Intervenção arqueológica no Alto do Calvário, Miranda do Corvo: a necrópole
rupestre
Introdução
A vetusta vila de Miranda do Corvo, no distrito de Coimbra, surgiu num local
estratégico: no cruzamento do vale do rio Dueça com uma das passagens ao longo
da Cordilheira Central, mas o momento da sua fundação permanece uma incógnita.
As evidências da longa da ocupação humana nesta região têm surgido, ao longo do
tempo, através de vários achados arqueológicos. Uns fortuitos, como são os
casos do lendário tesouro proto-histórico de Chão de Lamas1 e do capitel de
mármore identificado na povoação do Corvo2. Outros provenientes de intervenções
arqueológicas programadas, como é o caso do Estudo de Impacte Ambiental do
Parque Eólico de Vila Nova3, durante o qual foram identificados vários tumuli
pré-históricos, ou os trabalhos arqueológicos da empreitada da A13, Itinerário
Complementar 3, entre Tomar e Coimbra. Contudo, a primeira referência
documental a esta vila só surge no século X4.
Sobranceiro à vila, no alto de um cabeço arredondado, assentava o castelo
medieval, atalaia fundamental da via Colimbriana. É provável que a povoação se
tenha desenvolvido em redor daquele cabeço, atualmente designado Alto do
Calvário, espraiando-se em direção ao vale. Contudo, apesar de ter sido uma
peça importante na linha de defesa da cidade de Coimbra, durante e após a
Reconquista' daquela cidade, pouco se sabe sobre a fundação do castelo ou da
povoação. À superfície, daquele antigo baluarte apenas resistiram à passagem do
tempo uma torre da muralha e a cisterna, amplamente descaracterizadas.
Daquela inserção, de outrora, no polígono defensivo da cidade de Coimbra,
nasceu, em 2011, o projeto da Rede Urbana dos Castelos e Muralhas Medievais do
Mondego (RCMM). Este projeto teve como ponto de partida o património e história
comuns de oito municípios5, que partilham o facto de, durante os séculos XI e
XII,terem pertencido à linha avançada de fortificações que defendiam a cidade
de Coimbra e os seus campos pelos lados Este, Sul e Oeste. E foi no âmbito
deste projeto que tiveram início os trabalhos arqueológicos objeto deste
artigo: o Município de Miranda do Corvo elaborou um plano de requalificação do
Alto do Calvário, tendo como base a recuperação da cisterna e da atual torre
sineira, de génese medieval. Os trabalhos arqueológicos tiveram início em Maio
de 2011, tendo ficado concluídos em Março de 2012. A equipa é constituída pela
signatária, que conta com a consultadoria científica da Doutora Helena
Catarino, e pelo antropólogo Flávio Simões, que conta com a consultadoria
científica da Doutora Ana Maria Silva, do Instituto de Ciências da Vida, da
FCTUC.
Enquadramento Histórico
Após a Reconquista' de Coimbra, por Fernando Magno, em 1064, a linha de
fronteira entre os reinos cristãos e o mundo muçulmano estabeleceu-se numa
faixa de território a sul do Rio Mondego, onde ficou fisicamente marcada pela
construção ou reconstrução de várias fortificações. Esta estremadura, onde
Miranda do Corvo se encontrava inserida, foi fulcral para a defesa da cidade de
Coimbra, já que permitia o controlo do acesso a Sul, que se apoiava na antiga
via romana Olisipo-Bracara. Esta região vai adquirir ainda maior importância
estratégica quando, no século seguinte, a partir de 1131, o princeps
portugalense Afonso Henriques se fixa na cidade do Mondego. É neste contexto
que surgem as primeiras informações sobre o castelo de Miranda do Corvo.
