Hidrólise enzimática de casca de arroz utilizando-se celulases: efeito de
tratamentos químicos e fotoquímicos
2.1. Reagentes
A celulase comercial (Sigma) e outros reagentes e solventes utilizados foram de
grau analítico, e não sofreram nenhuma etapa de purificação prévia.
2.2. Procedimentos
Pré-extração da casca de arroz
A casca foi inicialmente lavada abundantemente com água, seca em estufa, moída
e peneirada. Visando-se a eliminação de substâncias que não fazem parte da
parede celular (ácidos graxos, resinas, ceras, corantes, etc), a fração de
tamanho inferior a 48 mesh foi posteriormente extraída durante 48 h em extrator
Soxhlet, utilizando-se benzeno-etanol 1:1 (v/v). O resíduo sólido foi seco a
massa constante e mantido em dessecador.
Pré-tratamento por irradiação
A casca de arroz foi irradiada utilizando-se uma lâmpada de vapor de mercúrio
(HQL-Osram), sem o vidro protetor, colocada a 17 cm de altura, sobre uma placa
de vidro (20x20) que continha uma monocamada de amostra.
As velocidades de fluência proporcionadas pela lâmpada foram determinadas por
meio de um radiômetro (YSI-Kettering, modelo 65A), obtendo-se os valores de
68,4 W m-2 (para l
³
300 nm) e 108,0 W m-2 (para l ³254nm). Nas irradiações a l ³300 nm, utilizou-se
um filtro Pyrex refrigerado a água.
Pré-tratamento com H2O2 em meio básico9
1,00 g de casca de arroz foi suspensa em 50 mL de água oxigenada 1% (v/v). O pH
desta suspensão foi ajustado em 11,5 com solução aquosa de hidróxido de sódio e
deixou-se em agitação durante 24 h. O material sólido foi posteriormente lavado
com água destilada até pH neutro, seco até massa constante e mantido em
dessecador.
Pré-tratamento com ozônio10
A casca de arroz foi colocada numa coluna cromatográfica de 80 cm de
comprimento e 1 cm de diâmetro interno, através da qual passou-se ozônio
durante 48 h (de baixo para cima) com vazão de aproximadamente 100 bolhas por
minuto.
Pré-tratamento com clorito de sódio11
A casca de arroz foi suspensa em solução de clorito de sódio 0,4 % (v/v, em
ácido acético glacial ) a 80-90oC, e agitada magneticamente durante 2 h. A
relação casca:solução foi de 2:100 (v/v).
Análise química da casca de arroz
A determinação de celulose (livre de lignina, hemicelulose e cinza) foi
realizada de acordo com procedimentos descritos por Updegraff12. O procedimento
envolve etapas de tratamento com reagente de Crampton/Maynard (ácido acético-
ácido nítrico), hidrólise em ácido sulfúrico a 67 % e formação de um composto
colorido por reação com solução de antrona. A absorvância do produto formado é
medida em 620 nm (espectrofotômetro Baush Lomb, Spectronic 2000), enquanto que
a concentração de celulose é determinada a partir de uma curva de calibração
realizada com um padrão de celulose, obtido por dissolução de papel Whatman No
1 em ácido sulfúrico a 67%. O teor de lignina total foi obtido a partir da soma
dos valores de concentração de lignina Klason13 e lignina solúvel em ácido11. O
teor de cinzas foi obtido por calcinação da amostra durante 2 h a 600oC. O teor
de hemicelulose encontra-se incluído no parâmetro identificado como
"outros", o qual foi obtido por diferença (subtraindo-se a soma das
massas de celulose, lignina total e cinza da massa da amostra).
Medidas de quimiluminiscência foram realizadas em 50 mg de material sólido,
suspensos em 1 mL de hidróxido de sódio 5 M. As medidas foram realizadas em um
contador de cintilação Beckman LS-7000.
Micrografias eletrônicas foram obtidas utilizando-se um microscópio eletrônico
de reflexão JEOL JSM-P15.
Sacarificação enzimática da casca de arroz. Determinação de açúcares
redutores14
A 50 mg de casca de arroz (peso seco) foram adicionados 0,5 mL de solução de
celulase (1,5 g L-1, atividade contra papel de filtro Whatman No 1: 251 UL-1) e
1,0 mL de tampão citrato 0,05 M (pH 4,8) e a mistura foi deixada em banho-maria
a 50oC durante 1 h. Acrescentou-se 3 mL de solução de ácido 3,5-
dinitrossalicílico, ferveu-se a mistura durante 5 min e acrescentou-se 16 mL de
água destilada. A mistura foi centrifugada a 2000 rpm durante 5 min e a
absorvância da solução colorida sobrenadante medida em 550 nm, contra branco de
reagentes. A massa de açúcares redutores foi determinada a partir de uma curva
de calibração, preparada a partir de uma solução de glicose em tampão citrato
0,05 M (pH 4,8).
