O ritual do batismo em Portugal na Baixa Idade Média e nos inícios do século
XVI
Preâmbulo
Habituamo-nos a ver o sacramento do batismo a ser administrado em crianças mas
nem sempre foi assim. Não obstante a sua prática remontar ao século III, o
primeiro sacramento recaiu sobretudo nos adultos que, depois de se prepararem
como catecúmenos, pediam-no para ingressarem na Igreja e viverem como membros
da comunidade cristã1. Só aos poucos é que o batismo infantil ganhou a atenção
dos Padres da Igreja. Orígenes (c. 185-254), por exemplo, ofereceu
justificações para a sua precoce administração, ao afirmar que limpava os
pecados da nascença, como o pecado associado ao parto2; e São Cipriano (c. 205-
258), como resposta à carta do bispo Fidus, sustentou que os neófitos não
deveriam ser excluídos do sacramento e que, inclusive, o poderiam receber a
partir do oitavo dia de nascimento. Todavia, foi Santo Agostinho (354-430) quem
mais contribuiu para a sua difusão. Ao salientar, a partir da obra De
peccatorum meritis, que sem o batismo as crianças não obtinham a salvação e a
vida eterna, o bispo de Hipona deu um novo sentido e rumo ao primeiro
sacramento3.
Para se distinguir do batismo dos adultos, o batismo infantil acolheu novos
elementos na sua celebração. Introduziram-se os exorcismos para salvar a alma
conspurcada da criança e recorreu-se à ajuda dos adultos para que respondessem
em nome do bebé às questões do sacerdote, alterando-se a formulação das
respostas da 1ª para a 3ª pessoa do singular. Por exemplo, quando o ministro
colocava a questão Acredita [o neófito] em Jesus Cristo?, os padrinhos
respondiam Ele acredita4.
Lançadas as primeiras bases para uma nova cerimónia batismal, o sacramento
seguiu os preceitos de um ritual de passagem já que incluíaas três fases
propostas por Arnold Van Gennep: separação, liminar e agregação5. Edward Muir
distingue-as claramente no batismo do Antigo Regime. Segundo o historiador, o
rito de separação iniciava-se com os exorcismos realizados na porta da igreja
para afastar o reino de Satanás através da bênção de Deus. A segunda fase
acontecia quando a criança era retirada dos braços de quem a transportava e era
levada até ao batistério para ser submersa na água da fonte batismal. E, na
fase final, a da agregação, o sacerdote colocava a criança nos braços dos
padrinhos para a incorporar na comunidade cristã6.
Embora seja difícil datar com precisão quando é que se deu a generalização do
batismo infantil, o certo é que no século VIII já era administrado no primeiro
ano de vida do bebé durante o período pascal7; e, para o território que um dia
viria a ser Portugal, podemos afirmar que já aí se praticava desde o século VI.
Assim o demonstra o 7º artigo do Segundo Concílio de Braga, celebrado em 572 e
presidido por S. Martinho de Dume, que determinou que nada se deveria pedir aos
pais das crianças para administrar o primeiro sacramento, aceitando-se apenas
dádivas voluntárias8.
A par do êxito do batismo infantil, o próprio ritual foi-se moldando ao longo
dos séculos mas de forma diferenciada de reino para reino ou até de região para
região e, foi apenas durante o pontificado de Paulo V que fixou os seus
elementos fundamentais, consignados no Ritual Romano de 1614. Este foi adotado
em Portugal, embora não se tenha imposto como obrigatório, permitindo a
coexistência de outros manuais que mantiveram as suas tradições9. Assim, não é
de estranhar que tenham surgido em Portugal manuais litúrgicos como os de Braga
(1517), Coimbra (1518) e Évora (1528), que manifestaram, também neste domínio,
os seus próprios particularismos10. Ainda que do século XVI, estes manuais
demonstraram continuidades face a uma tradição medieval que remonta ao século
XII, como adiante veremos11.
O ritual do batismo: confluência ou divergência?
Foi no âmbito da reforma gregoriana que, durante os finais do século XI e
princípios do século XII, o território português de entre Mondego e Minho
substituiu a liturgia hispânica em favor da romana12. Acontece que a
concretização da reforma litúrgica por intermédio de livros oriundos de França
e com conteúdos galicanos deu origem à liturgia bracarense que, por sua vez,
conduziu à emancipação da liturgia conimbricense e eborense. Assim, embora
estas dioceses adotem os modos de batizar romanizados (imersão, colocação da
mão e do sal, por exemplo), os três manuais testemunham a influência do batismo
galicano no que diz respeito às preces exuberantes e à enfase de gestos
simbólicos presentes em grande parte no Missal de Mateus que, tal como os
restantes livros litúrgicos franceses, chegou à Península Ibérica no século
XII13
.