A referência mais antiga surge em 1136, na própria Carta de confirmação,
estabilidade e de foro6, dada por Afonso Henriques em favor de Uzberto e sua
mulher Marina, e que será, posteriormente, confirmada por D. Afonso II. Mas o
testamento do Presbítero Árias, datado de 1138, já refere a sua existência em
1116. Através deste documento, ficamos a saber que Árias pediu autorização à
condessa D. Teresa e ao bispo conimbricense para construir uma igreja «in
castro Miranda», o que reflete a necessidade de construir um novo local de
culto para provir às necessidades de uma comunidade cristã organizada. A
autorização foi concedida, visto que a construção deste novo templo iria ajudar
à fixação da população numa zona de fronteira, daí a necessidade deste
testamento, que faz reverter, após a morte de Árias, a Igreja do Salvador para
o Bispado de Coimbra. Mas estas não são as únicas informações deixadas pelo
Presbítero. É através dele que ficamos a saber que a investida almorávida de
1116, que destruiu Soure e Santa Olaia, também terá destruído por completo7 o
castelo e a povoação de Miranda do Corvo.
Contudo, nenhuma das fontes anteriormente referidas nos deixou qualquer
informação sobre a fundação da fortificação, a sua reconquista8 após a
investida islâmica de 1116 ou a sua descrição9 arquitetónica. Supomos que,
inicialmente, o castelo de Miranda do Corvo se enquadrava nos locais defensivos
erguidos durante os períodos instáveis da Alta Idade Média, caracterizando-se
por ser uma estrutura pouco sofisticada, que apenas servia para abrigar a
população e seus haveres, em caso de perigo. Seria utilizada para assentamento
de uma guarnição militar, e não para o estabelecimento permanente da população.
Essa estaria fixada num habitat aberto, ou habitats se pensarmos em vários
assentamentos dispersos, a baixa altitude, e que apenas se juntava na
fortificação em momentos de perigo.
Com o passar do tempo, e a fixação da fronteira a Sul, Miranda do Corvo vai
perdendo a sua importância estratégico-militar. Muitas são as lacunas e poucas
as referências documentais para o período subsequente. Por exemplo, não há
qualquer menção à prestação do serviço de anúduva neste castelo. Na exaustiva
lista fornecida por João Gouveia Monteiro10 de «Notícias de obras (realizadas,
em curso ou a realizar) em castelos e/ou cercas de cidades e vilas, entre 1357
e 1448 ' um período especialmente conturbado ' apesar das várias referências a
obras «nos lanços dos muros e torres, barbacãs» de Coimbra, «no castelo da
Lousã» e na «cerca de Penela», quer por iniciativa dos concelhos quer por
iniciativa do monarca, não há qualquer referência ao castelo de Miranda do
Corvo, outrora fundamental na defesa de Coimbra. Este facto não deixa de ser
incompreensível, perante a preocupação com a integridade e a protecção das
muralhas e cercas, durante a Idade Média.
Apesar do mutismo das fontes escritas, sabe-se que a fortificação de Miranda do
Corvo continuava a cumprir o seu papel, e que em Janeiro de 1384, em plena
crise dinástica, o alcaide João Afonso Telo, homem próximo da rainha D. Leonor,
abriu as portas da fortificação ao rei castelhano.
Mas o castelo acaba por ser abandonado, entrando em ruínas. Acessível pela
proximidade de vias de comunicação importantes (nomeadamente a estrada
colimbriana11, tornava-se mais vulnerável a ataques do que, por exemplo, o
vizinho castelo de Arouce. Este encontra-se mais isolado na serra e destaca-se
menos da paisagem envolvente. As suas diferentes posições topográficas poderão
ter estado na origem do abandono do castelo de Miranda do Corvo e o maior
investimento (indiciado pelas várias notícias de obras e melhoramentos), por
parte das autoridades, na manutenção do castelo de Arouce.
É provável que o castelo de Miranda do Corvo estivesse já abandonado por volta
de 1786, ano que deve corresponder ao início dos trabalhos de construção do
atual edifício da Igreja Matriz. Este novo templo foi implantado na zona Este
do cabeço, fora da linha de muralhas do antigo castelo. A sua dimensão levou à
escavação do afloramento xistoso, a Oeste, onde ainda permanecia um trecho do
pano da muralha. O afloramento foi talhado a pique, à maneira de parede, para
aumentar a largura do caminho de acesso ao adro da nova Igreja do Salvador.
Esta acção terá destruído parte do pano da muralha aqui existente, onde se
inseria a torre angular transformada, nesta época, em torre sineira. Numa
atitude que não é inédita, a torre da antiga estrutura castelar é reutilizada
com nova função, evitando a construção de uma ex-novo.