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
O complexo celulase envolve no mínimo três enzimas, as quais apresentam modos
de ação bastante característicos. b-1,4-glicano-glicanoidrolase (uma
endoglicanase), b-1,4-glicano-celobioidrolase (uma exoglicanase) e b-1,4-
glicosidase (uma celobiase)15. As primeiras clivam celulose nativa ao acaso,
possibilitando a formação de cadeias menores de celotriose, celobiose e
glicose, enquanto que as segundas atuam nas extremidades não redutoras das
cadeias, separando moléculas de celobiose. Finalmente as glicosidases
hidrolisam celobiose a glicose.
Como o substrato é insolúvel em solução aquosa as enzimas terão que dirigir-se
à sua superfície onde, após adsorvidas, poderão reagir. Desta maneira, o
processo enzimático é heterogêneo, o que faz com que os efeitos difusionais
sejam tão importantes quanto os cinéticos15.
Em função destes fatos, dois fatores são fundamentais para a hidrólise
enzimática com celulases:
1. A natureza das enzimas
2. A natureza do substrato
Por outro lado, nas fibras de celulose coexistem regiões de alta cristalinidade
e regiões amorfas menos organizadas. Quanto maior for a proporção da forma
cristalina, maior a resistência ao ataque enzimático16. Deste modo, os sistemas
de pré-tratamento, além de permitir a deslignificação do material, podem
diminuir a cristalinidade da celulose, podendo ser fundamentais para o decorrer
do ataque enzimático subsequente.
Embora a luz ultravioleta apresente baixa capacidade para penetrar em materiais
celulósicos (aproximadamente 75 mm), a sua capacidade para promover a oxidação
de lignina é bem conhecida17. Entre os vários grupos funcionais característicos
da lignina (grupos fenólicos, duplas ligações e grupos carbonila), as
carbonilas conjugadas ao anel aromático parecem ser os cromóforos mais efetivos
para dar início ao processo de fotodegradação.
O pré-tratamento que utiliza peróxido de hidrogênio em meio básico deve seu
poder oxidante ao altamente reativo radical hidroxila18, gerado na reação do
peróxido de hidrogênio com o ânion hidroperóxido (eq. 1):
H2O2 + HOO- HO* + O2*- + H2O (1)
A reação acima é dependente do pH do meio, em função do ânion hidroperóxido ser
formado na dissociação do peróxido de hidrogênio (eq. 2):
H2O2 <formula/>HOO-+ H+ (2)
A utilização de processos de pré-tratamento com ozônio é bastante freqüente na
indústria de papel e celulose, principalmente em função do seu elevado poder
branqueador e da sua natureza não-poluente. O mecanismo de degradação de
lignina não está totalmente esclarecido. Sabe-se, entretanto, que reações de
hidroxilação19, quebra oxidativa de grupos metoxila20 e abertura de anel21, são
freqüentes na reação entre ozônio e compostos modelo de lignina.
Processos de deslignificação utilizando-se clorito de sódio estão baseados na
reação entre lignina e ClO2, ClO-, produtos estes formados em reações redox de
ClO2- em meio ácido (eq. 3):
8 ClO2- + 6 H+<formula/> 6 ClO2 + ClO- + Cl- + 3 H2O (3)
As reações entre lignina e ClO2 são exclusivamente oxidativas, levando à
formação de derivados do ácido mucônico e quinona.
Em função das características acima comentadas, cada processo de pré-tratamento
proposto apresenta características que podem ser exploradas na deslignificação
da casca de arroz, de maneira a favorecer posteriores etapas de hidrólise
enzimática. Na tabela_1 apresentam-se os resultados que ilustram o efeito de
cada processo de pré-tratamento na composição química básica da casca de arroz.
Observa-se, a partir destes resultados, que o tratamento mais eficiente para a
redução do teor de lignina está representado pela utilização de clorito de
sódio (redução de aproximadamente 45%). A redução observada para os outros
processos foi pouco significativa e bastante próxima do erro experimental para
esta determinação. É interessante salientar o importante acréscimo
experimentado pela concentração de celulose (aproximadamente 39%), quando o
tratamento é realizado com peróxido de hidrogênio. Tal resultado indicaria que
significativas quantidades de hemicelulose estão sendo transformadas e/ou
eliminadas do sistema, o que é bastante conveniente já que permite um aumento
da quantidade relativa do substrato de interesse. Pelo fato do teor de
hemicelulose ser obtido por diferença, é bastante difícil elaborar alguma
explicação para a sua decomposição.