Detenhamo-nos primeiramente sobre os manuais de Braga (1517) e de Coimbra
(1518), cuja análise revelou notórias semelhanças entre ambos. Seguindo com
atenção os dois manuais, apercebemo-nos que a celebração do batismo incluía as
três fases de um ritual de passagem:
1) A primeira etapa ocorria do lado de fora da porta principal da igreja, onde
o sacerdote perguntava aos padrinhos qual o nome a dar à criança. Depois de
nomeada, dava-se então começo aos vários exorcismos. Em primeiro lugar,
realizavam-se na face do bebé as três insuflações, que assumiam a forma de uma
cruz, com o propósito de afastar o diabo14. Após os sopros, seguiam-se os
sinais da cruz estendidos às várias partes do corpo: nos olhos para que visse
Deus; nos ouvidos para o ouvir; nas narinas para que usufruísse o seu odor; no
peito, ou melhor, no coração, para que nele acreditasse; e na boca para o
demonstrar através das suas palavras15. Depois, o sacerdote colocava a mão
direita sobre a cabeça do pequeno para destruir os laços que o prendiam a
Satanás. Passava-se então à administração do sal, depois de o exorcizar16.
Segundo Nicolas Lopez Martinez, as liturgias apelavam aos méritos divinos para
purificar os elementos sacramentais e os afastar do domínio do demónio17. Por
isso, os manuais de Braga e de Coimbra exigiam o exorcismo do sal, pedindo ao
Criador que o transformasse num medicamento perfeito (perfecta medicina) para
afugentar o inimigo. Daí que fosse colocado na boca do recém-nascido18. Entre
as orações que se seguiam, intercaladas com mais dois sinais da cruz na testa,
finalizava-se a primeira ronda dos exorcismos com abjurações para amaldiçoar o
diabo. Para ultimar a primeira fase do ritual, o sacerdote orava com os
padrinhos o Credo in Deum, o Pater Noster e o Ave Maria.
2) Ao deixarem o adro da igreja, dava-se lugar à fase liminar, que já ocorria
dentro desta. O manual de Braga exortava a que o sacerdote abrisse com a sua
saliva os sentidos, isto é, as narinas e os ouvidos do recém-nascido com duas
intenções: expulsar o diabo e tornar a criança capaz de ouvir e sentir o odor
de Deus19. Depois, seguido pelos padrinhos, levava a criança nos braços para
junto da pia batismal, enquanto entoava a ladainha de Todos os Santos e o Kyrie
eleison20. Aí, benzia e exorcizava a fonte. Ambos os manuais impunham que o
sacerdote revolvesse duas vezes sob a forma de cruz a água batismal, lançando-
a de seguida para fora do bacio. Aconselhavam também a que o ministro alterasse
o seu tom de voz, asi como quando lee la leçom, soprasse sobre a água em
forma de cruz e lhe inserisse um círio aceso. E, por fim, recomendavam que nela
derramasse o óleo do crisma e o óleo santo de per se e só depois os dois
conjuntamente. Desta forma, a água batismal adquiria o poder de santificar:
lavaria os vícios (pecado original) e regeneraria para se exercer o bem21.
Dirigindo novamente a atenção para o bebé, o ministro retirava-lhe a roupa e
passava às renunciações a Satanás e às suas obras e pompas, às quais os
padrinhos respondiam Abrenuncio. Colocava, sob a forma de cruz, o óleo dos
catecúmenos entre as espáduas e o peito do menino para que adquirisse vida
eterna e, voltava a interrogar os padrinhos sobre os artigos da fé,
questionando-os por três vezes se era intenção da criança ser batizada. Os
padrinhos respondiam afirmativamente enquanto a tocavam. Deste modo, ficava
pronta para ser banhada por três vezes na fonte batismal com a fórmula Ego te
baptizo in nomine patris et filii et spiritus sancti22.
3) Assim que emergia da água batismal, dava-se a fase de agregação. O padre
fazia-lhe na cabeça o sinal da cruz com o óleo do crisma, salientando que tinha
sido regenerada pela graça do Espírito Santo. Colocava-lhe o capelo branco
para que um dia fosse levada ao tribunal do Senhor e entregava-lhe a vela acesa
na mão direita para que Cristo a encontrasse na sala da justiça celestial.
