Doença de Crohn isolada do apêndice cecal como causa de enterorragia
RELATO DE CASO CASE REPORTINTRODUÇÃO
A doença de Crohn isolada do apêndice cecal (DCIA), também denominada
apendicite granulomatosa, é doença incomum, tendo sido descritos, desde o
trabalho pioneiro de MEYERDING e BELTRAM(7) em 1953 até o momento, pouco menos
de duas centenas de casos. Incide em 0,2% a 0,6% de todos os apêndices
ressecados(8, 9).
A DCIA atinge jovens, principalmente nas décadas de 20 a 30 anos, havendo certa
predominância do sexo masculino. Tem como característica o quadro
anatomopatológico semelhante ao da doença de Crohn (DC) típica. Além disso,
estando localizada apenas no apêndice cecal, cura-se possivelmente pela
apendicectomia e, na maioria das vezes, não progride para outras partes do
trato digestivo.
Pela oportunidade que se teve de acompanhar o caso de um adolescente com esta
afecção, as dificuldades diagnósticas e as dúvidas quanto a sua real ligação
com a DC estimularam a sua apresentação.
RELATO DO CASO
FCB, sexo masculino, 16 anos de idade. Em dezembro de 1999, aos 15 anos de
idade, apresentou enterorragia, sem repercussão hemodinâmica, que cessou
espontaneamente. Nessa ocasião, foi submetido a vários exames entre os quais
colonoscopia, trânsito intestinal e cintilografia do abdome com tecnécio
marcado. Com exceção da colonoscopia que identificou lesões no íleo terminal e
cujo exame anatomopatológico mostrou tratar-se de hiperplasia linfóide
folicular, os demais nada revelaram de anormal. Passou bem, sem queixas
digestivas até dezembro de 2000, quando apresentou nova enterorragia, também
sem repercussão hemodinâmica. Nessa ocasião foi examinado, não apresentando
outros sintomas; no exame do abdome não havia visceromegalia ou tumor palpável.
Submetido a colonoscopia, o íleo foi visualizado até cerca de 15 cm da válvula
ileocecal, apresentando mucosa normal e peristaltismo presente. O ceco tinha
morfologia e distensibilidade conservadas, apresentando, no ponto do óstio
apendicular, lesão irregular, friável, com áreas deprimidas e outras elevadas,
notando-se aí coágulo fixo, compatível com sangramento recente (Figura_1). Os
demais segmentos colônicos se mostravam normais. O exame anatomopatológico das
biopsias mostrou tratar-se de processo inflamatório crônico exsudativo intenso
e ulcerado, em mucosa do tipo colônico.
![](/img/revistas/ag/v41n1/a12f01.jpg)
Indicada a cirurgia, realizou-se, inicialmente, uma incisão tipo McBurney. O
apêndice cecal que se encontrava bloqueado pelo omento, foi exteriorizado com
manobras digitais (Figura_2). Mostrava-se espessado e sua serosa era lisa e
brilhante, tendo aderências tipo inflamatórias com o omento. Sua base era
endurecida, aspecto este que se propagava circunferencialmente na parede do
ceco, numa extensão de 0,5 a 1 cm. Para possibilitar exploração mais adequada
das alças intestinais, decidiu-se por realizar laparotomia mediana infra-
umbilical. A exploração do intestino delgado e do restante da cavidade
peritonial nada demonstrou de anormal. Após conhecer o laudo do exame
histopatológico por congelação de fragmento do apêndice, decidiu-se pela sua
exérese. Devido ao endurecimento da parede cecal junto ao apêndice, esta foi
parcialmente (cerca de 1 cm) ressecada e fechada em dois planos de sutura
contínua com fio atraumático de polipropileno 5-0.
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O exame histopatológico da peça cirúrgica por congelação mostrou, na parede
apendicular, a existência de processo inflamatório crônico linfo-
histioplasmocitário e ausência de processo neoplásico.
