O genovês MicerManuel Pessanha, Almirante d'El-Rei D. Dinis
Emanuele Pessagno nasceu no último quartel do século XIII numa família de
mercadores, peritos navegadores, armadores e homens políticos originária da Val
Graveglia e que, no fim do século XII, se mudou para Lavagna, para estabelecer-
se a seguir em Génova no fim da centúria. Desde então a família morou ad
Modulum in contrata Sancti Marchi, ou seja, no bairro de Molo, o porto natural
da cidade, ambiente particularmente propício para o desenvolvimento e a
aprendizagem da actividade marítima e de onde, conforme um hábito e um ritual
preciso que perdurou até 1400, embarcavam todos os comandantes das flotilhas
genovesas1.
Entre 1223 e 1234 encontramos um Gherardo Pessagno activo em La Rochelle; um
Guglielmo Pessagno pertenceu ao Colégio dos Anciãos da República de Génova
(1262); um Nicolò Pessagno, talvez o pai do almirante português, foi um dos
embaixadores enviados junto de Martinho IV para tratar da paz entre ligures e
pisanos que então se batiam pelo domínio na Córsega.
Emanuele foi o segundo de quatro irmãos, todos sabedores de mar e entregues
às actividades marinheiras que, na altura, compreendiam também os tráfegos
comerciais por via marítima. Eles foram Leonardo, Emanuele, Filippo dito
Pessagnino e Antonio.
As actividades dos quatro irmãos vieram muitas vezes a cruzar-se, indício do
facto de, ao longo do tempo, eles se terem mantido em contacto, conduzindo por
vezes carreiras paralelas e, em caso de necessidade, dando-se mútua
assistência.
Antonio2, o mais jovem, prestou serviço junto da corte inglesa de Eduardo II,
onde exerceu cargos de enorme importância. Em 1312 assumiu o papel de King's
merchant: para a casa real comprava pérolas, vestidos, mas sobretudo grão,
vinho e lã. Em 1314 foi tesoureiro da Coroa, encarregando-se de um ingente
empréstimo com vista às operações militares na Escócia e recebendo jóias em
penhor pelos seus serviços. Foi por diversas vezes enviado junto da corte
pontifícia de João XXII na qualidade de embaixador para tratar de assuntos
delicados em nome do rei3. Frequentemente, a título de compensação, quer no
Reino de Inglaterra, quer no período em que gravitou na órbita da corte
francesa (ca. 1318-1327), foram-lhe oferecidas as rendas provenientes de
diversas actividades (como minas na Cornualha e alfândegas portuárias em
Londres) e foram-lhe confiados bens pertencentes à já extinta Ordem do Templo
(a casa templária de Dinsley, em 1313, e os bens em Champagne e Aquitânia,
desde os anos 30). Nomeado cavaleiro em 1315, com uma renda de 3000 libras
esterlinas, exerceu também cargos administrativos: foi superintendente da
Cornualha, antes, e senescal de Guyenne depois.
Leonardo4 também gravitou na órbita da corte inglesa, como atesta a carta de
recomendação de Eduardo II de Inglaterra, de 31 de Janeiro de 1317, para
dirigir-se a Génova para o aluguer de cinco galés por três meses, providas de
duzentos homens, para empregar na guerra de Escócia (empresa na qual foi
envolvido também o irmão Antonio, emprestando dinheiro à Coroa para
subvencionar as operações militares)5. Porém, as relações com a corte inglesa
remontam a uma dezena de anos antes, quando, em 1306, Leonardo alugou a
Gianuino Maloncello e aos seus sócios milaneses duas galés com cento e quarenta
homens dispostos a ir ad partes Angliae, onde a presença genovesa já se
andava consolidando. Nesta empreitada comercial e marítima tomou parte também o
irmão Emanuele6.
Sobre Filippo dito Pessagnino sabe-se muito pouco: compareceu num auto notarial
celebrado na presença do notário Giannino Vataccio no dia 18 de Janeiro de 1316
no qual se refere a compra de uma quantia de grão a Antonio Ermirei por um
Leonardo de Pezagno de Lavania, neste caso apresentando-se como venditor
claparum, ou seja, vendedor de ardósia, junto com Pezagninus de Pezagno de
Lavania, frater dicti Leonardi7.