Despedia-se dos padrinhos e advertia-os para que ensinassem a fé ao afilhado23.
Dava-se assim por concluído o ritual do batismo.
Não obstante a publicação do manual de Évora (1528) ser mais tardia do que a
dos de Braga e Coimbra, demonstra que seguiu mais fielmente o ritual do batismo
do Missal de Mateus24. No que ao batismo diz respeito, mesmo sendo o manual de
Évora bastante semelhante aos manuais de Braga e Coimbra, foi-nos possível
detetar diferenças25.
Vejamos a primeira fase do ritual. Enquanto que os manuais de Braga e Coimbra
apenas aludiam ao exorcismo do sal, Évora acrescentava ao exorcismo uma bênção
'Benedic omnipotens deus hanc creaturam salis ' como exigia o Missal de
Mateus26. E, logo após a colocação do sal, era requerido um simples sinal da
cruz na testa da criança, ao passo que em Braga e Coimbra se requeriam dois
sinais intercalados entre as orações27. Na transição do rito de separação para
a fase liminar e, seguindo mais uma vez o Missal de Mateus, o manual de Évora
apresentava um outro panorama. Impunha ao sacerdote que, antes de entrar na
igreja, colocasse a mão direita sobre a criança e que proferisse o Pater
Nostere o Credo in Deum, substituindo o Ave Maria por uma pequena oração para
que a bênção de Deus alcançasse o pequeno e o levasse à vida eterna; ao não
mencionar os padrinhos, o manual de Évora dá a entender que não acompanhavam o
sacerdote nestas orações28.
A segunda fase da celebração também registava algumas diferenças. É no manual
de Évora (e também no Missal de Mateus) que entendemos particularmente como se
efetuava a abertura dos sentidos. A intenção era a mesma que em Braga e
Coimbra, não se descurando a saliva para tal efeito. Contudo, o manual de Évora
realçava particularmente a orelha esquerda; ao murmurar-lhe, o diabo fugiria e
os restantes orifícios destapar-se-iam para Deus29. Outro aspeto a assinalar
era a forma como em Évora se exorcizava a pia batismal. Distanciando-se desta
vez da sua fonte de inspiração, isto é, do Missal de Mateus e, por conseguinte,
também dos manuais das dioceses de Braga e Coimbra que, neste aspeto, seguiam
com mais rigor a fonte francesa, Évora optou em alguns momentos por outro rumo.
Ao invés das duas dioceses referidas, cujos rituais determinavam que o
sacerdote revolvesse a água batismal por duas vezes, Évora alargou para três o
número de revolvimentos, decretando que depois fosse marcada com três cruzes.
Não obstante as três corresponderem ao momento em que se aconselhava que o
ministro mudasse o tom de voz, soprasse sobre a água e nela inserisse um círio
aceso, as determinações do manual de Évora voltavam a demarcar-se no momento da
colocação dos óleos; Évora apenas prescrevia que se deitasse o óleo do crisma
na água batismal30.
Só na terceira etapa da celebração é que os três manuais (assim como o Missal
de Mateus) voltam a ser semelhantes entre si. Uma outra semelhança visível nas
quatro fontes às quais temos vindo a dar atenção é o ritual do batismo dos
mininos e das mininas. Idêntico para os dois sexos, nenhum manual
apresentou alguma manifestação de desigualdade, quer nas orações quer nos
gestos inerentes à administração deste sacramento. Sandy Bardsley notou que
havia uma diferença de tratamento na cerimónia do batismo medieval no momento
em que o sacerdote colocava os bebés do sexo masculino do seu lado direito
(considerado o lado sagrado e importante) e os do sexo feminino do seu lado
esquerdo31. No caso dos referidos manuais portugueses, a única diferença que o
manual de Braga estabelece no que toca ao modo de batizar dos dois sexos é
evitar um engano discursivo; assim, no título desse manual encontramos a
seguinte explicação: Neste breue manual [ ] se contem dous baptismos huum pera
ho macho et outro pera ha femea cada huum de per se [ ] de maneira que nenhum
sacerdote pode errar no mudar do latim32; ou seja, o que estava em causa era
garantir a validade do sacramento, diferenciando entre rapazes e raparigas no
texto proferido pelo padre.
