A Igreja do Mosteiro de Santa Maria das Júnias (Vila Real): Um estudo
histórico-arquitectónico
Localização
O mosteiro de Santa Maria das Júnias localiza-se na actual província de Trás-
os-Montes, distrito de Vila Real, concelho de Montalegre, a cerca de dois
quilómetros a Sul da freguesia de Pitões das Júnias1. O mosteiro encontra-se
implantado num vale na margem ocidental da Ribeira de Campesinho, em lugar
ermo, de difícil visibilidade e acesso, actualmente integrado no Parque
Nacional da Peneda-Gerês (fig._1).
"A busca inicial de lugares férteis e relativamente afastados
correspondia às recomendações de São Bernardo, cuja regra proclamava o
isolamento e a concentração espiritual, num regime de quase auto-subsistência,
apenas com recurso ao trabalho de monges conversos"2. Através da
proximidade a um curso de água e da prática da pastorícia, actividade económica
que este lugar ainda hoje privilegia3, terão sido reunidas as condições
necessárias e suficientes à sobrevivência do mosteiro e da sua comunidade
monástica.
Evolução histórica e arquitectónica
A opção de focar o presente estudo apenas na igreja deve-se ao facto de as
dependências monásticas, excluindo o claustro, serem já posteriores ao período
medieval4, e ao facto de esta ser, de todo o conjunto arquitectónico, o único
elemento totalmente conservado. Será abordada a sua evolução arquitectónica,
marcada por um número considerável de alterações, bem como a sua evolução
histórica, às quais os diversos momentos construtivos se associam. Considera-se
que ambas as vertentes de análise, tanto o ponto de vista material como
histórico, se complementam e contribuem para a compreensão desta igreja no
quadro mais abrangente da história religiosa de Portugal.
Segundo uma lenda local, dois cavaleiros, durante uma caçada, terão encontrado
junto a um carvalho uma imagem de Nossa Senhora com o Menino e, mostrando a sua
devoção, aí terão construído um pequeno local de culto. Por ter sido conservada
pela tradição oral, a lenda apresenta ligeiras variações entre as versões
existentes5. Poder-se-ia admitir que este primitivo lugar de culto, associado a
esta história, "possa ter estado na origem de uma forma de vida
eremítica, prelúdio da formação do subsequente mosteiro beneditino"6.
Em relação à origem histórica do mosteiro, verifica-se alguma divergência entre
os autores. Alguns apoiam a hipótese de se tratar de uma fundação do século IX,
primeiro ocupada por uma comunidade religiosa eremítica de Regra hispânica e só
posteriormente "normalizada" pelos Beneditinos cluniacenses7.
Gerhard N. Graf chega a propor a hipótese de que este possível eremitério
tivesse sido destruído no contexto da presença muçulmana na Península Ibérica,
sendo depois reconstruído no século XII. Salienta-se, no contexto desta tese, a
existência de dois documentos no Tombo do Mosteiro de Celanova referentes a
Santa Maria das Júnias e datados de 953 e 11008. É de referir ainda uma
proposta interpretativa apresentada por Delmira Espada que, através da análise
da métrica da igreja, sugere a existência de um local de culto que remontará ao
período romano, nas fundações do qual se terá erigido o edifício românico9. No
entanto, penso que esta hipótese teria de ser melhor fundamentada, antes de ser
considerada como uma possibilidade.
Outros autores consideram que este mosteiro constitui uma fundação beneditina
de raiz, já do século XII10. Os investigadores que defendem esta segunda
hipótese apoiam-se sobretudo no facto de Frei Leão de S. Tomás referir, na
Beneditina Lusitana, a existência do mosteiro de Santa Maria das Júnias filiado
na Regra de S. Bento já no ano de 88911. No entanto, a referência a esta regra
monástica reveste-se de anacronismo, dado que ela é introduzida em território
português na segunda metade do século XI12 e, no caso do mosteiro de Santa
Maria das Júnias, provavelmente só nos finais da primeira metade do século
XII13.
A primeira referência segura de que se dispõe corresponde a uma inscrição
gravada em dois silhares na fachada lateral Norte da igreja (fig._2)17. De
acordo com a transcrição de Mário Barroca14 – "Era Mª Cª L XXXVª" –
esta deve ser lida como Era Hispânica de 1185, Anno Dominide 114715. Esta
poderá constituir a inscrição comemorativa da fundação do mosteiro, do início
das obras, da sua conclusão ou da sagração da igreja. Acrescente-se que um
documento conservado nos Arquivos da província de Orense indica que a sua data
da fundação terá sido, aproximadamente, no ano de 114716.