Emanuele Pessagno8, ou Micer9 Manuel Pessanha como é conhecido em Portugal,
começou desde muito jovem a andar no mar. O seu exórdio remonta a 1303 quando,
junto com o irmão Leonardo, alcançou o Mar Negro assumindo o comando da sua
primeira galé, exercendo a função que, em termos da marinharia portuguesa,
corresponderia ao alcaide de galé10. Gravitando na órbita de influência dos
irmãos, em 1317 Manuel deu um salto na sua carreira quando foi escolhido pelos
cavaleiros João Lourenço e Vicente Eanes César para exercer o cargo vacante de
almirante do Reino de Portugal. A escolha dos emissários do rei D. Dinis, em
missão em Avinhão, recaiu sobre ele por gozar de boa reputação junto da corte
inglesa e na cúria pontifícia11.
Convidado a dirigir-se a Portugal, o encontro entre D. Dinis e o escolhido
decorreu de forma oficial em Santarém. A faustosa cerimónia de nomeação foi
caracterizada por um solene ritual em parte religioso, devido à vigília
nocturna de oração na igreja no dia anterior, e em parte leigo, com a chegada
do eleito, vestido de roupas requintadas, ao paço do rei. Na concepção geral e
em alguns aspectos, como a oferta por parte do soberano dum anel e duma espada,
para a mão direita, e dum estandarte com as armas régias, para a mão esquerda,
esta cerimónia recorda a investidura dos cavaleiros12. Foi assim que, no dia 1
de Fevereiro de 1317, o rei e o genovês assinaram o contrato que continha as
obrigações recíprocas das partes. Neste auto D. Dinis, de acordo com a rainha
D. Isabel e o infante herdeiro D. Afonso, estabelecia as regras de contratação
para o novo almirante, impondo, entre muitas outras coisas, o vínculo de
vassalagem e de lealdade ao rei e aos seus sucessores13.
A primeira reflexão que nos ocorre incide mesmo na aura de solenidade que
envolveu a cerimónia de investidura do almirante e a terminologia utilizada no
contrato. Embora a forma e as palavras do auto fossem habitualmente utilizadas
em diplomas de teor similar, contudo vale a pena salientar o facto de que D.
Dinis especifica que nomeia Manuel Pessanha almirante do reino de acordo com a
rainha consorte e o príncipe herdeiro. Sabemos que o cargo de Almirante já
existia no Reino de Portugal, nomeadamente durante o reinado dionisino, embora,
como veremos, este se eleve a verdadeira instituição somente com a e na pessoa
de Manuel Pessanha. Referências a tal funcionário existem já nos documentos
remontando aos anos 80 do século XIII14; além disso, sabemos que o predecessor
de Manuel Pessanha, Nuno Fernandes Cogominho, exerceu tal papel entre 1307 e
1315/6, aparecendo nas fontes com o título de Almirante mor15. Contudo, neste
primeiro período, as competências que ele devia possuir e, em consequência, as
funções que devia desenvolver eram mais próprias de um administrador que dum
chefe supremo da marinha de guerra, dum oficio, como se tornará em seguida:
Cogominho foi mais um Almirante de direito e costume, funcionário que
existira anteriormente, do que um verdadeiro comandante das forças navais,
perito na organização da flotilha e na estratégia militar da guerra por mar; ou
seja, não era propriamente um técnico especialista do sector, não era um
sabedor de mar. Mesmo assim, vale a pena recordar que Nuno Fernandes
Cogominho foi provavelmente destituído do cargo, prerrogativa exclusiva do rei,
pelo seu facciosismo e pelo apoio prestado ao infante durante a primeira fase
das desavenças que precederam o rebentar da guerra civil. Sabemos que devido à
sua falta de imparcialidade, Nuno Fernandes Cogominho foi obrigado a exilar-se
no vizinho Reino de Castela onde, talvez mesmo em 1316, terminou a sua
existência16. A este ponto, o facto de o contrato com o recém eleito almirante
ter sido assinado na presença do infante Afonso e da rainha consorte D. Isabel
parece-nos particularmente significativo.
Frei Francisco Brandão na Monarquia Lusitana refere que não devia ter sido
fácil tarefa para os emissários do rei achar uma pessoa capaz a quem[o rei]
pudesse confiar hum lugar de tanta importância17: nas entrelinhas, intui-se
não somente as muitas responsabilidades que tal figura deveria assumir, mas
também os perigos que podiam provir de uma opção errada. As vicissitudes que
envolveram o almirante anterior tiveram que obrigar D. Dinis a reflectir não só
sobre o poder e as prerrogativas do funcionário régio que se preparava para
nomear, mas também sobre a necessidade de uma escolha bem meditada. Deste modo,
com um gesto de grande valor estratégico e inovador com respeito aos hábitos
locais, mas em linha com o que se passava nas restantes monarquias europeias, o
monarca resolveu confiar tal cargo a um estrangeiro, um sabedor de mar já
apreciado junto de diversas cortes europeias pelas suas qualidades humanas e as
suas actividades comerciais e marítimas.