Os cortes histológicos, após inclusão da peça em parafina, constando do
apêndice cecal, do omento a ele aderido e da porção do ceco ressecada,
confirmaram os achados da congelação, demonstrando que o processo inflamatório
era entremeado por granulomas frouxos. Na base do apêndice havia o mesmo tipo
de infiltrado com granulomas, bem como a presença de ulceração da mucosa. O
fragmento identificado como parede cecal mostrava intenso processo inflamatório
crônico linfo-histioplasmocitário. Um linfonodo retirado do mesoíleo mostrava
linfadenite granulomatosa. O diagnóstico final foi de DC do apêndice.
A evolução pós-operatória decorreu sem incidentes. O paciente vem sendo
acompanhado em ambulatório. Em julho de 2002 (19 meses após a cirurgia), foi
submetido a nova colonoscopia que mostrou íleo, cólon e reto normais.
Clinicamente não apresenta queixas digestivas.
DISCUSSÃO
A maioria das casuísticas da DCIA não ultrapassa uma dezena de pacientes, sendo
bastante freqüente o relato de casos (em geral um a dois) isolados(8, 9).
Apesar do pequeno número de casos publicados, o interesse que desperta deriva
da semelhança de seu quadro histopatológico com o da DC (daí o seu nome), mas
com características peculiares ' anatomopatológicas e clínico-evolutivas ' que
a diferenciam daquela doença. Sendo o apêndice cecal a única víscera afetada,
diferentemente do que ocorre com a DC típica, recebe a denominação de doença
isolada ou limitada ao apêndice.
Macroscopicamente, o apêndice se apresenta aumentado de tamanho, com acentuado
espessamento da parede e com sinais inflamatórios. Estudos histológicos da DCIA
e de apêndices inflamados de pacientes com DC do intestino mostraram-se
comparáveis quanto à existência de granulomas epitelióides, infiltração focal
neutrofílica de criptas com abscesso, erosões de mucosa e ulceração, fissuras,
formação de fístulas, agregados linfóides transmurais e fibrose mural. A
diferenciação histopatológica entre estas duas entidades ficaria por conta da
incidência de granulomas de células epitelióides que seriam muito mais
numerosos na DCIA (7,19) do que no apêndice da DC (0,3)(5). Dado o elevado
número de granulomas, esta doença é também denominada de apendicite
granulomatosa. A diferenciação anatomopatológica entre a apendicite
granulomatosa e a apendicite da DC típica seria feita pelo granuloma. Naquela,
os granulomas estariam presentes em 98% dos casos e na DC típica em apenas 60%
(9). Contrariamente, HUANG e APPELMAN(6), revendo 20 casos de DCIA e
comparando-os com 16 apêndices com inflamação transmural de pacientes com DC
conhecida, verificaram que 11/20 pacientes com DCIA não tinham granulomas e que
nos demais havia 2 a 28 granulomas por corte histológico. Os pacientes com DC
conhecida nunca tinham mais do que 10,5 granulomas por corte. A ausência de
granulomas assinalada por esses autores, torna difícil aceitar, para os casos
de DCIA, a denominação de apendicite granulomatosa.
PRIETO-NIETO et al.(8) ainda questionam se a DCIA seria uma forma limitada da
DC ou entidade distinta denominada apendicite granulomatosa idiopática (AGI). A
distinção entre a DCIA e a AGI seria histopatológica, caracterizada pela
presença, nesta, de número elevado de granulomas, predominantemente na
submucosa, enquanto que naquela os granulomas estariam mais dispersos. Além
disso, na DCIA, estando presentes alterações inflamatórias agudas, pode haver
ausência de granulomas, enquanto que na AGI a presença de granulomas seria
indispensável. Estas diferenças levam os autores a admitir que seriam duas
entidades clínicas com histopatologia distinta.
No presente caso, tanto no apêndice como no óstio apendicular, os granulomas
eram numerosos, entremeando o processo inflamatório crônico linfo-
histioplasmocitário e, na mucosa, notava-se lesão ulcerada. Aceita-se para este
caso a denominação de DCIA, pois, dada a grande variabilidade conceitual entre
DCIA, apendicite granulomatosa ou AGI, acredita-se que o esclarecimento desta
questão somente será possível com estudos comparativos de grandes casuísticas.