O último aluimento da estrutura defensiva ocorreu a 7 de Maio de 1799. À época,
já o local se transformara numa pedreira, aonde a população se dirigia para
aproveitar as pedras que outrora fizeram parte da estrutura defensiva, o que
levou à delapidação do sítio e, consequentemente, dos vestígios arqueológicos.
Isso mesmo é o que nos diz a postura camarária de 179912 onde a Câmara
Municipal de Miranda do Corvo proíbe, veementemente, a utilização da pedra da
fortificação para obras particulares: quem fosse acusado de roubar pedra do
castelo seria condenado a uma multa pecuniária e a um ano de cadeia. A Câmara
considerava a pedra propriedade concelhia que deveria ser utilizada em obras
públicas. E será isso que vai acontecer, em 1803, quando se estabelece que para
a construção da nova ponte no Corvo, na Estrada Real, fosse utilizada a pedra
do castelo.
O estado de abandono da zona levou, na primeira metade do século XX, a duas
grandes intervenções urbanísticas que alteraram, completamente, a fisionomia do
antigo cabeço do castelo. A primeira intervenção, realizada na década de 1930,
centrou-se na actual Torre Sineira, à qual foi retirado o telhado e
acrescentadas ameias, em tijolo. Durante os anos de 1940 e 1950, com a chegada
do Padre Fernando Coimbra à paróquia de Miranda do Corvo, novas obras
transformaram o Caramito13 naquilo que é hoje: o Alto do Calvário, encimado
pelo Cristo Redentor.
A intervenção arqueológica: resultados preliminares
De acordo com o projeto de reabilitação do Alto do Calvário, que prevê a
recuperação da Torre Sineira, implantou-se a primeira sondagem ao longo da sua
fachada Sudoeste.
Esta sondagem tinha como objetivos obter uma cronologia para a construção da
torre angular, identificar os restos da muralha que circundava o cabeço e
tentar compreender que realidades arqueológicas estariam sob os taludes
artificiais que circundam esta zona do cabeço.
A actual Torre Sineira, elemento norteador da sondagem, é uma estrutura de
planta quadrangular, de génese medieval, que fazia parte da cintura de
muralhas, como torre angular. Está implantada na vertente Este do cabeço,
dominando a estrada para Coimbra. O aparelho aproveita a rocha local: o xisto e
seixos xistosos. Os silhares de calcário de tamanho grande são utilizados nos
ângulos. Tal como já foi referido, no final do século XVIII, esta estrutura foi
aproveitada como sineira da actual Igreja Matriz. Na documentação fotográfica
do início do século XX, esta estrutura surge com um telhado de quatro águas,
semelhante ao que vamos encontrar nas torres coimbrãs. Contudo, a intervenção
urbanística realizada na década de 1930 centrou-se nesta torre, à qual foi
retirado o telhado, acrescentadas ameias em tijolo e colocado um reboco em
cimento, no qual foram impressos' silhares. Recebeu, também, o relógio, que
ainda hoje marca o compasso das horas.
Actualmente, esta estrutura apresenta cerca de 11m de altura e 5m de lado. É
composta por 4 níveis: o rés-do-chão, actualmente utilizado como depósito da
Igreja, e ao qual se acede através de uma porta rasgada na fachada NE; o
primeiro piso, a que se tem acesso através de uma porta exterior (a original?),
na fachada NO, e onde se encontram as sineiras; o segundo piso, ao qual se
acede através de uma escada interior, em betão armado, e onde se encontram os
mecanismos do relógio; e o terceiro e último piso, o terraço no topo ameado,
que é servido por umas escadas metálicas e que foi construído nos anos de 1930.
O interior da estrutura encontra-se completamente descaracterizado, com reboco
de cimento nas paredes (excepto no rés do chão) e pisos em betão armado.
Durante a escavação da Sondagem A, a equipa deparou-se com um reduzido número
de artefactos cerâmicos, na sua maioria pequenos fragmentos de cerâmica comum
incaracterística, com a quase inexistência de estruturas e com uma
estratigrafia pobre: quer o abandono precoce da fortificação, que cedo
transformou o local em zona de pedreira, quer as intervenções efetuadas no
século XX, levaram a uma total descaracterização do sítio e a uma delapidação
da sua estratigrafia. Contudo, os vestígios identificados permitiram corroborar
os dados históricos conhecidos e alargar o conhecimento sobre o arqueossítio.