Nos vizinhos reinos ibéricos, a opção por um estrangeiro para chefe supremo da
marinha de guerra tinha-se tornado, ao longo do tempo, um costume consolidado:
basta pensar no siciliano Ruggero de Lauria ou, como aparece referido nas
fontes catalãs, Roger de Llauria, e nas aragonesas, Rocher de Lauria, almirante
mor do Reino de Aragão, que, não obstante as vicissitudes de que foi
protagonista, se fez sepultar ao lado, aliás, literalmente aos pés do rei Pedro
III de Aragão e da Sicília, no panteão régio da Coroa, o Mosteiro de Santes
Creus, em sinal de ligação e fidelidade ao soberano18. No Reino de Castela
foram também contratados almirantes de origem genovesa: é o caso de Benedetto
Zaccaria, ao serviço de Afonso X o Sábio e de Sancho IV de Castela na segunda
metade do século XIII19. Esta tradição perdurou no século seguinte com o
recrutamento de Egidio Boccanegra20, que combateu ao lado da armada portuguesa
chefiada por Manuel e Carlo Pessanha na batalha de Salado em 1340.
A designação de um estrangeiro para o ofício de Almirante mor do Reino, acto
que por alguns foi interpretado como um risco por parte de D. Dinis, pois a
escolha de um forasteiro poderia incomodar o meio local, sobretudo a gente de
mar que a ele devia ser sujeita, na verdade revelou-se vencedora e não somente
pela introdução de novos conhecimentos e práticas em âmbito marinheiro, já
conhecidas e até utilizadas nos vizinhos reinos ibéricos, circunstância não
menos importante em termos de estratégia militar. Nomeando Manuel Pessanha, o
rei optara por uma figura completamente alheia às dinâmicas internas do seu
reino, já então abalado pelos conflitos entre a Coroa e a nobreza senhorial.
Considerando o tipo de cargo, por certo D. Dinis deveria ter recorrido às
famílias nobres; porém, na altura, não sentia tão seguro o seu apoio. Todavia,
o rei era bem consciente de que Manuel Pessanha representava uma aposta, mas,
ao mesmo tempo, um risco: é nesta perspectiva que deve ser lido o contrato onde
muito se insistia no vínculo de homenagem e de vassalagem com que o almirante
se ligava ao monarca, sobre a necessidade de ele prestar juramento de
fidelidade e lealdade ao soberano sobre os Santos Evangelhos. Tudo isto,
recordamos, ocorreu em presença do príncipe e da rainha consorte.
Não obstante a assinatura do contrato e a intensa produção de diplomas que se
seguiu, nos quais foram explicitados prerrogativas, privilégios, benefícios,
competências e poderes do almirante (de 521, 1022 e 2323 de Fevereiro de 1317),
na verdade é com o auto de 24 de Setembro de 131924 que se completa e define o
Oficio do Almirantado, pois é precisamente a partir deste diploma que começa
a aparecer nas fontes com esta terminologia. Este já não era um cargo, mas
tornou-se uma dignidade, verdadeira instituição, transmissível por via
hereditária, dotada de poder jurisdicional sobre a gente de mar (que
directamente do almirante dependia, desde logo para a sua subsistência), título
bem diverso do Almirante de direito e costume que existira no passado e que
parece corresponder ao cargo assumido por Nuno Fernandes Cogominho. De facto, a
definição do ofício do Almirantado e a sua inserção na complexa máquina da
administração régia foram efectivas somente a partir da chegada de Manuel
Pessanha e no fim dum processo de normalização com referência específica à sua
pessoa. Nos anos sucessivos a figura e as prerrogativas do Almirante mor Manuel
Pessanha serão objecto de diplomas (1321-1322)25, mas àquela altura o seu papel
já estava definido.
De resto, entre 1317 e 1319, o almirante genovês ganhara a estima e a confiança
de
D. Dinis, mostrando ter capacidades organizativas e de comando no sector, mas
sobretudo, em ausência de acções militares ofensivas, cumprindo delicadas
missões diplomáticas na qualidade de embaixador do rei, função que se empenhara
em assumir desde o contrato, onde declarava querer guardar o vosso segredo que
me dizerdes ou enviardes dizer26.
