Utilização do resíduo líquido de indústria de processamento de suco de laranja
como meio de cultura de Penicillium citrinum: depuração biológica do resíduo e
produção de enzima
INTRODUÇÃO
Um dos principais problemas enfrentados pelas indústrias processadoras de suco
de laranja é o grande volume de resíduos sólidos e líquidos, produzidos
diariamente. Os sólidos, constituídos pelas cascas, sementes e polpas são, na
grande maioria dos casos, transformados em "pellets", os quais podem
ser utilizados como componente de ração animal. Dentre os despejos líquidos, a
"água amarela", formada por proteínas, óleos essenciais, pectinas,
açúcares, ácidos orgânicos e sais, é aquela que mais preocupa, pelos seus altos
índices de matéria orgânica, o que a torna um agente de alto potencial
poluidor.
Na busca de soluções alternativas para o problema do descarte dos resíduos,
muitas indústrias têm optado pelo uso de microrganismos como agentes redutores
de matéria orgânica desses materiais ou para a eliminação ou redução de
compostos tóxicos1,2,3.
Os fungos, em função de suas características de reprodução e crescimento,
adaptam-se a uma grande variedade de substratos, entre eles, efluentes de
indústrias processadoras de alimentos, resíduos agrícolas e agro-industriais e
resíduos derivados de petróleo4,5,6,7,8,9. Ao se desenvolverem nesses meios os
microrganismos consomem a matéria orgânica dos mesmos, promovendo a redução de
sua capacidade poluidora. Este fato é constatado pela acentuada redução da DQO
(Demanda Química de Oxigênio) e da DBO (Demanda Bioquímica de Oxigênio)10,11.
Fungos filamentosos de diversos gênerospromoveram a redução de 70 a 80% da DQO
inicial de substratos como água de café, vinhaça, resíduos de banana e lodo de
filtro de usina de açucar12,13.
O uso do crescimento microbiano para a redução do poder poluidor de resíduos
permite ao mesmo tempo a bioconversão do substrato residual em biomassa
microbiana, a qual tem servido para a extração de proteínas, lipídeos, ácidos
nucleicos, ou mesmo para uso direto em ração animal14,15, além do
aproveitamento de compostos como ácidos orgânicos, vitaminas e enzimas,
excretados pelo microrganismo durante seu crescimento16,17,18.
Resíduos de agro-indústrias como as processadoras de sucos cítricos têm sido
utilizados como substrato para a produção de pectinases
fúngicas19,20,21,22,23,24, metano24e para adsorção de corantes residuais25.
Neste trabalho foram avaliadas as possibilidades de utilização do resíduo
líquido da indústria de beneficiamento de suco de laranja, conhecido como
"água amarela", como componente do meio de cultura para o crescimento
de Penicillium citrinum,visando a associação entre a redução da DQO e a
produção de uma ribonuclese, a RNase P1. Esta enzima ultra excretada por P.
citrinum tem sido explorada comercialmente no Japão para a obtenção de
nucleotídeos de sabor (5´-GMP e 5´-IMP) os quais são obtidos em milhares de
toneladas/ano e comercializados em paises asiáticos, europeus e recentemente na
América, adicionados a condimentos e alimentos pré-preparados26,27,28. Foram
realizados variados testes com diferentes espécies fúngicas, constatando-se boa
adaptação do P. citrinum ao resíduo estudado, além da produção da enzima em
quantidades consideráveis e à redução da DQO do resíduo. Testes empregando água
amarela, suplementada com nutrientes minerais, indicaram uma influência
positiva no crescimento fúngico, na produção de enzimas e na redução da DQO.
MATERIAL E MÉTODOS
O microrganismo utilizado, Penicillium citrinum(IZ:1501), foi fornecido pelo
Departamento de Tecnologia Rural, ESALQ/USP (Piracicaba). O RNA de Candida
utilis foi extraído e fornecido pela Companhia Agroindustrial Ometto
(Iracemápolis -SP). O resíduo líquido (água amarela) foi fornecido pela
Citrovita Ind. S/A (Catanduva-SP). O adubo mineral, contendo os elementos
Nitrogênio, Fósforo e Potássio, NPK (19:10:19-Manah) e a farinha de soja
(Macrobrasil) foram adquiridos no comércio. Os componentes do meio de cultura
foram adquiridos da Oxoid e os demais reagentes da Sigma e Merck.