Desde o início dos trabalhos, logo durante a decapagem da camada de superfície,
que nas quadrículas a SO da Torre Sineira foi exumado muito material
osteológico humano, sem conexão anatómica. Tratava-se, essencialmente, de
pequenos fragmentos e de ossos mais pequenos. Como se viria a verificar, este
material estava relacionado com o ossário. Trata-se de uma vala aberta no
século XX, para colocação do material osteológico humano proveniente da
cisterna. De acordo com testemunhos orais, na década de 1950 foi ordenada a
limpeza da cisterna, durante as obras do Calvário. Foi então que os
trabalhadores se depararam com um imenso ossário, tendo trasladado o material
osteológico para uma vala, que abriram junto à torre. Não havendo, até ao
momento, notícias da transformação da cisterna em ossário, levantamos a
hipótese de tal ter acontecido por volta de 1786, ano que deve corresponder ao
início dos trabalhos de construção do atual edifício da Igreja Matriz. Visto a
Igreja do Salvador estar implantada in castro Miranda desde pelo menos 1116,
e devido ao ritual de enterramento das populações cristãs junto aos templos, é
provável que a área da necrópole desta igreja seja extensa, o que terá levado à
necessidade de destruir algumas sepulturas para a implantação do edifício
setecentista14. Com a colocação do material osteológico na cisterna, para além
de se dar um fim digno às ossadas exumadas das sepulturas a destruir, selou-se
uma estrutura subterrânea que, à época, já não estaria em funcionamento e que,
caso permanecesse vazia, poderia transformar-se numa armadilha.
A abertura da vala, no século XX, destruiu todos os vestígios arqueológicos
aqui existentes, inclusive os relacionados com a construção da torre: por
exemplo, não foi identificada a vala de fundação relacionada com o alicerce da
fachada SO.
Outro dos vestígios identificados foi o derrube da muralha, um derrube pétreo
composto por pedras de grandes dimensões, datado de Época Moderna (século
XVII). Este derrube corresponde à derrocada de parte do pano de muralha que,
nesta zona, tinha orientação SE-NO, correndo paralelo à fachada NE da atual
Torre Sineira (vide figura_4). No início dos anos de 1930, aquando da primeira
grande intervenção urbanística no Alto do Calvário, que se centrou na Torre
Sineira, o pano de muralhas remanescente foi destruído. (vide figura_5)
De finais da Idade Média, inícios de Época Moderna, identificou-se a estrutura
de acessoà torre angular, composta por dois muros: enquanto estruturas
defensivas, as torres tinham a sua porta de entrada vários metros acima do
nível do chão, ao nível do primeiro andar. O acesso era feito, geralmente, por
meio de uma escada de madeira, facilmente recolhida durante um ataque. Mas, à
medida que durante a Baixa Idade Média as antigas fortificações adquirem uma
característica mais senhorial, angariando uma função residencial ou civil,
constroem-se acessos mais convenientes, mais de acordo com a nova função da
estrutura. É o caso desta construção, que se encontra sob as atuais escadas de
comunicação à torre, sendo interpretada como uma escada de acesso ao primeiro
andar da Torre Sineira, a fazer lembrar as típicas casas beirãs.
A ocupação mais antiga identificada nesta área do Alto do Calvário data de
época medieval e trata-se da necrópole de sepulturas escavadas na rocha. Esta
necrópole medieval encontra-se implantada num local de culto antigo, embora o
actual edifício religioso remonte ao século XVIII, não se identificando
vestígios de construções anteriores. As sepulturas identificadas até agora
situam-se a Oeste da actual Igreja Matriz, num plano mais elevado, dentro do
que terá sido o perímetro amuralhado do castelo medieval.
Foram identificadas 28 sepulturas, das quais foram escavadas 2415, pois as
restantes prolongavam-se para fora da área intervencionada ou encontravam-se,
parcialmente, sob alguma estrutura. Das 24 sepulturas, foram exumados 22
indivíduos em conexão anatómica (14 não adultos, 4 adolescentes e 4 adultos), e
21 indivíduos em redução16 (13 não adultos, 1 adolescente e 7 adultos), visto
as sepulturas terem sido sucessivamente reutilizadas, o que demonstra um longo
período de utilização do espaço enquanto necrópole rupestre.