No caso específico, em Avinhão tratou diversas questões: possivelmente, logo a
seguir à sua nomeação, Manuel Pessanha foi enviado, junto com outro emissário,
Vicente Eanes (o mesmo que o tinha seleccionado), a explicar ao papa as
razões do soberano em favor da emancipação do ramo português da Ordem de
Santiago relativamente ao mestre de Castela27, assunto que tratará novamente
durante uma segunda missão, em 1320, desta vez acompanhado pelo deão de Porto
D. Gonçalo Pereira28.
Em 1317, altura da primeira expedição, é provável que o almirante já acenasse a
João XXII sobre as desavenças internas da família real, pois é de 10 de Junho
daquele ano uma série de epístolas do pontífice, extraídas dos Registos
Vaticanos, exortando os contendentes à pacificação e ameaçando de excomunhão
quem tramasse ou continuasse a actuar contra o rei e o seu governo29. Contudo,
é certo que, a seguir, entre finais de 1317 e o início de 1318, Manuel Pessanha
informou o papa do desenvolvimento dos dissídios entre pai e filho e entre
marido e mulher. Tal circunstância deduz-se claramente do facto de, ao dia 21
de Março de 1318, remontar uma outra série de cartas de João XXII. A primeira
delas refere o encontro com Manuel Pessanha, militum admiratum(sic), portador
de uma esmola de 4000 florins, pelos quais o papa agradece sentidamente a
generosidade do monarca30. Porém, a esta primeira seguem-se quatro outras
missivas dirigidas respectivamente ao rei, à rainha31, ao infante32 e ao bispo
de Lisboa, Estêvão Miguéis33, cujo incipit, Displicenter audivimus, alude ao
desgosto do pontífice quando tomou conhecimento das desavenças dentro da
família real, alimentadas pela acção sediciosa do titular da diocese de Lisboa;
o papa conclui as cartas, de tons levemente distintos conforme os
destinatários, exortando cada um deles à reconciliação. Considerando a posição
e a deslocação de Manuel Pessanha, se pode deduzir que foi ele a referir as
dissidências entre pai e filho e entre marido e mulher e o papel do bispo de
Lisboa. De resto, João XXII numa rápida passagem parece aludir ao facto de ter
informado o almirante das suas intenções em relação à maneira de proceder nesta
delicada conjuntura.
Ao dia 1 de Julho de 1318 remonta uma outra epístola do papa em que se menciona
a acção de Manuel Pessanha. Neste caso, ao almirante são entregues algumas
preciosas relíquias, acompanhadas por um relicário, oferta de João XXII para D.
Dinis34.
Para além da importância desta carta ligada à devoção e ao culto das relíquias
por parte do soberano, o que desta epístola se deduz é que no dia 1 de Julho de
1318 o almirante mor se encontrava mais uma vez junto da corte papal. Se foi
uma estadia continuada ou se se tratou de uma segunda missão, neste momento é
difícil afirmá-lo. Todavia, o que vale a pena recordar é que nestes mesmos
anos, nomeadamente ao longo de 1318, o rei D. Dinis estava a tomar decisões
importantes que muito peso teriam tido no futuro do seu reino. Referimo-nos
nomeadamente à última fase do processo, diplomático e não, de transformação da
Ordem do Templo, já extinta na maioria das monarquias da época, na Ordem de
Cristo, processo que se concluiu com a promulgação da bula Ad ea ex quibus de
14 de Março de 1319 que oficializou a criação da nova ordem religiosa militar.
Formalmente dependente da Sé Apostólica, na verdade e desde a sua instituição
ligada por um vínculo de homenagem e de fidelidade ao rei, esta consagrava-se à
oração e à defesa armada da Fé e à segurança dos territórios do reino.
É preciso lembrar que no Reino de Portugal o complicado processo de submissão
da Ordem do Templo à Coroa e a consequente tentativa de nacionalização dos bens
e possessões templárias por parte do rei teve origem em 1307, ou seja bem antes
da bula Vox in excelso de 22 de Março de 1312 com que Clemente V, a instância
de Filipe o Belo, extinguiu definitivamente a ordem35. Ao mesmo tempo, a partir
da nomeação de Nuno Fernandes Cogominho, primeiro almirante mor (1307), D.
Dinis intentou efectuar a reforma do sector da marinha de guerra36. Que este
fosse um interesse constante durante o seu reinado, atesta-o a produção
legislativa desde os anos 80 do século XIII a favor da gente de mar, mas
também de tudo o que incluía o sector marítimo, ou seja tudo o que podia
interessar à actividade dos portos, navios, transportes e navegação.