Em suma, a confrontação das prescrições relativas à cerimónia batismal nos
referidos três costumes vem apenas provar que, ainda em pleno século XVI, se
seguia uma fonte medieval. Braga e Coimbra de uma forma mais frugal e Évora de
uma forma mais evidente. No entanto, sabemos que uma edição do manual
bracarense, impressa em 1496, reproduziu na íntegra o Missal de Mateusno que ao
batismo dizia respeito, suprimindo apenas duas orações da fonte galicana que,
por repetidas, foram dispensadas33. E se o manual bracarense de 1496 exerceu
influência noutras dioceses como as do Porto ou Viseu, quem sabe se o ritual do
batismo segundo o Missal de Mateus não foi celebrado de forma semelhante
noutras dioceses do reino34?
Se foi o caso, então foi apenas na segunda metade do século XVI que o Missal de
Mateus ganhou concorrência com a chegada dos bautistérios, que propuseram novas
formasrituais35. No nosso entender, o Bautisteiro romão editado por Germão
Galharde em 1560 revela sinais evidentes de tendência reformista: diminuiu o
número de insuflações para uma, limitou o sinal da cruz para uma singela
aplicação no peito e testa, omitiu a ladainha, e reduziu os exorcismos da pia
batismal (revolvimentos, círio, etc.) a um mero derramamento do óleo do crisma
na água batismal36. Houve, neste Bautisteiro, uma intenção de simplificar toda
a gestualidade associada ao ritual do batismo, talvez para resguardar o
sacramento das críticas protestantes, como luteranas e calvinistas, que
acusavam a Igreja romana de conferir ao batismo uma força mágica37.
Aparentemente, a consciência do período moderno distanciou-se das exigências da
sociedade medieval que repousavam em grande medida no poder do gesto o que,
segundo Jacques Le Goff, caracterizava em larga medida a civilização
medieval38.
Regulamentação eclesiástica portuguesa
Paralelamente aos manuais litúrgicos que, como vimos, guiaram e moldaram a
celebração do batismo, existiam as constituições diocesanas para regularem e
disciplinarem o primeiro sacramento. Estes instrumentos normativos dedicaram um
capítulo específico ao batismo, onde impunham uma série de cânones de cariz
mais taxativo e com informações adicionais para servirem de suplemento à
liturgia e auxiliarem os sacerdotes nas questões práticas. O seu conteúdo
permitiu-nos avaliar temporalmente a importância que conferiram ao primeiro
sacramento e a forma como reforçaram a sua administração. Assim, balizaram os
dias para a celebração do batismo, limitaram o número e a escolha de padrinhos
e, por vezes, mencionaram os batizados dos filhos dos clérigos.
Conquanto que a celebração do batismo a todos os recém-nascidos (quamprimum) se
tenha tornado numa prática generalizada no Ocidente no século XIII, foi por
influência do Concílio de Florença (1439-1445) que as constituições sinodais
portuguesas da segunda metade do século XV passaram a recomendar a
administração do sacramente entre o nascimento do bebé e o seu oitavo dia de
vida, uma vez que Cristo havia sido circuncidado aos oito dias39. Segundo D.
Diogo Ortiz de Vilhegas (c. 1454-1519), era no tempo do Senhor que pela
circumcisam perdoava Deos o pecado original40. Mesmo assim, havia pais que
não cumpriam este prazo, pondo em causa a salvação dos seus filhos, como
destaca o arcebispo de Braga, D. Luís Pires: [ ] polla negligencia de muitos
padres e madres e ainda por sua ponpa, por tomarem mais padrinhos e madrinhas
dos que o direito manda ou por aguardarem alguuns que venham de fora pera os
tomarem por conpadres, muitas vezes acontece muitas criaturas morrerem sem
bautismo e serem dapnados nom por culpa sua, mas por culpa dos mezquinhos
padres e madres41. Por conseguinte, o prazo dos oito dias continuou bem
patente nas constituições de transição42; apenas Braga concedeu um limite de 9
dias43.
As constituições sinodais também demonstram que no século XIII já existia uma
restrição para a nomeação dos padrinhos. Não podiam ser mais de três, homens ou
mulheres, nem contrair matrimónio entre si, regra que, na parte que ao
matrimónio dizia respeito, nem sempre seria observada na arquidiocese de Braga,
como testemunha a constituição do arcebispo D. Frei Telo44. Mas o desejo de
limitar os pais quanto à escolha dos padrinhos não ficou por aqui. À medida que
o tempo avançou, as constituições sinodais tornaram-se mais rígidas.