A quimiluminiscência é uma técnica que apresenta bastante utilidade no
esclarecimento de modificações estruturais em biomoléculas, podendo ser usada,
portanto, na verificação das mudanças estruturais sofridas pelo material após
aplicação dos diversos processos de pré-tratamento. A lignina, quando em
solução neutra, não é quimiluminiscente, mas apresenta importante emissão
quando em meio básico. As espécies responsáveis pela quimiluminiscência parecem
ser oxigênio singlete e carbonilas excitadas, espécies que têm sido detectadas
em espectros de emissão de compostos modelo22 (ex: vanilina, ácido vanílico,
etc.). Os resultados apresentados na figura_1, obtidos por irradiação da casca
de arroz em l ³300 nm, mostram uma emissão significativamente maior para o
material submetido a tratamento com clorito de sódio. Este resultado, que
sugere uma modificação mais importante na estrutura da lignina, é plenamente
coincidente com a importante redução do teor de lignina comentada
anteriormente.
Os resultados obtidos na hidrólise enzimática da casca de arroz, utilizando-se
celulase comercial, são apresentados na tabela_2. Observa-se claramente que,
diferentemente do esperado, a maior produção de glicose é obtida quando se
utiliza um tratamento prévio com ozônio. O tratamento com clorito de sódio,
embora provoque as mudanças mais significativas com relação à lignina, mostra-
se prejudicial à hidrólise, talvez devido à obtenção de substratos que inibam
parcialmente as celulases. O processo enzimático envolvendo celulases é
bastante complexo, podendo ser inibido por vários produtos solúveis originados
na própria reação enzimática. Celobiose e glicose, por exemplo, tem sido
identificados como inibidores do complexo celulase, enquanto que b-glicosidase
pode também ser inibida pelo seu substrato, celobiose15. Por outro lado,
existem fortes evidências sobre a significativa redução da atividade da b-1,4-
glicosidase, e inclusive de todo o complexo celulase, quando grupos carbonilas
são introduzidos e lactonizados na molécula de substrato23. Em função destes
antecedentes, da complexidade do substrato e da grande variedade de compostos
que podem surgir do pré-tratamento e da posterior reação enzimática, resulta
bastante difícil o esclarecimento dos motivos que levam a resultados como os
citados anteriormente.
Finalmente, para verificar o efeito físico dos diversos tipos de pré-
tratamento, realizaram-se micrografias eletrônicas, algumas das quais são
apresentadas nas figuras_2 a 6. Na figura_2, correspondente a casca de arroz
sem tratamento prévio, é possível observar a epiderme externa bem conservada,
com estruturas celulares revestidas de sílica. Na figura_3, é possível observar
a epiderme externa levemente atingida pelo tratamento com irradiação. Nas
figuras_4 e 5, obtidas após tratamento com ozônio e com peróxido de hidrogênio
em meio básico, respectivamente, observa-se a epiderme externa bem organizada,
mas com fissuras entre as filas celulares. Finalmente, na figura_6,
correspondente ao tratamento com clorito de sódio, observa-se a epiderme
externa fissurada. De um modo geral é possível observar que, do ponto de vista
morfológico, os processos de pré-tratamento parecem afetar igualmente e de
maneira branda a casca de arroz. O tratamento não chega a atingir a organização
celular, principalmente aquelas camadas que possuem células reforçadas por
sílica. Convém salientar, no entanto, que uma interpretação inequívoca do
material fotográfico é bastante difícil, em função da heterogeneidade do
material estudado.
![](/img/fbpe/qn/v21n2/3445f2.jpg)
[/img/fbpe/qn/v21n2/3445f3.jpg]
[/img/fbpe/qn/v21n2/3445f4.jpg]
[/img/fbpe/qn/v21n2/3445f5.jpg]
[/img/fbpe/qn/v21n2/3445f6.jpg]
CONCLUSÕES
Em função dos resultados apresentados, pode-se concluir que o tratamento com
clorito de sódio apresenta a maior eficiência na deslignificação da casca de
arroz, observação que é também sugerida pelos estudos de quimiluminiscência. O
posterior processo de hidrólise enzimática, no entanto, não é favorecido pelas
mudanças provocadas por este pré-tratamento, provavelmente devido à formação de
substratos menos susceptíveis à ação enzimática. O maior rendimento da
hidrólise enzimática foi conseguido com o pré-tratamento com ozônio, enquanto
que o tratamento com peróxido de hidrogênio possibilitou um significativo
enriquecimento do teor de celulose. Os estudos de micrografia eletrônica
parecem indicar que os pré-tratamentos propostos não conseguem atingir a
organização celular da casca de arroz. Saliente-se finalmente que o processo
enzimático leva a obtenção de açúcares fermentáveis, que podem ser utilizados
na produção de etanol, o que eleva o valor agregado do material em estudo.
Embora análises da relação custo-benefício não tenham sido realizadas, a
transformação de um resíduo agrícola num material que pode ser utilizado como
insumo na produção de combustível parece, numa primeira análise, bastante
conveniente.