Das 22 sepulturas rupestres escavadas, 17 são sepulturas antropomórficas, ou
exibem um antropomorfismo incipiente; as restantes encontram-se demasiado
destruídas para serem classificadas. A maioria dos túmulos demonstra um certo
cuidado na elaboração, apesar da dificuldade que o talhe do xisto apresenta,
devido à sua tendência para lascar.
Como normalmente acontece nas necrópoles, não há uma exclusividade de
tipologias, embora a variedade das formas não seja muita: identificaram-se 5
tipos, depreendendo-se uma preferência pelas formas assimétrica e trapezoidal.
Até ao momento, não foi inferida uma relação entre a tipologia do sepulcro e a
idade do inumado ou o seu sexo.
Relativamente à orientação das sepulturas, no caso das sepulturas da Sondagem
A, a orientação cristã17 não foi totalmente seguida, apresentando uma ligeira
variação, o que poderá ser explicado em termos de aproveitamento da pendente
natural da rocha base, de NO para SE. Ou seja, os sepulcros foram escavados no
afloramento de xisto, de forma a que as cabeceiras (a NO) estivessem a uma cota
mais elevada do que os pés (a SE). Assim, a maioria das sepulturas (16)
apresenta uma orientação genérica de NO-SE ' entre os 285º e os 330º ' uma
ligeira variação dos cânones da altura. É nas necrópoles articuladas com locais
de culto que as sepulturas são sistematicamente orientadas a Este, pois os
edifícios atuavam como polo orientador das sepulturas que os envolviam.
Quanto à sua distribuição espacial, os sepulcros da Sondagem A encontram-se
organizados, ordenados lado a lado. Ao contrário do verificado noutras
necrópoles de maiores dimensões18, nesta área as sepulturas encontram-se
associadas, agregadas. Para Catarina Tente (2007), o espaçamento entre
sepulcros, nas necrópoles, «( ) poderá estar relacionado com uma maior
diacronia na utilização das necrópoles de maiores dimensões», o que vai de
encontro ao considerado para a necrópole em questão, como já vimos, em relação
às inúmeras inumações em redução. Além disso, a longa utilização da área
enquanto espaço sepulcral está, também, patente, no facto da maioria dos
túmulos se encontrar destruída, parcial ou totalmente, pelo talhe de outros,
posteriores, que se sobrepõem.
É o caso da sepultura 5, que corta as sepulturas 3 e 4; da sepultura 8, que
destruiu parcialmente a sepultura 7, ou do sepulcro 10, que destruiu a
sepultura 9 e que por sua vez foi destruído pelo túmulo 11, que também destruiu
a sepultura 12.
Em relação aos rituais de sepultamento, depois de executado o túmulo, proceder-
se-ia à deposição do morto, directamente na base da sepultura. Na quase
totalidade dos casos, a colocação do indivíduo na sepultura fez-se na posição
de decúbito supino, ou dorsal. Na maioria dos indivíduos cujo crânio se
encontra conservado, a sua cabeça foi colocada de forma a ficar a olhar' para
nascente, de onde surgirá Deus no dia do Juízo Final. Nos casos que se
conseguiram apurar, os braços encontram-se flectidos sobre o baixo-ventre (10
casos) ou cruzados sobre o peito (3) e as pernas estendidas (14). Para as
inumações escavadas nesta Sondagem, pode concluir-se que a maioria dos
indivíduos não foi envolvido em mortalhas, quer pela posição em que foram
depositados quer pela disposição das peças ósseas, dispersas. Além disso, não
foi identificado nenhum indivíduo com os pés sobrepostos, posição normalmente
associada ao uso de sudário. Também pela disposição das peças ósseas, a maioria
das inumações primárias escavadas parece ter ocorrido em espaço fechado, isto
é, o defunto foi coberto com terra, embora esta não tenha sido compactada.
O processo de enterramento era concluído com o encerramento da sepultura. Nos
casos preservados, a cobertura foi feita através da colocação de pedras
calcárias, de xisto e seixos xistosos de tamanho médio ou grande. Em algumas,
argamassa de terra consolidava esta estrutura'. Mas muitas sepulturas foram
identificadas sem tampa, pois certamente as pedras que as compunham sofreram
reutilizações múltiplas, impossibilitando a sua identificação. Contudo, os
rebordos totais ou parciais indicam a sua existência.
