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BrBRCVHe0004-28032004000200010

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variedadeBr
ano2004
fonteScielo

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Aspectos genéticos e imunopatogênicos da doença celíaca: visão atual REVISÃOREVIEWINTRODUÇÃO A doença celíaca (DC) representa uma forte condição hereditária(32), constituindo-se numa enfermidade multifatorial, envolvendo tanto componentes genéticos, como ambientais na sua etiopatogenia(88). Cada fator genético de risco, separadamente, pode ser freqüente na população geral e é a combinação de alguns desses e suas interações com os fatores ambientais, que induzem à patologia intestinal(12).

Segundo CLOT e BABRON(12), a pesquisa de genes responsáveis pelas doenças de caráter multifatorial não é tarefa fácil, porém a identificação de genes de susceptibilidade é primordial no desenvolvimento de estratégias de detecção, diagnóstico e prevenção, para melhorar a qualidade de vida dos pacientes, com a introdução de uma dieta isenta de glúten.

De acordo com SOLLID(78), muitos genes predisponentes à DC ainda estão para ser identificados. A existência de verdadeiro espectro de estágios patológicos observados na DC é compatível com uma natureza poligênica, que diferentes genes de susceptibilidade podem contribuir nos diferentes estágios para o desenvolvimento final da doença. É possível que esses aspectos estejam diretamente envolvidos na diversidade de expressão da doença tanto entre indivíduos não relacionados, assim como dentro de uma mesma família. A heterogeneidade clínica, histológica e imunológica, além da concomitância ou não com outras doenças autoimunes, observada tanto nos pacientes como nos familiares de celíacos, reforçam tais observações e salientam a força da influência genética na doença(13).

Estudos de segregação em famílias têm sugerido importante predisposição genética à DC, caracterizada pela prevalência de 8% a 18% entre os familiares de primeiro grau(29, 38, 44, 73, 86), além da taxa de concordância variando de 70% a 100% entre gêmeos monozigóticos, comparado com 20% entre os gêmeos dizigóticos(12, 77). A diferente variação entre os familiares pode resultar não somente da heterogeneidade genética e ambiental entre as populações, como também do critério diagnóstico utilizado nos estudos. A concordância incompleta entre os pares de gêmeos monozigóticos sugere que fatores ambientais adicionais estejam envolvidos na patogênese da doença, além de que nem sempre todos os pares de irmãos estudados têm a monozigose comprovada. Em alguns, o seguimento ainda é insuficiente para se estar certo de que a doença não se desenvolverá em estágio mais tardio(29).

McDONALD et al.(50), baseados em estudos de famílias e utilizando biopsias de intestino delgado, foram os primeiros a sugerir uma herança autossômica dominante para a DC, com a participação de genes de penetrância incompleta.

Desde então, a busca de fatores genéticos de risco envolvidos na etiologia da DC tem sido constante e intensiva, marcando décadas de avanços e descobertas (18, 23, 42, 76).

PENA et al.(59), num estudo imunológico em famílias, propuseram que dois loci distintos, não associados, estariam envolvidos na etiologia da DC: um herdado de forma dominante e outro recessiva. Esses autores sugeriram que o locus dominante estava ligado ao HLA-DR3, enquanto aquele herdado recessivamente não estava ligado ao HLA. Esta proposta foi confirmada por alguns autores e contestada por outros(24, 25, 53), sendo esses aspectos controversos até os dias de hoje(29, 88). PENA e WIJMENGA(61) defendem o conceito de que o HLA-DQ atua como gene dominante e que um segundo locus, dentro do complexo principal de histocompatíbilidade (CPH), está também envolvido na predisposição às enteropatias por sensibilidade ao glúten nas populações dos países baixos.

Associação da DC com o sistema HLA A importante associação entre os antígenos HLA e a DC, bem como o papel destas moléculas como fator genético de susceptibilidade à doença, encontram-se bem estabelecidos(29, 77).