Assim o desenvolvimento e o reforço da marinha, de guerra e não, procederam
paralelamente à tentativa de entrar na posse das terras da Ordem do Templo,
algumas das quais localizadas na proximidade de sítios estratégicos (como por
exemplo, Soure), e do ingente património templário, que, certamente, poderia
ser investido no incremento da armada e da flotilha. Quase parece que D. Dinis,
para conseguir o objectivo de dotar-se de uma marinha de guerra forte e
adequada às novas necessidades de defesa do reino, quer com respeito às
vizinhas monarquias ibéricas, quer com respeito às incursões sarracenas,
tivesse decidido proceder com duas maneiras paralelas: uma mais de tipo
administrativo, com a progressiva definição da figura e das competências do
almirante mor na pessoa de Manuel Pessanha e com a sua acção concreta orientada
nesta direcção; uma outra mais de tipo legislativo, com a tentativa de
apropriar-se dos bens e possessões templários que teriam podido contribuir para
o incremento da marinha. E se um propósito chegou a bom fim, com a instituição
do Almirantado, o outro estava destinado a fracassar, não obstante todos os
expedientes postos em prática, pela impossibilidade de demonstrar em sede
judiciária a propriedade da Coroa sobre o património templário sem suscitar a
reacção negativa da Igreja. A este ponto, vale a pena observar a coincidência
cronológica dos acontecimentos: depois de dois anos e meio de prova, em 1319
Manuel Pessanha foi declarado para todos os efeitos chefe supremo da marinha,
na directa e única dependência do soberano; ao mesmo tempo, em 1319 nasce a
Ordem de Cristo que engloba o património do Templo, ligada à Sé Apostólica, mas
na verdade instrumento de controlo e de defesa ao serviço da Coroa. A comum
vocação marítima, implícita na dignidade do Almirantado, mas explícita na bula
de fundação da nova ordem religiosa militar37, o empenho partilhado em defesa
das costas e das fronteiras terrestres e marítimas contra todos os agressores,
que sejam cristãos como mouros, como consta no contrato assinado pelo genovês
em 1317, quer a ameaça proviesse dos reinos limítrofes, quer se tratasse dos
ataques dos inimigos da Fé, os Mouros, fazem reflectir sobre a comunidade de
intenções destes dois ambiciosos projectos que D. Dinis levou a bom fim
praticamente em simultâneo. Além disso, é também de sublinhar o facto de a
residência da nova ordem ter sido fixada no Sul do reino, na fronteira
algarvia, em Castro Marim (hoje distrito de Faro); com o diploma de 24 de
Setembro de 1319 D. Dinis, em troca das possessões de Frielas, Sacavém, Unhos e
Camarate e as 3000 libras já garantidas com os autos anteriores, doa ao
almirante mor a vila de Odemira, no Alentejo litoral (hoje distrito de Beja),
com todos os seus termos, rendas e pertenças. Se observarmos o mapa geográfico
damo-nos conta que, desta forma, o monarca organizara um presídio militar na
costa meridional do reino, delegando a estas duas instituições a defesa e a
segurança dos territórios fronteiriços e do litoral sul, a este e a oeste.
Tal coincidência cronológica, logística e estratégica faz pensar na
possibilidade de o almirante mor Pessanha, por certo a par do propósito de
criação da nova ordem, ter jogado um papel e participado em primeira pessoa, na
sua dúplice veste de técnico perito da navegação e de diplomático, no sucesso
do projecto. Possivelmente, Manuel Pessanha empenhou-se em fornecer, conforme
as necessidades, as competências técnicas à nova milícia, mas também deu a sua
contribuição explicando as intenções do soberano ao pontífice e tornando-se
garantia, enquanto chefe supremo da marinha de guerra, de que seriam atingidos
os objectivos especificamente militares contra os inimigos da Cristandade.
Homem riquíssimo e potentíssimo, fiel e leal ao seu mandato, Manuel Pessanha
foi o braço direito de D. Dinis e teve que estar ao lado do rei, como de resto
previa o contrato, quando não andava empenhado em missões no estrangeiro ou em
acções militares. Por este motivo, é razoável crer que ele participou, não só
na qualidade de informador dos acontecimentos junto da cúria pontifícia, mas
também tomando partido, como conselheiro e homem de confiança do soberano, nos
dramáticos anos da guerra civil que viram afrontar-se o monarca e o infante
herdeiro de 1319 a 1324. Não é por acaso que D. Dinis, uma vez concluída a
primeira e violenta fase do conflito, poucos dias antes de redigir o próprio
testamento, no dia 13 de Junho de 1322, emitia um novo diploma em favor do
Manuel Pessanha, especificando que ...o dito Almirante me servia bem e
lealmente com muytas cousas e com grandes custas do sseu aver..., concedendo-
lhe um aumento de 1000 libras anuais por feu e em nome de feu à desde já
vantajosa recompensa até então garantida38. Pelas mesmas razões, afigura-se
absolutamente compreensível o facto de o almirante, não obstante o ofício que
exercia, ter tido que esperar alguns anos a carta de mercê com que D. Afonso IV
confirmava tudo quanto D. Dinis estatuíra (21 de Abril de 1327) e não sem ter
passado antes por provas em que teve de demonstrar ao novo rei a sua
fiabilidade e lealdade39.