A assinalar os sepulcros, foram identificadas algumas pedras de cabeceira:
pedras calcárias, de tamanho médio, ou seixos xistosos, colocados em cunha. Não
se pode concluir que fosse uma prática comum, quer por falta de dados quer pelo
facto de muitas sepulturas terem sido destruídas pelo talhe de outras, o que
pode significar que tinham sido já esquecidas, que o seu posicionamento era
ignorado.
No caso da Sondagem A, conclui-se que as tampas eram cobertas por camadas de
terra, ficando os sepulcros enterrados: quer a simplicidade' das coberturas,
não tendo sido identificadas tampas decoradas ou sequer monolíticas, quer o
facto de terem sido identificadas algumas pedras a assinalar as cabeceiras
contribuem para esta conclusão. Além disso, não foram identificados, até ao
momento, canais para circulação de água (talvez desnecessários devido à
inclinação do próprio afloramento) ou orifícios de drenagem de líquidos, na
base das sepulturas. Não deixa de ser paradoxal o esforço empregue nos
sepulcros, que ficariam cobertos, que contrasta grandemente com as pedras de
cabeceira, simples seixos ou pedras calcárias, que ficariam visíveis, a
assinalar tal monumento invisível.
É de salientar que, de acordo com a análise dos dados obtidos, estamos perante
uma área de necrópole originalmente destinada a indivíduos não adultos onde,
posteriormente, passaram a ser enterrados indivíduos adultos (do universo de 22
sepulturas rupestres escavadas, identificaram-se 16 sepulcros infantis e 6
sepulcros de adultos). Contudo, não podemos deixar de realçar a ausência, nesta
área escavada, de sepulturas de comprimento inferior a 100cm. Ou seja, a
mortalidade infantil ' de crianças até ao ano de idade ' não se encontra
representada. Estarão noutra zona da necrópole, ou era-lhes destinado outro
tipo de enterramento? Por exemplo, na necrópole rupestre de S. Pedro de
Numão19, foi identificada uma sepultura escavada na terra de um nado-morto.
Na continuação do projeto, foi implantada nova sondagem no topo do cabeço, a NE
da cisterna. A cisterna do castelo de Miranda do Corvo é uma estrutura escavada
na rocha, tipo poço, de nave única e planta retangular (3m x 4m). Atualmente,
apresenta-se sem cobertura, ainda que possam ser observados os arranques da
cobertura abobadada. As paredes interiores encontram-se argamassadas; de
argamassa é, também, o piso. Não apresenta qualquer tipo de dreno para limpeza
e manutenção. A recolha das águas pluviais e o acesso para manutenção seriam
feitos pela abóbada, hoje desaparecida, visto não serem visíveis, nas paredes,
quaisquer vestígios quer de condutas e canalizações quer de uma escada fixa que
permitisse o acesso ao interior da estrutura. A cisterna foi utilizada como
ossário, provavelmente no final do século XVIII, tendo sido limpa em meados do
século XX, de acordo com testemunhos orais recolhidos.
Esta zona do cabeço sofreu uma forte intervenção durante as obras do Padre
Coimbra. Os trabalhos de terraplenagem retiraram vários metros à elevação,
aplanando o seu topo. Daí que na zona NO da sondagem, sob a camada vegetal, o
afloramento rochoso se encontre a cerca de 20cm de profundidade. A rocha
apresenta-se cortada, para atingir a cota de circulação pretendida. Todos os
vestígios arqueológicos que aqui pudessem existir foram destruídos.
Na área SE da sondagem, sob depósitos de Época Moderna, foram identificadas 6
sepulturas escavadas na rocha,que se dividem em dois grupos: 3 das sepulturas
encontram-se fraturadas, sendo uma, claramente não antropomórfica e as outras
duas de tipologia indeterminada. Deste grupo, duas apresentam orientação O-E, e
uma E-O. São mais antigas do que o segundo grupo, que se encontra orientado no
sentido S/SO-N/NE, cortando, na perpendicular, as primeiras. As 3 sepulturas
mais recentes enquadram-se na tipologia geral de não antropomórficas. Ao todo,
foram identificados 7 indivíduos em conexão (6 adultos e 1 não adulto).