Dentre as doenças complexas, a DC é a que apresenta a mais forte associação com HLA, sendo que aproximadamente 90%-95% dos casos, em população caucasóide, estão associados com o HLA-DQ2 (alelos DQA1*0501 e DQB1*0201) e do restante, a maioria com o HLA-DQ8 (DQA1*0301 e DQB1*0302)(76). Entretanto, apesar da alta prevalência de HLA-DQ2 na população geral (25%-30%), sabe-se que apenas uma pequena proporção destes indivíduos desenvolve a DC(22, 44, 73, 77). Esse fato, aliado à diferença na taxa de concordância da doença entre gêmeos monozogóticos e aos resultados de estudos com pares de irmãos afetados, mostrando concordância de 30% a 50% entre irmãos HLA idênticos, torna os genes não associados ao HLA determinantes mais fortes de susceptibilidade à DC, do que aqueles ligados ao HLA(4, 12, 29, 47).

De acordo com HOULSTON e FORD(29) tais genes poderiam agir, teoricamente, de forma aditiva ou multiplicativa em conjunto com HLA. Entretanto, o risco familiar visto em irmãos de celíacos e em gêmeos monozigóticos é mais compatível com o modelo multiplicativo, que um modelo aditivo simples violaria a complexa relação matemática de risco relativo que existe entre irmãos, entre pais e filhos e entre gêmeos monozigóticos, demonstrada por RISCH (66). Os estudos de BEVAN et al.(4) falam também a favor de um modelo multiplicativo para a interação entre as duas classes de genes.

A primeira associação descrita entre DC e o sistema HLA foi com as moléculas de classe I, HLA-A1 e HLA-B8(80). Logo a seguir, foi descrita forte associação com a molécula de classe II, HLA-DR3(18), que passou a ser encontrada em todas as populações estudadas desde então(33, 46, 76). De acordo com ALPER et al.(2), a associação de DR3 com DC ocorre somente quando o alelo DR3 é encontrado no haplótipo B8-DR3 e não com B18-DR3. Um estudo com pacientes da Sardenha(14), em que predominou o haplótipo B18-DR3, contestou tais dados, ressaltando as diferenças genéticas entre as populações. Associações com DR7 também foram descritas em algumas populações, freqüentemente em heterozigose com DR3 ou DR5 (3, 53, 83).

Subseqüentemente, foi evidenciado que a associação mais forte entre HLA e DC era com o heterodímero HLA-DQ2, codificado pelos alelos DQB1*0201 e DQA1*0501, em associação com o haplótipo HLA-A1-B8-DR3(76, 82). Dentre as doenças complexas, esta é a associação mais forte que ocorre com HLA, sendo que 95% dos casos de DC em população caucasóide, estão ligados a HLA-DQ2(62, 76). Pacientes com DC que têm o alelo DR3 ou que são DR5/DR7 (heterozigotos) podem expressar a mesma molécula DQ (a1*0501, b1*0201). Os genes DQA1*0501 e DQB1*0201 estão localizados em cis (no mesmo cromossoma) em indivíduos DR3, e em trans (em cromossomas diferentes) nos indivíduos DR5/DR7(77).

A maioria dos demais pacientes (<5%) são carreadores do heterodímero DQ8 (DQA1*0301, DQB1*0302), associado à molécula DR4(76, 79).

Gradualmente os estudos de associação com DC deram ênfase à participação da molécula DR7 na susceptibilidade à doença(3, 83). O risco relativo mais alto para desenvolver DC é visto em indivíduos que têm o haplótipo DR7 em combinação com DR3(63). O haplótipo DR3/DR3 não confere risco tão alto como DR3/DR7. De acordo com KING e CICLITIRA(32), é possível que outro gene no haplótipo DR7 esteja influenciando a susceptibilidade à doença. LIE et al.(41) reforçam tais aspectos ao citar diversos estudos indicando que indivíduos HLA-DQ2 positivos, carreando tanto DR3/DR7, como DR5/DR7, têm alto risco de desenvolver DC. Esses autores, em estudo com pacientes celíacos da Noruega e Suécia, demonstraram que o alelo 3, do microsatélite D6S2223, dentro ou próximo ao complexo HLA, telomérico ao HLA-F, apresenta associação negativa com a DC, em pacientes homozigotos para o haplótipo DR3. O achado de novo gene, fora da região de classe II influenciando a susceptibilidade à DC, vem reforçar a explicação por que diferentes constelações de haplótipos que abrigam os alelos de susceptibilidade DQA1*0501 e DQB1*0201 conferem diferentes riscos à doença.