COMO CITAR ESTE ARTIGO
Referência electrónica:
ROSSI VAIRO, Giulia ' O genovês Micer Manuel Pessanha, Almirante d'El-Rei
D. Dinis. Medievalista [Em linha]. Nº13, (Janeiro - Junho 2013). [Consultado
dd.mm.aaaa]. Disponível em http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/
MEDIEVALISTA13/vario1306.html
Data recepção do artigo: 10 Maio 2012
Data aceitação do artigo: 20 de Novembro 2012
Notas
1
Sobre as origens e os componentes da família Pessanha, G. Airaldi - Due
fratelli genovesi: Manuele e Antonio Pessagno, in Estudos em homenagem ao
Professor Doutor José Marques.Porto: Faculdade de Letras do Porto, 2006, vol.
2, pp. 139-146; A. Daneri - Emanuele Pessagno. Dalla Val Graveglia a Lisbona.
Un sabedor de mar fra la nobiltà portoghese, Gammarò editori, Sestri Levante,
2008.
2
Sobre Antonio Pessagno: N. Fryde - Antonio Pessagno of Genoa, King's merchant
of Edward II of England, in Studi in memoria di Federigo Melis. Napoli:
Giannini, 1978, vol. II, pp. 159-178; G. Airaldi - Due fratelli genovesi...,
art. cit; A. Daneri - Emanuele Pessagno..., op. cit., pp. 59-60; J. M. Roger '
Antonio Pessagno, in N. Bériou e P. Josserand (coord.), Prier et combattre.
Dicctionnaire européen des ordres militaires au Moyen Âge. Paris: Fayard, 2009,
p. 98.
3
L. T. Belgrano - Documenti e genealogia dei Pessagno ammiragli del
Portogallo, in Atti della Società ligure di storia patria, Genova: 1881, tomo
XV, pp. 241-316; cf. p. 305.
4
Sobre Leonardo Pessagno: L. T. Belgrano - Documenti e genealogia..., op.
cit.; os documentos referentes à sua actividade, em colaboração com os irmãos
Emanuele ou Pessagnino, são os números III-VII; G. Airaldi - Due fratelli
genovesi..., art. cit; A. Daneri, Emanuele Pessagno..., op. cit.;
5
L. T. Belgrano - Documenti e genealogia , op. cit, cf. doc. VIII, p. 252.
6
L. T. Belgrano - Documenti e genealogia , op. cit, cfr. doc. IV, pp. 250-251.
7
Sobre Filippo dito Pessagnino, cf. A. Daneri - Emanuele Pessagno..., op. cit.,
p. 33; e T. Belgrano - Documenti e genealogia , op. cit, cfr. doc. VII, p.
252. Neste documento os dois irmãos Leonardo e Pessagnino proclamam-se
originários de Lavagna.
8
Sobre Emanuele Pessagno: A. V. Vecchi - Una dinastia di ammiragli, in
Rivista marittima, a. XIII, (1880), pp. 269-281; T. Belgrano - Documenti e
genealogia..., op. cit; J. B. d'Almeida Pessanha, Noticia histórica dos
Almirantes Pessanhas e sua descendência. Lisboa: Imprensa de Libanio da Silva,
1900; J. de Vasconcelos e Menezes - Armadas Portuguesas. Os marinheiros e o
Almirantado. Elementos para a história da marinha (século XII- século XVI).
Lisboa: Academia da Marinha, Lisboa, 1989; F. R. Fernandes - Los genoveses en
la armada portuguesa: los Pessanha, in Edad Media. Revista de Historia, n. 4,
(2001), pp. 199-206; G. Airaldi - Due fratelli genovesi..., art. cit; A.
Daneri - Emanuele Pessagno..., op. cit.; para os documentos referentes a Manuel
Pessanha, v. infra.
9
A palavra Micer é a tradução e adaptação em português do termo provençal
messer, correspondendo ao francês messire e ao italiano messere. Trata-se
dum título que na Idade Média era reservado aos senhores de alta linhagem, mais
vulgarmente equivalente ao Senhor. Dada a origem provençal do termo, será que
Manuel Pessanha tenha adquirido este título durante a sua estadia em Avinhão,
depois ou mesmo antes da sua chegada a Portugal? De qualquer forma, ao longo do
tempo, este título gerou alguma confusão nas fontes, transformando-se a palavra
num outro nome de origem italiana, Michele.