Independentemente de algumas constituições da segunda metade do século XV darem
continuidade à tradição, como foi o caso das de Braga de 1477 ou de Valença do
Minho de 1486, houve outras que se pautaram pela mudança, apelando para uma
renovação. Assim acontece nas constituições do Porto de D. Diogo de Sousa
(1496), que estabelecem como norma um padrinho e uma madrinha para cada
criança. Já as constituições de transição vão apelar a que o padrinho não tenha
menos de catorze anos e a madrinha menos de doze, sendo que ambos teriam de ser
batizados e crismados. Da mesma forma, excluíam padrinhos do clero regular,
assim como mudos, excomungados e casais45. No entanto, o seu número continuava
a variar: havia dioceses que apenas aceitavam uma madrinha e um padrinho, como
eram os casos do Porto (1541) e de Coimbra (1548), e outras toleravam o número
de três pais espirituais, como verificamos para Braga (1538), Algarve (1554),
Tomar (1555) ou Angra (1560).
Mas o controle não se cingiu apenas aos leigos. As constituições diocesanas da
segunda metade do século XV abarcaram questões embaraçosas, como os batizados
dos filhos dos clérigos que não davam um bom exemplo ao povo. Pelos vistos,
quando os membros do clero batizavam os seus filhos, recorriam a um número
considerável de padrinhos e, posteriormente, organizavam banquetes e grandes
festividades. Para travar essas atitudes, que podiam dar azo a críticas, o
Arcebispo de Braga propôs aos clérigos que os batizassem honestamente ou até
encobertamente46. Mas o alargamento das recomendações sobre o assunto nas
constituições de transição revelou a permanência do problema. Assim sendo, as
constituições posteriores decretaram que os seus filhos só fossem acompanhados
pelos padrinhos e pela pessoa que os carregasse e, da mesma forma, não fossem
batizados na igreja onde exerciam funções. Na falta de uma outra solução, então
o sacramento seria realizado sem aparato e sem a presença de alguém47.
Todavia as constituições de transição não ficaram por aqui. As novas regras,
mais limitativas, foram extensivas a outros assuntos. Os nomes das crianças
ficaram circunscritos aos nomes de santos canonizados para que estes, um dia,
servissem de seus advogados diante de Deus48. Além do mais, esta escolha
coibiria os pais de optar por nomes pagãos (gregos, latinos e cartagineses)
retomados por influência do Humanismo49. E, contrariando alguns manuais de
liturgia, prescreveram que a imersão fosse feita em apenas um ato, para não
colocar em perigo a vida do recém-nascido, admitindo inclusive a aspersão, que
consistia no derramamento da água na cabeça e no rosto. A aspersão, no entanto,
apenas seria posta em prática em algumas circunstâncias: quando houvesse
insuficiência da água; no caso de perigo de vida da criança; ou quando o
ministro se encontrasse fraco ou impedido de realizar a imersão. Em qualquer
destas situações, a água deveria tocar na pele e não na roupa50. Finalmente, e
para saber se algumas destas regras estavam a ser cumpridas, instituiu-se,
ainda antes do Concílio de Trento, a obrigatoriedade de registo dos batismos em
livro próprio, no qual constariam o dia, mês e ano em que o sacramento se
realizou, o nome do neófito, dos pais e dos padrinhos, o local onde residiam e
a qualidade ou respetivos ofícios, bem como o nome do sacerdote; e, se houvesse
necessidade de ocultar os nomes do pai e da mãe, deveria anotar-se apenas quem
o havia mandado batizar e se era ou não legítimo. Do mesmo modo, se o oitavo
dia de batismo fosse ultrapassado, por se tratar de enjeitado ou por qualquer
outro motivo, dever-se-ia apurar a idade que o bebé teria. Os batizados em caso
de necessidade, que abordaremos em seguida, seriam registados depois de
receberem o óleo e crisma na igreja51.