Mais tarde, dois diplomas de 21 de Novembro de 1248, ambos exarados no Liber
Fidei, registam o processo de transferência do mosteiro de Santa Maria das
Júnias da Ordem de S. Bento para a Ordem de Cister, altura em que passa a estar
filiado, em períodos alternados, ao mosteiro de Oseira (Galiza) e ao mosteiro
de Santa Maria de Bouro18. No primeiro diploma, o Arcebispo de Braga, D. João
Egas (1245-1255), autoriza a mudança de Ordem depois de um apelo feito pelo
Papa Inocêncio IV (1243-1254) através da bula Benigvolum et Benignum(23 de
Junho de 1247). Nesta bula, refere-se explicitamente que Santa Maria das Júnias
pertencia à Ordem de S. Bento e que pretendia abraçar a Ordem de Cister, o que
está de acordo com o estilo românico que caracteriza a igreja. Assim, os
autores mencionados consideram que a fundação do mosteiro, originalmente
beneditina, tenha ocorrido nos finais da primeira metade do século XII, cerca
de 1147, e que só em meados do século XIII, o mosteiro tenha adoptado a Ordem
de Cister19.
Desta forma, concluo que apesar de não possuirmos documentação explícita nem
vestígios materiais, poder-se-á admitir a existência de um primitivo local de
culto, mais tarde absorvido pelo movimento de renovação monástica e refundado
segundo a Regra Beneditina, no século XII. De facto, não só era frequente a
construção sobre locais onde haviam já existido templos primitivos – ou de que
subsistia a tradição da sua existência –, como a generalidade das fundações
estaria ligada a uma lenda miraculosa, sendo a maioria das fundações românicas
assumida como uma refundação, invocando quase sempre uma tradição de
sacralidade do local20. Esta continuidade fazia-se por motivos de ordem
simbólica e estratégica, pois um lugar santificado, geralmente associado a
práticas cemiteriais (locais associados ao martírio de santos) ou a lendas e
tradições fortemente enraizadas no imaginário local, dificilmente era
abandonado21. Por este motivo, torna-se difícil, na maioria dos casos,
determinar a primitiva fundação de mosteiros.
O movimento de renovação monástica acima referido deverá ser entendido no
contexto do século XII. Este século foi caracterizado sobretudo pela afirmação
e reconhecimento de Afonso Henriques como rei e Portugal como reino pelo papa
Alexandre III (1179), bem como pelos conflitos com os reinos cristãos vizinhos
e com os muçulmanos a Sul (contexto do movimento designado de
"Reconquista Cristã"). Neste reino essencialmente rural, foi de
grande importância a fixação dos mosteiros, que constituíam verdadeiros pólos
de dinamização, protecção e organização do território. No caso específico do
mosteiro de Santa Maria das Júnias, é possível que este tenha detido um
importante papel enquanto local de passagem e apoio aos peregrinos. Tenha-se em
conta a sua relativa proximidade a Santiago de Compostela, um dos mais
importantes centros de peregrinação da Idade Média (fig._3).
Mesmo considerando a tese que defende a sua fundação anterior ao século XII, a
igreja e o mosteiro não apresentam vestígios evidentes desta primeira fase de
construção. Por esse motivo, inicio a análise da evolução arquitectónica pela
fase que corresponde à construção beneditina, a que geralmente se associa a
epígrafe já referida. A este momento, iniciado no século XII, correspondem a
igreja, composta por dois corpos de planta rectangular – a nave única e a
cabeceira de uma só capela, bem como grande parte dos motivos decorativos que
podem ser encontrados no interior e exterior do respectivo corpo22.
De uma segunda fase, correspondente à adopção dos costumes cistercienses
(meados do século XIII), não há testemunhos evidentes de grandes mudanças
arquitectónicas, mas esta passagem terá trazido alguns benefícios económicos. A
título de exemplo, no testamento de D. Afonso III, o mosteiro é contemplado com
doação régia. O claustro terá sido construído anteriormente23 ou pouco depois
da adesão a Cister. Dele resta o ângulo Nordeste, com um módulo de três arcos
de volta perfeita, compreendido entre dois pilares rectangulares (fig._11).
Importa aqui referir que estes arcos constituem um raríssimo testemunho ao
nível da arquitectura românica portuguesa, no actual território português.