Meios de cultura
Foram utilizados 100 mL dos seguintes meios de cultura:
Meio 1- Semi-sintético, composto por (p/v) 5 % de glicose, 0,5% de peptona,
0,2% de KNO3, 0,4% de CaCl2, 0,4% de MgSO4 e 1 mL de solução de micronutrientes
(5% de ZnSO4. 7H2O, 1% de Fe(NH4)2(SO4)2 .6 H2O, 0,25% de CuSO4.5 H2O, 0,05% de
MnSO4 .1 H2O, 0,05% de H3BO3 e 0,05% de NaMoO4).
Meio 2 - Água amarela
Meio 3 - Água amarela suplementada com 0,2% de KNO3, 0,4% de CaCl2, 0,4% de
MgSO4 e 1 mL de solução de micronutrientes.
Meio 4 - Meio 3 sem adição de KNO3 .
Meio 5 - Meio 3 sem a solução de micronutrientes.
Cultivo do Microrganismo
Uma suspensão equivalente a 107 esporos foi transferida para 50 mL do meio 1,
em frasco Erlenmeyer, o qual foi mantido sob agitação (250 rpm) por 24 horas.
Parte desse material (5 mL) foi utilizado para inocular 100 mL de cada meio
descrito anteriormente, contido em frascos Erlenmeyer. A incubação ocorreu por
períodos de 24 a 120 horas, sob agitação, a 28oC.
Medida da atividade enzimática
A atividade ribonucleolítica foi avaliada em mistura contendo 1 mL de tampão
acetato 0,25M pH 5,0, 0,2 mL de solução enzimática (meio de cultura livre da
biomassa) e 0,3 mL de solução de RNA, à temperatura de 65oC. Após 30 minutos, a
reação foi interrompida por resfriamento em banho de gelo e o RNA não
hidrolisado foi precipitado com a adição de etanol a 0oC. Após centrifugação,
foi determinado o valor da absorbância do sobrenadante a 260 nm para a
determinação da quantidade de nucleotídeos liberada, de acordo com o método
proposto por FUJIMOTO et al.26. Uma unidade de enzima foi definida como a
quantidade que libera 1 mmol de nucleotídeos por minuto, nas condições do
ensaio. Foi utilizado o coeficiente de extinção molar de 10.600.
Procedimentos analíticos
Após o período de crescimento, a suspensão foi filtrada a vácuo em papel
Whatman no 1 e a massa micelial foi mantida a 105oC por 24 horas para a
determinação do peso seco. A Demanda Química de Oxigênio (DQO) foi determinada
através de método colorimétrico29. Os açúcares redutores totais (ART) foram
dosados pelo método do ácido 3,5 dinitro-salicilico30.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
1. Crescimento de Penicillium citrinum em meio contendo água amarela
Na figura_1 estão representados os dados da produção de biomassa e da atividade
enzimática, além da variação dos valores da DQO da água amarela, durante o
período de crescimento do Penicillium citrinum.
A quantidade máxima de biomassa, produzida nos meios contendo água amarela
(meios 2 e 3), foi praticamente a metade daquela obtida em meio semi-sintético
(meio 1), embora o microrganismo tenha atingido o crescimento máximo entre 96 e
120 horas de cultivo, em todos os meios. Por outro lado, a produção de
ribonuclease, nos meios de cultivo compostos pelo resíduo e suplementados com
nutrientes minerais (Fig._1b), foi maior quando comparada ao meio semi-
sintético (Fig._1a), descrito em literatura como ótimo para a produção de
ribonuclease31. Este fato sugere a existência de certos componentes no resíduo
que estimularam a produção e liberação da enzima.
A redução da DQO do meio de cultura contendo água amarela, a qual manteve-se em
torno de 16500 mg/L no início do tratamento, atingiu 45% em 96 horas, quando
houve a suplementação com macro (N, P, Mg, K) e micronutrientes (Zn, Mo, Mn,
Fe, Bo). Na ausência dos suplementos minerais (meio 2) a redução foi de apenas
35% (Fig._1). Os demais meios testados (meios 4 e 5) apresentaram resultados
semelhantes ao meio 3 (suplementado) indicando que apenas os macronutrientes
influenciaram no crescimento fúngico e na produção da enzima. A falta desses
nutrientes provocaria, provavelmente, o desbalanceando da relação C:N:P,
necessária ao desenvolvimento microbiano. Vários trabalhos têm demonstrado que
a suplementação de Nitrogênio e Fósforo inorgânicos pode aumentar a produção de
biomassa e de proteínas microbianas em meios de cultivo compostos por resíduos
agro-industriais32, 33 .