As inumações identificadas nesta zona foram, também elas, depositadas
directamente sobre a rocha. A colocação dos indivíduos nas sepulturas fez-se na
posição de decúbito supino, ou dorsal. Os sepultamentos também foram realizados
em espaço fechado, isto é, foi colocada terra sobre os defuntos.
Ao contrário das sepulturas da Sondagem A, os 6 sepulcros desta sondagem não
conservavam tampa, nem apresentam rebordos, e também não foram identificadas
pedras de cabeceira.
Contrariamente ao identificado na Sondagem A, cujas sepulturas são mais
antigas, os sepulcros da Sondagem B não se encontram organizados, nem estão
paralelos, à excepção das sepulturas 1 e 2, embora as inumações apresentem
orientações completamente divergentes. O facto de os sepulcros apresentarem uma
orientação diferente não parece ser explicado pela geologia, ou pela falta de
espaço, pelo menos à luz dos dados actuais. Talvez a sua datação mais tardia
(Baixa Idade Média, início da Época Moderna) ou o afastamento em relação ao
templo, polo orientador, sejam as hipóteses mais válidas.
Foi, ainda, posto a descoberto o embasamento de uma estrutura que conserva
apenas uma fiada de pedras (seixos e xisto ligados por argamassa de terra e
argamassa de cal), de aparelho irregular, o que dificulta a sua datação. Não
foi possível fazer o levantamento integral da construção, pois estende-se para
fora dos limites da sondagem. Contudo, é possível verificar que se trata de uma
estrutura maciça, da qual foi possível identificar mais de 300cm, no sentido
NE-SO, e 300cm, no sentido, NO-SE. É possível que se trate do embasamento de
uma torre.
Esta estrutura é anterior à necrópole rupestre, nesta zona do cabeço: depois de
ter deixado de exercer a sua função, a construção foi destruída e o seu
embasamento escavado para o talhe de sepulturas. A necrópole, na zona Este do
cabeço (junto à atual Torre Sineira), é mais antiga. Com o avançar da necrópole
para Oeste, também o topo do cabeço passou a ser zona de enterramentos. A
necrópole continuou a avançar para poente, onde hoje se encontra o cemitério
municipal, inaugurado no século XIX.
Materiais arqueológicos
Não foram identificados objectos cerâmicos associados às inumações, assim como
qualquer numisma. Parece que o hábito pagão de pagar a Caronte está ausente das
sepulturas escavadas. Na necrópole rupestre da Sondagem A, o espólio funerário
está apenas representado por algumas contas isoladas, e por dois alfinetes de
cabelo, de cobre, exumados in situ. Contrariamente, durante a exumação do
material osteológico do ossário, foram resgatadas algumas moedas, de aspecto
mais tardio. Deste espólio, contam-se, ainda, alguns botões, quer em osso quer
metálicos, e colchetes, o que indica que os indivíduos terão sido enterrados
vestidos. Quanto a objectos de adorno, foram exumados alguns anéis, medalhas e
cruxifixos. Este espólio parece corroborar a hipótese deste material
osteológico ser proveniente das sepulturas que existiam em redor da Igreja do
século XIV, em cima (?) da qual terá sido construído o templo actual, no século
XVIII (vide nota 14).
Das sepulturas da Sondagem B, foram exumadas quatro contas, durante o
levantamento de um dos indivíduos: duas sobre o abdómen, duas pendentes no lado
direito, sendo provável que este indivíduo tenha sido enterrado com um rosário
na mão esquerda. Foi, ainda, exumado um botão sobre o tórax, o que indica a
utilização de roupa.
Do total da intervenção, não foi exumado espólio relacionado com a actividade
bélica, sendo a cerâmica comum o espólio mais abundante.
Conclusão
Apesar dos vestígios identificados, a estratigrafia reconhecida apresenta
muitos hiatos. Muitos são os momentos de ocupação do sítio sobre os quais não
temos dados (não foram identificados, por exemplo, os níveis de circulação
relacionados com as estruturas descobertas) e para determinados momentos os
dados são exíguos. O problema da origem e edificação do castelo mantém-se em
aberto; já o seu declínio e abandono parecem estar comprovados, quer do ponto
de vista documental, quer do ponto de vista arqueológico.