Batismo de extrema-necessidade e condicional
A legislação religiosa não teve apenas em conta o batismo normal, que se
realizava no templo religioso e que requeria uma pia batismal; criou também
soluções para situações de risco de vida. Para os partos complicados,
desenvolveu o batismo de extrema-necessidade, já referido nas constituições
sinodais do século XIII52. Foram, porém, as do século XVI que deram um
protagonismo especial às parteiras na sua administração, já que eram elas quem
assistia à maioria dos partos53. Independentemente do local onde se
encontravam, as parteiras deveriam batizar as crianças por aspersão porque
estava em causa a sua salvação, ao que não podia faltar água limpa54. Se a
criança não conseguisse nascer do ventre da mãe, deveriam batizá-la no primeiro
membro que surgisse55. No manual litúrgico de Braga, datado de 1562, o batismo
de extrema-necessidade é referido como sendo destinado a ser aplicado em casa
do bebé, dando liberdade ao ministro para o administrar no momento em que a
parturiente tentava dar à luz, aconselhando que derramasse a água sob a forma
de cruz num dos membros do bebé que surgisse no imediato56. Da mesma forma, e
na ausência das parteiras, as constituições sinodais permitiam que o batismo de
extrema-necessidade fosse ministrado pelos pais e até por hereges, pagãos e
excomungados, desde que soubessem a fórmula batismal: Eu te baptizo em nome do
padre e do filho e do spirito sancto. Ámen, não especificando contudo se também
poderiam intervir durante o parto57.
Se melhorasse de saúde, o recém-nascido deveria ser levado à igreja, passados
oito dias, para aí receber o batismo solene. O padre deveria então perguntar
como havia sido batizado e, se o que lhe fosse reportado não lhe agradasse,
aplicaria o designado batismo condicional, que consistia em dizer no momento em
que erguia o bebé da pia batismal: Si tu baptizatus es, ego non te rebaptizo,
sed si tu baptizatus non es, ego baptizo te in nomine Patris et Filii et
Spiritus Sancti. Amen58. Todavia, não devemos ligar o batismo condicional
apenas ao batismo de extrema-necessidade, uma vez que era também aplicado aos
enjeitados, mesmo que trouxessem consigo escritos que mencionassem que já
haviam sido batizados59.
O destino das crianças não batizadas
Crianças havia que nem a sorte tinham de receber o batismo de extrema-
necessidade e, muito menos, o batismo condicional porque nasciam mortas, o que
se deveria tornar num verdadeiro pesadelo para os progenitores.
Excluídas do Céu por Santo Agostinho, as almas das crianças mortas sem batismo
foram encaminhadas para o Limbo das crianças (limbus puerorum) a partir do
século XIII60. De acordo com Didier Lett, foram vários os fatores que
estimularam o surgimento deste local no Além. Nasceu como resultado do apelo
dos leigos que ansiavam por alternativas menos angustiantes, como consequência
do combate ao movimento herético que rejeitava o poder salvífico do batismo, e
como uma resposta mais eficaz à natureza particular do pecado original que
pretendia diferenciar-se dos restantes pecados61.
Mesmo sendo contestado pelos adeptos da doutrina agostiniana, já que não
passava de uma mera hipótese teológica, o limbus puerorum mereceu o
reconhecimento de certos escolásticos, em especial de S. Vicente Ferrer, cujos
sermões garantiram a sua difusão pela Península Ibérica62. Se bem que,
presentemente, desconheçamos testemunhos iconográficos do Limbo em Portugal e
haja uma falta de referências concretas nas constituições sinodais '
contrariamente ao que acontece nas do reino vizinho que o mencionam ' estamos
convencidos de que não esteve ausente do pensamento português medieval63. Há
indícios de que tenha sido subtilmente incluído numa constituição sinodal do
século XV quando se faz alusão às crianças penadas64. Poder-se-á afirmar que se
referia indiretamente às crianças no Limbo porque, segundo José Mattoso, os
penados identificavam-se com as almas em trânsito, isto é, que não tinham
direito a alcançar um destino definitivo65. Emergirá, contudo, mais claramente
ao longo do século XVI, citado por várias vezes na literatura religiosa
portuguesa66. No Cathecismo Pequeno (1504) do bispo de Viseu D. Diogo Ortiz de
Vilhegas (c. 1454-1519), já encontramos a referência ao Limbo dos mininos que
foram inseridos no grupo das almas que não aguardariam a graça e os
merecimentos vindoiros67.
Muito embora tenha sido criado para proporcionar um destino menos doloroso às
crianças sem batismo, estas não deixavam de estar confinadas a um local votado
ao esquecimento, já que não mereciam alcançar a visão de Deus. A solução
encontrada na Europa Central para minorar as angústias dos pais passou pelos
santuários à répite no noroeste da Península Ibérica pelo batismo de ponte68.