O quadro clínico se caracteriza, mais freqüentemente, por dor no quadrante
inferior direito do abdome, anorexia, náuseas, febre e leucocitose simulando a
apendicite aguda. Chama a atenção, no entanto, o decurso protraído da
sintomatologia, em geral, entre 3 e 7 dias. A presença de massa palpável na
fossa ilíaca direita é outra manifestação clínica habitual(8, 9, 10). No
presente caso, embora à palpação não se percebesse a presença de tumor, o
apêndice estava não só aumentado de volume, mas também envolto pelo grande
omento (Figura_2).
O sangramento retal, como o apresentado pelo paciente desta casuística, é
manifestação rara nesta doença. Encontrou-se referência a dois outros casos em
que a enterorragia foi a manifestação dominante(3, 8), porém somente o presente
caso teve comprovação objetiva do sangramento através da colonoscopia. É de se
notar que a colonoscopia anterior, realizada após o primeiro episódio de
enterorragia, não conseguiu localizar a sua origem. No caso descrito por BROWN
e PETERS(3) a provável origem do sangramento digestivo foi uma pequena lesão
nodular protrusa na base do apêndice, muito semelhante à lesão que o paciente
deste relato apresentava.
Dadas as manifestações pouco características da DCIA, o diagnóstico pré-
operatório correto dificilmente é feito, sendo os casos rotulados, em geral,
como apendicite aguda ou abscesso apendicular. Neste caso, o ultra-som permite
demonstrar o apêndice aumentado de volume e edemaciado ou um abscesso
periapendicular, não havendo sinais característicos que permitam o diagnóstico
da DCIA.
Quando a manifestação é de enterorragia em paciente jovem, um dos diagnósticos
mais lembrados é o do divertículo de Meckel sangrante, razão pela qual o
paciente em estudo foi submetido a cintilografia com tecnécio marcado. Não é
infreqüente também, especialmente durante o ato operatório, suspeitar-se de
neoplasia, dado o volume aumentado da víscera(3, 4). No entanto, antes de se
proceder a operações mais extensas, impõe-se como foi feito no caso em estudo,
a realização do exame histopatológico de congelação que deverá ser confirmado,
posteriormente, após inclusão em parafina.
O diagnóstico de DCIA exige a exclusão de várias entidades. Entre as doenças
infecciosas que apresentam granulomas no apêndice, citam-se as provocadas pelo
bacilo da tuberculose, por fungos (blastomicose, actinomicose, histoplasmose) e
parasitas (esquistossomose). Estas afecções têm características
anatomopatológicas que permitem, com certa facilidade, identificá-las. Já a
infecção por Yersinia pseudotuberculosisé mais difícil de ser excluída, sendo
necessário cultura e testes sorológicos para seu diagnóstico(9).
A apendicectomia simples é o tratamento de escolha, apresentando mínima
morbidade. Nos casos em que a base do apêndice é larga e a infiltração atinge a
parede do ceco, recomenda-se a ressecção parcial do mesmo (cecectomia parcial),
como se procedeu no caso presente(9).
A diferenciação entre a DC típica e a DCIA fica por conta da evolução pós-
operatória, pois, nesta última afecção, a cura pela apendicectomia isolada é
quase a regra. A formação de fístula enterocutânea após apendicectomia é
raramente vista na DCIA, enquanto que ocorre entre 15% e 20% dos pacientes com
DC ileocecal.
Na DCIA são citadas recidivas da DC em outras localizações do sistema
digestório entre 3,5% e 6% dos casos(9), enquanto que na DC típica a recidiva
ocorre entre 34% e 58% dos casos(1, 10). Há, no entanto, inúmeros relatos de
casos de DCIA seguidos por vários anos, sem que se verifique recidiva da doença
(2, 9). Na casuística de 10 casos de PRIETO-NIETO et al.(8) submetidos a
apendicectomia, desenvolveu-se fístula enterocutânea em 1. Estes pacientes
foram seguidos, em média, 14,5 anos (2 a 25 anos) e em nenhum deles a DC se
desenvolveu em outras áreas do sistema digestório(8).
O paciente deste relato está sendo acompanhado em ambulatório, sem queixas
digestivas e sem evidências colonoscópicas da doença após 2 anos. Dada a
benignidade da afecção e convencidos da eficácia do tratamento, propôs-se
retornos anuais para exame clínico e a realização de colonoscopias anuais ou
bianuais durante 5 anos.