O claustro, desde que foi construído, passou a desempenhar um papel fundamental
na arquitectura do mosteiro, funcionando como elemento modelador dos restantes
espaços construídos24. No século XIV ou, possivelmente, ainda nos finais do
século XIII25, devido ao assoreamento progressivo da plataforma onde se
instalou o mosteiro, ter-se-á verificado a reconstrução e o alteamento da
cabeceira da igreja, agora com uma construção plenamente gótica (embora
mantendo o princípio original da planta), que se reflecte sobretudo ao nível do
abobodamento em cruzaria de ogivas. Verificou-se também a abertura de duas
janelas de arco quebrado, uma na fachada oriental e outra na fachada Norte,
esta integrando também a representação escultórica de um monge, em posição
horizontal, sob a janela (fig._4).
A mutilação dos lintéis originais dos portais laterais Norte e Sul,
possivelmente mais tardiamente, estará também associada a este problema com que
se debateu a comunidade monástica26.
No início do século XVI verificou-se o abandono do mosteiro, levando à rápida e
profunda ruína das instalações monásticas27. A igreja terá sido poupada a estas
alterações pois terá continuado a ser utilizada pela paróquia. Na segunda
metade do século XVI, a vida monástica foi retomada. Neste século terá sido
erguido o campanário e aberta a fresta na fachada ocidental. É provável que
aquando da introdução destas alterações tenha deixado de funcionar o nártex ou
alpendre de madeira que outrora aí se terá erguido, conforme testemunham os
orifícios ainda visíveis na fachada, que indiciam encaixes de estruturas de
madeira (fig._5).
Os documentos parecem indicar que os séculos XVII e XVIII corresponderam a um
período de posteridade da estrutura monástica, com a realização de diversas
obras, nomeadamente, de alteamento do alçado28. Talvez seja desta altura a
mutilação dos lintéis dos portais laterais, de modo a altear o pé-direito das
entradas (fig._6), bem como a cornija das paredes laterais da nave (de recorte
classista). É também intervencionado o telhado da capela-mor, actualmente de
pendor único. As instalações monásticas de que hoje subsistem apenas ruínas
terão sido construídas neste período pós-medieval, entre os séculos XVI e
XVIII29.
Em 1834/35 é extinta a casa monástica. Segue-se um novo período de ruína que
terá levado ao seu actual estado de conservação. Depois de definitivamente
abandonado, o mosteiro sofreu duas intervenções a cargo da Direcção Geral dos
Edifícios e Monumentos Nacionais (D.G.E.M.N.), primeiro em 1961, com acções de
restauro, conservação e limpeza; depois em 1986, com obras de recuperação e
beneficiação. Entre 1994 e 1995 decorreram intervenções arqueológicas no
claustro e na cozinha, financiadas pelo Parque Nacional da Peneda-Gerês.
Análise e descrição arquitectónica
Começa-se por descrever a planta da igreja e, de seguida, apresenta-se a
análise do exterior do edifício, focando-se primeiro na fachada principal e
respectivo portal, nas fachadas laterais e seus portais e, por fim, na
cabeceira. Segue-se a descrição do interior, primeiro da nave e, só depois, da
cabeceira.
A igreja apresenta a orientação canónica (Oeste - Este), embora um pouco virada
a Norte, possivelmente devido aos condicionantes do terreno. A sua planta é
caracterizada por uma grande simplicidade, com corpo rectangular de uma só nave
(sem transepto) e cabeceira constituída por uma única capela de terminação
recta (fig._7). Este constitui o modelo dominante do românico português. A
igreja integra três portais – o da fachada ocidental e um em cada fachada
lateral, perto da cabeceira. Terá tido também uma porta de acesso à sacristia
na parede Sul da cabeceira, embora se encontre actualmente obstruída por
silhares.
Pelo exterior (figs._8 e 9), a igreja apresenta uma grande simplicidade
volumétrica, sendo composta pela junção de duas estruturas poliédricas, ambas
de base rectangular, correspondentes ao corpo e à cabeceira. O seu corpo é em
telhado de duas águas, enquanto a cabeceira é de pendor único (Sul - Norte).
No ponto de inflexão das duas águas da cobertura da nave, junto à cabeceira,
encontra-se uma cruz ornamentada com quatro folhas que irradiam do centro de
uma circunferência, ultrapassando-a. Esta cruz é identificada como sendo
românica30.