10
L. T. Belgrano - Documenti e genealogia , op. cit, cf. doc. III, p. 250.
11
Para o relato da escolha dos embaixadores portugueses e da assinatura do
contrato entre o rei e o almirante, veja-se: Fr. F. Brandão, Monarquia
Lusitana, Parte VI, Livro XVIII, cap. LVI, ff. 237-243.
12
Para o relato da cerimónia de investidura do almirante, veja-se a transcrição
do Regimento dos almirantes de Portugal dado por D. Afonso V, Lisboa, 13 de
Agosto de 1471, in As Gavetas da Torre do Tombo II (Gav. III-XI), Centro de
Estudos Históricos e Ultramarinos, Lisboa 1962, p. 42-44; cfr. p. 43: [...] E
quando elle per nos for escolheyto pera ser almyrante deve ter viggillia na
igreja bom como se ouvesse de ser cavalleiro e outro dia deve de vyr a nos
vestiido de ricos panos e em presença de bõos e principaaes da nosa corte lhe
devemos poer huu anell na mãão dereita por sinall de honra que lhe fazemos. E
outrosy hua espada nua em a dita mãão por o poder que lhe damos e em mãão
sestra huu estamdarte das nosas armas em synall do seu caudilhamento e estamdo
elle asy em nosa presença deve noos prometer com juramneto que nom temera morte
por emparar a fee e acrescentar nosa homra e serviço.
13
J. M. da Silva Marques (ed.), Descobrimentos Portugueses. Lisboa: 1944-1971,
vol. I, doc. 37, pp. 27-30.
14
J. de Vasconcelos e Menezes - Armadas Portuguesas..., op. cit., pp.213-220.
15
Sobre Nuno Fernandes Cogominho, J. A. de Sotto Mayor Pizarro - Linhagens
medievais portuguesas. Genealogias e Estratégias (1279-1325). Porto:
Universidade Moderna Centro de Estudos de Genealogia, Heráldica e História da
Família, 1999, vol. II, pp. 62-64.
16
F. Lopes - O primeiro manifesto de El-Rei D. Dinis contra o Infante D. Afonso
seu filho e herdeiro, in Itinerarium, a. XIII, n. 55, (Braga) 1967, pp. 17-45,
cf. nota 15, p. 138; e B. Vasconcelos e Sousa -
D. Afonso IV. Lisboa: Temas e Debates, 2008, p. 73.
17
Fr. F. Brandão, Monarquia Lusitana, op. cit., cf. f. 240.
18
Sobre Ruggero de Lauria: R. Lamboglia - Ruggero de Lauria nel contesto del
Mediterrâneo bassomedievale, Tese de Doutoramento em Historia Medieval,
Università degli Studi della Basilicata, Potenza 2010; A. J. Planells Clavero,
A. J. Planells de la Maza, Roger de Llúria. El gran almirall de la
Mediterrània. Barcelona: Editorial Base, 2011.
19
Sobre Benedetto Zaccaria: R. S. Lopez - Benedetto Zaccaria ammiraglio e
mercante nella Genova del Duecento. Génova: Fratelli Frilli Editori, 2004.
20
L. T. Belgrano - Un ammiraglio di Castiglia, in Archivio storico italiano,
s. 4, XIII, (1884), pp. 42-53 e F. Perez Embid, El admirantazgo de Castilla
hasta las Capitulaciones de Santa Fé. Sevilla: Publicaciones de la Escuela de
Estudios Hispano-Americanos de la Universidad de Sevilla, II, s. 1a, n. 1, 1944
pp. 122-131.
21
J. M. da Silva Marques (ed.) - Descobrimentos Portugueses, op. cit., vol. I,
doc. 38, pp. 30-31.
22
L. T. Belgrano - Documenti e genealogia , op. cit., cf. doc. XI, pp. 259-
260.
23
J. M. da Silva Marques (ed.), Descobrimentos Portugueses, op. cit., vol. I,
doc. 39, pp. 31-32.
24
Ibidem, doc. 40, pp. 32-33
25
Ibidem, doc. 47, pp. 40-41 e doc. 48, pp. 42-43.
26
Fr. F. Brandão - Monarquia Lusitana, op. cit., cf. f. 241.
27
As Gavetas da Torre do Tombo, II (Gav. III-XI). Lisboa: Centro de Estudos
Históricos e Ultramarinos, 1962, cf. a transcrição doc. 901, p. 409.
28
Fr. F. Brandão - Monarquia Lusitana, f. 375.