A análise do material recolhido não permite avançar com cronologias absolutas,
visto que, por exemplo, os poucos numismas identificados estão em contexto de
ossário (que se encontra no seu segundo lugar de deposição) e as cerâmicas
finas são raras.
Em relação à necrópole rupestre, perante o número de sepulcros identificados na
Sondagem A ' 28 sepulcros em 28 dos 40m² da sondagem ' a sua disposição
organizada e a sua orientação canónica, colocamos a hipótese de estarmos
perante uma necrópole paroquial, mais precisamente a necrópole relacionada com
a igreja do Presbítero Árias, deixada em testamento, em 1138, ao bispado de
Coimbra.
A reforçar esta hipótese está a proximidade com o conjunto das unidades murais
no canto superior direito da Sondagem, que apresenta a mesma orientação dos
túmulos. Contudo, pensamos que a origem da necrópole poderá ser anterior a esta
estrutura, devido à existência de uma sepultura provavelmente anulada no
momento da construção do edifício ao qual pertenciam os muros referidos. Ou
seja, aquando a edificação do edifício religioso poderia já existir um espaço
sepulcral localmente reconhecido, cujos túmulos vieram a ser integrados num
espaço sacralizado. É provável que já existisse uma comunidade cristã
organizada20, à qual o Presbítero terá vindo prestar apoio espiritual, e que a
Igreja que edificou tenha vindo perpetuar uma antiga tradição de culto, que
serviu de estímulo para a abertura das primeiras sepulturas.
Assim sendo, a necrópole rupestre de Miranda do Corvo, pelo menos a área junto
à Torre Sineira, datará dos séculos XI-XII. Para a mesma datação aponta a
tipologia das sepulturas21. Estamos, assim, perante mais um exemplo do inferido
por Isabel Alexandra Lopes, para o Douro Superior? Neste estudo22, a autora
conclui que as «necrópoles de sepulturas antropomórficas estariam relacionadas,
por norma, com locais fortificados de maiores dimensões e/ou com edifícios
religiosos. Estes últimos são espaços que desempenharam papéis preponderantes
durante a conquista cristã, apresentando as sepulturas características tidas
como mais evolucionadas, tais como as formas trapezoidais e as cabeceiras
rectangulares e em arco ultrapassado. A conjugação destes factores indicia uma
cronologia entre os séculos XI e XII».
Contudo, é impossível atribuir uma datação precisa aos sepulcros
rupestres.Estes monumentos não possuem qualquer contexto estratigráfico
anterior ao seu talhe: como são cortados no afloramento rochoso, a
estratigrafia relacionada com a anterior utilização do espaço foi destruída,
não sendo, por isso, possível estabelecer uma datação post quem. Assim, apesar
de, ao contrário do que é comum neste tipo de arqueossítio, as sepulturas terem
fornecido material osteológico em bom estado de conservação, e algum espólio
(caso de alfinetes e algumas contas isoladas), não é possível atribuir uma
cronologia precisa para a necrópole, com os dados recolhidos até agora. Até o
momento em que esta é abandonada é difícil de datar, pois o material cerâmico
exumado dos depósitos que anulam os sepulcros, caracteriza-se por pequenos
fragmentos de material de construção e de cerâmica comum incaracterística.
A relação entre a necrópole rupestre e a fortificação medieval fica por
concluir. Não foi possível estabelecer a relação estratigráfica entre o espaço
sepulcral e a actual Torre Sineira: junto à fachada NO, encontra-se adossada a
estrutura de Época Moderna de acesso à torre. Em relação à fachada SO, aqui a
estratigrafia foi completamente alterada com a abertura da vala ossário
contemporânea. Tudo isto impediu a certificação quer da cronologia da Torre
quer da cronologia relativa através da articulação estrutura-sepulcros.
Sabemos, apenas, que o espaço terá sido utilizado como necrópole durante muito
tempo, antes da construção das estruturas murais relacionadas com uma fase da
fortificação em que esta terá perdido parte do seu carácter defensivo, como se
viu anteriormente, entre a Baixa Idade Média, inícios de Época Moderna.