008 pode implicar um dever de contratar. Ainda que a lei
o não refira expressamente, no direito português, a regra em matéria de
reparação de danos ao abrigo das normas que regulam a responsabilidade civil é
a reparação natural. Sempre que a celebração de um contrato recusado
ilicitamente seja possível, nada impede que o lesado exija tal celebração, sem
prejuízo da indemnização dos danos remanescentes.
A lei portuguesa desrespeita a Directiva, na medida em que não assegura a
indemnização integral dos danos, ao mandar ter e conta as condições económicas
do lesante e do lesado. Também aqui, na fixação do quantum indemnizatório, os
tribunais deverão ter em conta a exigência comunitária de indemnização integral
dos danos, sob pena de violação do princípio da interpretação conforme ao
direito da União.