A fachada ocidental (fig._5) é simétrica, de grande simplicidade e densidade
mural, devido à reduzida fenestração (apenas um vão muito estreito), bem como à
pedra utilizada (granito). Esta reflecte pelo exterior a composição interna da
igreja – uma só nave. O friso que a percorre ao nível das impostas confere-lhe
algum sentido de horizontalidade. A fachada é rematada por empena de cornija
moldurada, truncada por um campanário mais tardio31, de dupla ventana (já sem
sinos), encimado por uma cruz metálica com cata-vento, ladeada por dois
pináculos com remate boleado, idênticos aos que se encontram nas extremidades
da empena. Ao longo de toda a fachada, entre o portal e a fresta, encontram-se
seis reentrâncias, possivelmente evidências de um antigo nártex.
A decoração da fachada ocidental concentra-se, sobretudo, no portal e no friso.
O portal (fig._10) é definido pelo uso do arco de volta perfeita, estruturado
por duas arquivoltas – a interna lisa e de arestas vivas e a exterior, de
esquina boleada, decorada com o motivo de pontas de lança – e um friso que as
envolve, apresentado três estreitos bocéis e um duplo ziguezague. O portal
ocidental, tal como os restantes portais desta igreja, não possui colunas nem
capitéis, encontrando-se as arquivoltas apoiadas directamente nas impostas,
como é frequente se verificar na província de Trás-os-Montes. As impostas
apresentam o motivo da palmeta bracarense. O tímpano apresenta no centro uma
cruz vazada, circunscrita por duas circunferências concêntricas gravadas na
pedra, e três orifícios circulares em ambos os lados da cruz, dispostos de
maneira a formar um triângulo. O elemento sobre o qual se apoia o tímpano – o
lintel – é ornado com bandas de quadrifólios quase incisos, i.e., motivos
geométricos resultantes da intersecção de circunferências (a mesma construção
geométrica que serve de base à construção da cruz vazada no tímpano). As
consolas apresentam motivos decorativos geométricos, nomeadamente, círculos e
alguns registos semelhantes aos do lintel, numa composição sem organização
aparente.
Passando às fachadas laterais, estas apresentam, em termos gerais,
características semelhantes. Enquanto a fachada lateral Norte está voltada para
o cemitério, a fachada Sul encontra-se orientada para o claustro e restantes
dependências monásticas. São fachadas simples e despojadas (fig._11), com um
portal junto à cabeceira e duas frestas estreitas, abertas sobre o friso e
semelhantes à da fachada principal. Esta simplicidade e densidade mural é
contrabalançada pela presença de cinco cachorros, um friso que corre sob as
duas frestas e uma cornija moldurada, possivelmente já renascentista32,
elementos que conferem à fachada um certo sentido de horizontalidade. A posição
dos cachorros, a meio dos alçados, poderá ser interpretada como tendo servido
de suporte a uma estrutura de madeira.
A decoração das fachadas laterais concentra-se, sobretudo, nos portais, no
friso e nos cachorros. O friso é composto por duas fiadas de losangos, sendo
todo ele acompanhado por uma orla superior lisa. Os cachorros apresentam
diversos motivos decorativos, nomeadamente, a possível representação de uma
roldana33, o motivo de enxaquetado, duas linhas entrelaçadas (fig._12), entre
outros34.
Os portais laterais encontram-se alinhados, junto à cabeceira, e apresentam uma
grande simplicidade (fig._6). Ambos são estruturados pelo arco de volta
perfeita, de arestas vivas e incorporado no muro, e apresentam como único
elemento decorativo (à excepção das impostas do portal Sul, com uma temática
pouco perceptível) a cruz vazada no centro do tímpano, idênticas à do portal
principal. Em ambos os portais, o lintel foi cortado numa fase posterior para
altear o vão da porta. No lado direito do portal Norte encontra-se a inscrição
da datação, gravada em dois silhares (fig._2).
A cabeceira é caracterizada por uma grande simplicidade decorativa e
estrutural. Como já foi referido, constitui uma estrutura poliédrica de base
rectangular, com cobertura de pendor único, encimado por uma cruz. A própria
fachada oriental (fig._13), bem como a presença da cornija original, permitem
observar que a cabeceira teria sido originalmente coberta por um telhado de
duas águas, a uma cota mais baixa que a actual. A cabeceira terá sido "…
alteada para se construir o segundo piso da ala dos monges, passando a
cobertura do telhado a ser de uma só água, com pendor Sul - Norte para evitar
problemas de infiltração na ala dos monges"35. Sensivelmente a meio, no
antigo ponto de inflexão, colocou-se a cruz de empena, gótica.