2. Efeito da fonte de Nitrogênio sobre o crescimento fúngico
A tabela_1 mostra que a adição de Nitrogênio levou a um aumento da produção de
biomassa e de ribonuclease, assim como à redução da DQO do resíduo. As fontes
de nitrogênio que proporcionaram os melhores resultados foram o adubo
inorgânico NPK e farinha de soja. Entretanto, a produção de ribonuclease foi
cerca de 4 vezes superior quando a fonte de nutrientes foi a farinha de soja.
Esta última foi, portanto, a fonte de nitrogênio escolhida para suplementar os
meios nos ensaios posteriores.
3. Efeito da temperatura e pH de cultivo sobre o crescimento fúngico
Em meio residual contendo apenas farinha de soja, o maior crescimento
microbiano foi obtido quando o pH inicial do meio foi 6,0, enquanto que a maior
produção da ribonuclese deu-se em pH 4,0 e 5,0 (Fig._2). Esses resultados
corroboram os citados em literatura34, nos quais a neutralização do meio de
cultura (pH 6,0 e 7,0) reduz a estabilidade da ribonuclease deP. citrinum.
Embora a produção de ribonuclease tenha sido 20% maior em pH 5,0 pode-se
considerar que o cultivo do fungo em pH 6,0 torna-se mais interessante, visto
que, nesse pH, a redução da DQO chegou a 55% contra 30% obtida em pH 5,0.
A temperatura de incubação que proporcionou maior produção de biomassa foi 27oC
(Fig._3). Entretanto, não foram constatadas diferenças significativas com
relação à redução da DQO, a qual ficou em torno de 55% nas temperaturas de
cultivo estudadas. Uma possível explicação para este fato seria a eliminação da
matéria orgânica em forma de CO2 ou como outros compostos voláteis em
temperatura acima de 30oC, os quais não passariam a fazer parte da biossíntese
de massa celular35. Cabe destacar porém, que a DQO pode ser diminuída não
somente pela utilização da matéria orgânica para crescimento e manutenção da
biomassa microbiana, mas também pelo processo de adsorção de componentes do
resíduo à superfície da célula36,37.
A redução na produção da enzima em função da temperatura não foi proporcional à
redução da produção de biomassa, a qual foi a mesma em temperaturas de 30 e
35oC. Estudos com bactérias demonstraram que a variação da temperatura de
cultivo leva também a uma modificação no tipo de enzima despolimerizante
liberada, em decorrência de modificações no sistema de transporte dos indutores
das mesmas38.
O crescimento de Penicillium citrinum, determinado pela variação da massa
micelial, ficou abaixo do valor esperado (8 mg/mL), tomando-se como referência
o meio semi-sintético, mesmo após as otimizações feitas. Este resultado deve-
se, provavelmente, à complexidade do resíduo estudado, o qual contém polímeros
não prontamente disponíveis ao fungo. Os resíduos agro-industriais, entre eles
o resíduo de indústrias processadoras de sucos, contêm apreciáveis quantidades
de celulose, hemicelulose e pectina, os quais, sendo componentes da parede
vegetal, são arrastados pelo esmagamento da polpa20.
O valor do ART, determinado no resíduo, ficou ao redor de 2 mg/mL, aumentando
cerca de 120% após 24 horas do início do crescimento do fungo. Este dado sugere
a ação de enzimas líticas produzidas pelo microrganismo durante a fase de
adaptação ao meio (lag fase), as quais atuariam sobre os polímeros de açúcar
presentes no mesmo.
O uso da água amarela para cultivo de P. citrinum mostrou-se viável tanto para
a produção de ribonuclease quanto para a redução da matéria orgânica da mesma.
O valor de DQO do resíduo inicial foi reduzido em 55%, ficando em torno de
9.000 mg O2/ L, o que ainda não permite o seu descarte direto na natureza, mas
facilita o tratamento biológico em lagoas de depuração.
Deve ser considerado no entanto, a necessidade do monitoramento da produção da
toxina citrinina durante o crescimento do fungo. Vários trabalhos têm indicado
a presença dessa toxina em determinadas condições de cultivo39,40, 41. Por
outro lado, tem sido demonstrado ser possível a inibição da síntese da mesma
variando-se a composição do meio de cultura42,43. Este aspecto necessita ser
melhor investigado.