29
10 de Junho de 1317, Avinhão, Arquivo Secreto Vaticano (ASV), Reg. Vat., 109,
ep. 321, f. 73r-73v. Félix Lopes transcreveu o texto de algumas epístolas com
base nas cópias modernas conservadas no Arquivo Nacional da Torre do Tombo
(ANTT), Bulas, maço 68, caixa 30; cf. doc. LVI: v. F. Lopes - Santa Isabel de
Portugal. A larga contenda entre el-rei D. Dinis e seu filho D. Afonso, in
Itinerarium, vol. IV, (Janeiro 1953), pp. 3-41; cf. pp. 27-28. Para um estudo
crítico da correspondência de João XXII dirigida ao Reino de Portugal entre
1317 e 1322, cf. G. Rossi Vairo - Isabelle d'Aragon, Reine du Portugal, était-
elle une constructrice de la paix durant la guerre civile (1317-1322)? Étude
critique des sources portugaises et des Regesta Vaticana, in M. Sot (dir.),
Médiation, paix et guerre au Moyen Âge, éd. électronique, Éd. du Comité des
travaux historiques et scientifiques (Actes du congrès des sociétés historiques
et scientifiques), Paris, 2012, pp. 99-109.
30
21 de Março de 1318, Avinhão, ASV, Reg. Vat., ep. 498, f.120r; copia no ANTT,
Bulas, maço 68, caixa 30, doc. LIX, publicado in F. Lopes - Santa Isabel de
Portugal...., art. cit, cf. pp. 28-29.
31
21 de Março de 1318, Avinhão, ASV, Reg. Vat, 109, ep. 499-502, ff. 120r-121;
F. Lopes transcreveu o texto das cartas dirigidas ao rei D. Dinis (ep. 499) e à
rainha D. Isabel (ep. 500) com base nas cópias modernas à guarda do ANTT: cf.
ANTT, Bulas, maço 68, caixa 30, nn. LX e LXI, in F. Lopes - Santa Isabel de
Portugal...., art. cit., pp. 29-30.
32
21 de Março de 1318, Avinhão, ASV, Reg. Vat., 109, ep. 499, f. 120r-120v.
33
21 de Março de 1318, Avinhão, ASV, Reg. Vat., 109, ep. 500, f. 120v.
34
1 de Julho de 1318, Avinhão, ASV, Reg. Vat., 109, ep. 574, f. 140v.
35
S. A. GOMES, "A extinção da Ordem do Templo em Portugal" in
Revista de História da Sociedade e da Cultura. Centro de História da Sociedade
e da Cultura,
Universidade de Coimbra, 11, 2011, pp. 75-116.
36
R. B. da Silva Cunha - Subsídios para o estudo da Marinha de Guerra na 1ª
dinastia, in Revista da Faculdade de Letras de Lisboa, tomo XX, 2a serie, n.
1a, 1954, pp. 113-123; e J. de Vasconcelos e Menezes, Os marinheiros e o
almirantado,..., op. cit.
37
D. António Caetano de Sousa - Provas da História genealógica da Casa real
portuguesa. Coimbra: Atlântida ' Livraria editora, 1946-1957, tomo I, doc. 5,
pp. 100-111.
38
L. T. Belgrano - Documenti e genealogia, op. cit., cf. doc. XVII, pp. 272-273.
39
L. T. Belgrano - Documenti e genealogia, op. cit., cf. doc. XXI, pp. 275-276.
Antes de confirmar ao almirante todas as suas prerrogativas e poderes e, até, o
exercício do próprio oficio, parece que D. Afonso IV quis testar a lealdade e
as capacidades de Manuel Pessanha. Por esta razão, enviou o genovês ao Reino de
Inglaterra para tratar, junto com D. Rodrigo Domingues, o casamento de uma
infanta portuguesa com um filho de Eduardo II, aproveitando o facto de Manuel
Pessanha ser bem conhecido e apreciado na corte inglesa devido à presença e à
actividade do irmão António. Parece-nos muito significativo que Eduardo II, na
carta de notificação, enviada a dia 15 de Abril de 1326 a D. Afonso IV dando
notícia da chegada dos emissários dele, não qualifique Manuel Pessanha como
almirante mor, enquanto acrescenta os títulos de D. Rodrigo Domingues
(magistrum e priorem de Tongia) [prior de (S. Leonardo de) Atoguia], definindo
os dois como discretos viros. Mais interessante ainda é o facto de, na carta de
salvo-conduto emitida na mesma data e em favor das mesmas personagens, Eduardo
II neste caso sim especifique a carga honorária de Manuel Pessanha,
apresentando-o como illustris Regis Portugalie admirallus. Afinal, o matrimónio
em discussão não se realizou e, embora o Pessanha tenha obtido, em 1327, a
confirmação das suas possessões e funções, mesmo assim parece que, no âmbito
diplomático, foi substituído por embaixadores mais próximos da corte afonsina.