A fachada oriental é aberta por uma janela de arco quebrado, com tímpano
trilobado vazado, semelhante à que se abre também na fachada Norte da
cabeceira. Ao nível do plano da fachada existe uma segunda moldura torneada que
forma um arco quebrado assente em colunelos lisos. Na base da janela
setentrional, encontra-se a escultura de um monge jacente (fig._4).
Passando ao interior da igreja, a nave (figs._14 e 15), em termos estruturais,
prolonga a clareza de formas, a simplicidade volumétrica e a limpidez mural,
aspectos que são contrabalançados pela presença de um friso interrompido pela
parte inferior das frestas, ao longo de ambos os alçados laterais (de motivo
enxaquetado), bem como pelo tratamento dado aos vãos pelo interior.
A nave é caracterizada por uma reduzida fenestração (apenas uma fresta na
fachada principal e duas em cada alçado lateral, todas apresentando um
alargamento no interior), o que confere ao espaço uma certa obscuridade, como é
característico nas igrejas românicas. A nave apresenta cobertura em madeira e
todo o pavimento, incluindo da cabeceira, é feito em lajes de granito. A
fachada ocidental vista do interior é semelhante ao exterior, embora com
algumas diferenças – não apresenta friso a enquadrar as arquivoltas; o lintel e
as impostas não apresentam decoração; o friso sob as impostas apresenta o
motivo de pontas de lança; a fresta apresenta um remate em arco de volta
perfeita; existência de um friso com motivo de bilhetes, sob a fresta (fig.
14).
No corpo da igreja encontra-se um púlpito muito simples, posterior à construção
do edifício36, com varandim e corrimão de madeira, feito a partir de silhares
reaproveitadas. O arco triunfal, ou seja, o arco de passagem para a cabeceira,
apresenta duas arquivoltas lisas assentes em ábacos biselados decorados com
pérolas ou semi-esferas e é ladeado por dois altares laterais37. Uma fresta de
volta perfeita, rasgada sobre o arco triunfal (actualmente entaipada), recebeu
molduras e uma decoração de volutas de tratamento superficial. A decoração
barroca do muro do arco triunfal e da abside (habitual nas igrejas de
peregrinação) contrasta com a grande simplicidade da nave38.
A cabeceira, primitivamente românica, constitui uma estrutura gótica, formada
por um corpo rectangular com abóbada de cruzaria de ogivas. As ogivas ou
nervuras, de perfil rectangular e arestas chanfradas, são lançadas a partir de
um nível bastante baixo e apoiadas em mísulas prismáticas colocadas nos ângulos
da cabeceira, que partem a cerca de um metro do chão. Estas, apesar da sua
relativa densidade, dispensaram quaisquer elementos de reforço no exterior do
muro. A chave da abóbada é simples, possivelmente com decoração, embora esta
seja imperceptível. Nos alçados setentrional e oriental abrem-se largos
janelões em arco quebrado, fazendo com que este seja o espaço mais iluminado da
igreja. À esquerda da janela há um pequeno nicho, apanhando dois silhares, com
arco ultrapassado talhado num único silhar. Por cima deste nicho surge gravado
no silhar uma marca de canteiro, em linha dupla, representando o símbolo do
infinito. Este encontra paralelos no dormitório de Alcobaça, no interior da
igreja de Tarouca, entre outros39. O altar-mor será já do século XVII40.
Elementos decorativos - Influências e Paralelos
A historiografia da Arte românica tem vindo a considerar a existência de
variantes regionais ou distinções culturais, de implicações artísticas, que
terão sido determinadas pelas condições geográficas, políticas e sociais de
cada região. Mais recentemente, esta tese, tida como absoluta, referente à
"geografia da arquitectura românica", tem vindo a ser questionada,
sendo agora defendida a hipótese, mais plausível, de que factores externos não
terão tido uma influência tão marcante sobre a própria arquitectura e que as
diferenças, ou supostos "regionalismos", poderão, antes, ser
consideradas como "variações de um mesmo tema"41.