Sabe-se que a composição e a freqüência relativa dos vários haplótipos DR-DQ diferem nas diferentes populações.

Ainda neste contexto, LOPEZ-VAZQUEZ et al.(42), em estudo com 133 pacientes espanhóis, observaram aumento significativo do haplótipo DR7/DQ2 em pacientes que desenvolveram as formas típicas da DC em relação às atípicas (subclínicas, oligossintomáticas ou assintomáticas), assim como a presença do haplótipo HLA- B8, DR3, DQ2 significativamente associada às formas atípicas. Os genes MICA E MICB, da região de classe I do CPH, codificam proteínas HLA não-clássicas, expressas, principalmente, no enterócito, sob condições de estresse. Os mesmos autores mostraram a associação das formas atípicas da DC com o alelo MICA-A5.1 e sugerem que esse alelo confere efeito aditivo ao haplótipo DR3/DQ2, que pode modular o desenvolvimento da DC.

Tais dados representam a constatação de que muitos genes da região HLA ainda estão por ser identificados e que a busca de marcadores envolvidos na susceptibilidade e na patogenia da DC ainda não se esgotou.

Em países como o Japão, onde a DC é rara, a freqüência dos alelos DQB1*0201 e DQA1*0501 é baixa(29).

Por outro lado, as moléculas DR1, DR2 e DR6 têm demonstrado associação negativa com a DC em diversos estudos. Se isto é uma compensação para a freqüência aumentada de outras moléculas DR (DR3 e DR7) ou se realmente essas conferem efeito protetor, ainda não está esclarecido(53).

Na população brasileira, em estudo com pacientes da região sul, KOTZE e FERREIRA(35), detectaram o HLA-B8 em 71% dos pacientes celíacos, em comparação a 6% dos indivíduos normais da mesma área geográfica. SILVA et al.(75), em estudo com 25 pacientes celíacos de Ribeirão Preto, SP, demonstraram que os alelos HLA-DRB1*03, DRB1*07 e DQB1*02 conferem susceptibilidade à DC, enquanto o alelo DRB1*06 confere proteção contra o desenvolvimento da doença na população estudada.

A participação de outros genes HLA de classe II na susceptibilidade à DC é caracterizada pelo aumento da freqüência de alguns alelos raros de DP, como DPB1*0301, DPB1*0101 e DPB1*0402, que variam significativamente conforme a população estudada(8, 31). Embora alguns estudos sugiram que a associação dos alelos de DP em algumas populações, resultem apenas do desequilíbrio de ligação com DR3-DQ2(26, 31, 71), outros estudos com pacientes celíacos do norte e do sul da Europa, fornecem evidências contrárias, mostrando independência de desequilíbrio com DQ2(64).

Recentemente, estudos com pacientes italianos e da Tunísia, evidenciaram significativa associação da DC com a expressão do heterodímero de classe II, HLA-DR53, codificado pelo gene DRB4. A expressão desse gene está em forte desequilíbrio de ligação com os haplótipos DR4, DR7 e DR9, sendo que o risco genético é máximo para pacientes que carreiam ambos os heterodímeros DQ2 e DR53. Foi demonstrado também que as moléculas DR53 ligam-se seletivamente e com alta afinidade aos peptídios de a-gliadina, desempenhando, inclusive, papel na patogênese da doença(11). Entretanto, os dados de PARTANEN(58), mostram que os genes HLA-DRB4 não explicam a susceptibilidade genética à DC nos pacientes HLA- DQ2 negativos.

O Quadro_1 sumariza algumas das principais associações entre HLA e a DC citadas anteriormente.