O batismo e o contexto social. Um caso: o batismo real.
Era incontestável que a natureza do pecado original abarcava a todos e a todos
condenava. O diálogo de Santo Agostinho assim o anuía: E para além disso
porque admito que os que nascem, quaisquer que sejam os seus pais, estariam
sempre debaixo do domínio do diabo69. Em virtude deste pensamento, nem os
infantes estavam livres do pior destino no além e, o certo, é que a autoridade
agostiniana prevaleceu sobre a autoridade régia chegando inclusive a causar
temor às Rainhas, como aconteceu com D. Filipa de Lencastre (1360-1415). Conta
o hagiógrafo do infante D. Fernando, mártir de Fez, que a rainha, com febres e
fraquezas durante a gravidez, foi aconselhada a tomar um abortivo para não
colocar a sua vida em perigo, ao que recusou, para levar a gravidez ao fim e
viabilizar o batismo do seu filho70.
Assim, e conquanto estivessem subordinados ao primeiro sacramento a fim de
obterem a salvação, a verdade é que os príncipes renasciam em Cristo da forma
mais faustosa possível, com os melhores objetos disponíveis, quer de prata,
quer de ouro, com materiais cuidadosamente selecionados e no espaço que mais
lhes convinha71. É que, ao contrário do que possamos imaginar, o ritual do
batismo era bastante flexível e, tal como os restantes rituais, modificava-se e
enriquecia com a introdução de novos elementos que correspondiam à condição
social da criança72. Ao abrirmos caminho ao estudo do batismo da família real,
mais rico em informações a partir do século XV, apercebemo-nos desse
particularismo. O objetivo era um: destacar o poder real.
A ostentação da monarquia portuguesa no correr do batismo real exigia acima de
tudo o cumprimento de um protocolo sofisticado que incluía por exemplo o uso do
pálio, a presença de tochas e uma procissão. Ao que tudo indica, este protocolo
resultou da influência dos costumes da corte inglesa, que chegou a Portugal
através da obra Liber Regie Capelle (c. 1449), durante a regência do infante D.
Pedro (1438-1449)73.
Era a capela real que organizava a cerimónia, tanto no exterior como no
interior do templo religioso74. Detenhamo-nos em primeiro lugar no espaço
exterior, onde ocorria um cortejo que, narrado por Garcia de Resende na crónica
de D. João II, seguia sempre uma ordem hierárquica75. Os cronistas que o
sucederam relataram da mesma forma a procissão real que, pelos vistos, obedecia
a uma mesma regra: na dianteira da procissão seguiam os músicos, os
funcionários da Corte (oficiais de cerimónias, da Mesa dos Reis, da Casa Real
ou da Fazenda), e a nobreza que carregava tochas apagadas que, no regresso já
vinham acesas. De seguida, prosseguia a fidalguia mais importante que
transportava as insígnias: círio, maçapão, gomil, bacio das ofertas, saleiro e
toalha. Por fim, ia o baptizando ao colo de uma figura masculina, que podia ser
da família ou alguém íntimo e de confiança dos monarcas76; ambos eram
acompanhados pelos padrinhos e abrigados por um pálio bastante adornado, cujas
quatro varas eram seguras pelos grandes do reino. A hierarquia implícita no
cortejo batismal refletia/representava visualmente a hierarquia social, em cujo
topo se encontravam os membros da família real.
Apesar das Crónicasnão relatarem a cerimónia no interior da igreja, através dos
objetos empregues no cerimonial do batismo ficamos com uma ideia de como
poderia ocorrer. Sabemos, por exemplo, que, tal como as crianças das restantes
camadas sociais, os infantes recebiam os exorcismos para afugentar o diabo no
adro da igreja, nos quais o saleiro desempenhava um papel importante. Da mesma
forma, sabemos que os príncipes recebiam a unção dos santos óleos no peito e
nas omoplatas, porque o maçapão deveria ter o mesmo propósito que o mazapán
teria no batismo real espanhol: auxiliar o sacerdote a limpar os dedos após a
colocação dos santos óleos no batizando77.