O seu despojamento estrutural, densidade mural (conferida pelo uso do granito e
pela reduzida fenestração, em número e tamanho) e bom acabamento; a planta de
uma só nave e capela-mor de terminação recta; a existência de três portais
(ocidental e laterais, sendo o portal Sul virado para o claustro); a reduzida
fenestração, criando interiores obscuros, e iluminação concentrada sobretudo na
cabeceira; o privilégio dado à cabeceira, em termos estruturais e estéticos; o
despojamento decorativo e concentração da ornamentação nos portais, arco
triunfal, cabeceira, cachorros e frisos que atravessam as paredes exteriores e
interiores, constituem, todos eles, elementos que permitem definir a igreja do
mosteiro de Santa Maria das Júnias, apesar das diversas intervenções
posteriores, como um edifício característico do românico português.
A escultura românica desenvolvia-se na e pela arquitectura, isto é, aplicada em
locais específicos do suporte arquitectónico, funcionava como uma forma de
marcação dos próprios espaços. Os espaços privilegiados foram sobretudo, o
portal ocidental, como passagem do espaço profano para o sagrado; o arco
triunfal, como passagem para a capela-mor; e a cabeceira como o espaço do
sagrado por excelência.
Apesar de marginal do ponto de vista geográfico, esta igreja encontra-se
integrada, em termos artísticos e culturais, na designada "corrente
bracarense", que constitui uma das grandes zonas de influência artística
do território português, associada à diocese de Braga42 e aos Beneditinos, e
estendendo-se até às bacias do Lima, do Sousa ou do Douro e até à Beira Alta43.
Desta "corrente" são característicos os motivos geométricos,
vegetais e fitomórficos e as cruzes vazadas nos tímpanos (dos portais oriental
e laterais). A cruz, com um sentido apotropaico e cristológico, símbolo da
eternidade e perfeição, é o motivo decorativo mais comum nos tímpanos das
igrejas românicas do território português. O motivo da cruz de quatro braços
iguais, em geral inserido num círculo, aparece pela primeira vez na Sé de
Braga, sendo depois irradiado para uma série de outros edifícios44. O vazamento
da cruz e outros elementos decorativos (nomeadamente as perfurações circulares)
remetem para um românico tardio45. Outros elementos remetem para a
"corrente bracarense", nomeadamente, os lanceolados (pontas de
lança), os enxaquetados e os bilhetes, que encontram paralelos na igreja de
Manhente (século XII); bem como o friso de motivo de dupla cereja, por exemplo,
na igreja S. Pedro de Ferreira46.
Importa referir que alguns autores consideram a existência de influências
moçárabes, nomeadamente ao nível do arco triunfal, com tendência para o arco de
ferradura47, bem como visigóticas, cujas reminiscências "… manifestam-se
não só pela persistência de um vocabulário ornamental, de carácter geométrico e
vegetalista mas também pelos vestígios da presença nártex"48.
Conclusão
O estudo apresentado procurou transmitir o elevado valor da estrutura monástica
de Santa Maria das Júnias, e em especial da sua Igreja, do ponto de vista
histórico, artístico e, até certo ponto, antropológico. A análise da Arte e da
Arquitectura, isto é, da cultura material, é extremamente importante, entre
outros motivos, porque nos permite compreender a componente humana que lhe está
subjacente e deu origem.
Considera-se importante salientar o facto de que este edifício constitui um dos
raros exemplos actuais de um mosteiro que, embora em ruínas, conserva e
reflecte na perfeição a localização geográfica e o isolamento pretendido pelo
seu fundador, aspecto que se prende ao seu carácter monástico. Este é, de
facto, um lugar que preserva perfeitamente a memória de um período e uma
cultura marcados essencialmente pelos valores e ideais da Cristandade Ocidental
no decorrer da Idade Média. Por outro lado, por constituir um mosteiro
fronteiriço, a sua história e evolução está em grande medida associada ao
processo de formação de Portugal. No entanto, a importância do mosteiro
atravessa não só a Idade Média mas todo o período desde a sua origem até ao
século XIX, altura em que é extinto; a igreja, por seu lado, mantém-se
importante até aos dias de hoje, sendo nela celebrada a 15 de Agosto, a festa
local de Santa Maria das Júnias49.
O mosteiro e respectiva igreja têm vindo a ser alvo de estudo e interesse geral
desde tempos relativamente recuados, o que se pode comprovar pelo número de
documentos já publicados a seu respeito. O edifício foi já alvo de algumas
acções de restauro e conservação, bem como de intervenções arqueológicas. Este
constitui um elemento importante no turismo da região. Fontes orais deram-me a
saber que ainda em 2010 se verificou o desabamento de parte de uma das paredes
das dependências monásticas. Pelos motivos apresentados, considero urgente a
realização de obras de conservação e restauro, de modo a que não se perca este
precioso monumento.