Decorrida a fase da unção, os infantes não eram batizados numa pia batismal de
pedra, mas numa pia amovível, descrita, no manual litúrgico de D. Maria (1538-
1577) como uma bacia de prata muito grande78. Em Inglaterra, por exemplo, a
dinastia Tudor também se serviu de uma pia de prata para o efeito79. O batismo
de imersão era o que vigorava na corte portuguesa, ilação esta que podemos
retirar do relato de Tomé Pinheiro da Veiga (1570-1656) aquando da sua visita a
Valladolid. Ao assistir ao batismo do infante Filipe III, que ocorreu a 29 de
Maio de 1605, o português notou que havia diferenças entre o batismo real
português e o batismo real espanhol, comparações que só poderiam ter sido
feitas tendo em mente o que tinha sido usual na Dinastia de Avis, porque, no
tempo em que escreveu a obraFastigimia, Portugal encontrava-se sob a alçada da
Dinastia de Habsburgo. Eis as suas deduções: Concluo com o batismo com vos
dizer que nelles se tem em muytos diferente forma do que se custuma em
Portugal, por que, [ ] não o metem na agua, senão com huma concha lha deitam na
cabeça. Finda a imersão, as diferenças continuavam na terceira fase do ritual;
colocava-se uma estola de linho na cabeça do infante português, enquanto que ao
infante espanhol se colocava um véu que, segundo o autor, correspondia à veste
branca que os catecúmenos utilizavam nos primeiros tempos da Igreja Cristã80.
A mãe do infante encontra-se ausente nos relatos das Crónicas porque, tal como
as restantes mães de qualquer grupo social, não podia comparecer na igreja após
o parto. Impura por dar à luz, a parturiente estava excluída do templo
religioso por quarenta dias81.
Epílogo
O pensamento dos vários Padres da Igreja, principalmente o de Santo Agostinho,
esteve, como vimos, na promoção do batismo infantil. Mas o êxito do ritual não
se deveu apenas às suas reflexões. Foi graças aos contínuos esforços da Igreja
que o batismo das crianças deveu o seu êxito. Recordemos a diversidade
litúrgica daí decorrente. Cedo os teólogos perceberam que apenas com uma
abertura conseguiriam a atenção das comunidades cristãs e, por isso, permitiram
que a liturgia romana absorvesse certas expressões locais, familiares portanto,
aos que pretendiam aliciar. No caso português, identificamos esta tolerância
através dos manuais litúrgicos de Braga, Coimbra e Évora que, apesar de
seguirem um corpo comum - o ritual romano - buscaram no ritual galicano toda a
sua riqueza gestual e simbólica. Com ou sem divergências, o essencial era que o
batismo não perdesse a sua força mágica e que, no decorrer das suas três fases,
atuasse corretamente sobre a alma da criança para que não caísse em perdição.
Por isso, numa primeira etapa, fora da igreja, exorcizavam-na para a desprender
dos laços demoníacos; num segundo momento, junto da pia batismal, banhavam-na
na água lustral para a limpar da mácula herdada de Adão e Eva e, na terceira e
última fase, acolhiam-na como filha de Deus.
Mas, à medida que foram aumentando os abusos por parte do clero e foram
emergindo vozes contra o poder salvífico do batismo, a Igreja Católica teve
necessidade de intervir no sentido de controlar e unificar o sacramento. As
constituições diocesanas a partir dos finais da Idade Média espelham essa mesma
mudança e inquietação. Recordemos que o ritual do batismo passou a ser efetuado
até ao oitavo dia de vida do bebé, impondo-se à seleção dos padrinhos critérios
mais claros quanto à sua idade, percurso religioso, condição matrimonial e
integridade física; e nem os bebés que nasciam frágeis eram perdoados.
Batizados à pressa, eram aspergidos com água pelas parteiras ou mesmo pelos
próprios progenitores.
Se todas as crianças nasciam com o pecado original, independentemente da
condição social a que pertenciam, também os príncipes e infantes portugueses
deveriam lavar as suas almas com o batismo. Paralelamente ao papel salvífico e
de inclusão religiosa, a dinastia de Avis fez também da celebração deste
sacramento uma ocasião de exaltação do poder real que se manifestava
particularmente na procissão.
Em suma, a afirmação da imperiosa necessidade do batismo para a salvação feita
ao longo da Idade Média e a sua geral antecipação para os primeiros dias de
vida, a crescente vigilância eclesiástica sobre a sua celebração e a
obrigatoriedade do seu registo em livros próprios levaram a que, atingida a
época moderna, a sua celebração se generalizasse. Porta para a admissão na
Igreja e para a salvação eterna, o batismo foi também um ato de integração e,
na sua própria execução, um espelho das hierarquias que configuravam o corpo
social.