Os genes de classe III do CPH Estudos recentes têm sugerido que além da forte influência dos genes do CPH de classe II, também os genes da região de classe III podem apresentar importante papel na susceptibilidade à DC. Entre os genes localizados nessa região encontra-se aquele que codifica o fator de necrose tumoral-a (TNF-a), citocina de atividade pró-inflamatória e imunomoduladora, com importante papel na patogênese das doenças imunes associadas ao CPH, tais como a DC. Embora alguns estudos iniciais mostrassem associação do polimorfismo de fator de necrose tumoral (TNF) com a DC, havia contradições quanto à dependência desta associação com HLA DQB1*0201(51, 52). Investigações mais recentes evidenciaram significativo aumento da freqüência do alelo TNF-308A (TNF-E), na DC, independente dos alelos DRB1*0301, DQA1*0501, DQB1*0201(15), o qual, possivelmente, está relacionado com a gravidade e características clínicas da doença(60).

Outros estudos(57) mostraram significativa diferença na freqüência dos dois alelos principais da proteína de choque térmico (HSP70-2) em pacientes celíacos, quando comparados com indivíduos normais e com os familiares não- celíacos. Essa associação, entretanto, pode ser resultado de forte ligação entre o alelo HSP70-2 (alelo L) e o haplótipo HLA B8-DR3.

Em relação ao polimorfismo das proteínas do sistema complemento, codificadas por genes da região de classe III do CPH (BF, C2, C4A e C4B), são raros os relatos de associação com a DC. Destacam-se, entre esses, os achados de ALPER et al.(2) demonstrando aumento na freqüência dos haplótipos [HLA-B8, DR3, BF*S, C2*C, C4A*Q0, C4B*1] e [HLA-B44, DR7, BF*F, C2*C, C4A*3, C4B*1] em pacientes celíacos caucasóides, bem como os resultados obtidos por MANNION et al.(46), com aumento do haplótipo [HLA-B8, DR3, DQW2, BF*S, C4A*Q0 e C4B*1] em pacientes irlandeses. Estudos com pacientes italianos caracterizaram aumento significativo na freqüência do alelo BF*F1, em relação à população normal, e associação de BF*F1 com Dw3 e de BF*F com Dw7(45).

Inúmeros estudos em famílias têm buscado avaliar a contribuição dos genes da região do CPH(4, 15, 53, 64) e não-CPH(23, 29, 88) para o risco familiar da DC.

Em relação ao polimorfismo de BF, apenas dois estudos de associação avaliam pacientes com DC e os respectivos familiares(2, 46), sendo que, especificamente na população brasileira, ainda não se conhece nenhum estudo de associação entre polimorfismo genético do complemento e DC.

PENA et al.(60) ressaltam que os genes de classe III do CPH codificam fatores que participam na modulação da resposta imune e que podem determinar a heterogeneidade clínica da DC. Esses autores sugerem que as variantes desses genes desempenham papel modulatório diferenciado no controle da inflamação e que a combinação desses com alelos de associação primária (HLA-DQ) podem determinar a evolução clínica da doença.

Associação com os genes não-HLA As diferenças nas taxas de concordância de DC entre gêmeos monozigóticos e entre irmãos HLA idênticos, aliadas à constatação de que apenas pequena proporção de indivíduos que têm a molécula HLA-DQ (a1*0501, b1*0201) apresentam a doença, deixam evidentes o envolvimento de genes não-HLA e dos fatores ambientais no desenvolvimento da DC(12, 73). Considerando que a DC tem sido atribuída a uma anormalidade na resposta imune mediada por células T, frente às proteínas do glúten, outros genes que também influenciam esta resposta poderiam, potencialmente, contribuir na susceptibilidade à DC. Dentre esses, podem-se incluir os genes de receptores de células T (TCR), os genes geradores de peptídios, que codificam moléculas envolvidas no processamento e transporte dos peptídios para os compartimentos HLA no interior da célula, além dos genes imunomoduladores, como aqueles que codificam moléculas de adesão celular, citocinas e receptores de citocinas(29, 77).

Alguns estudos de associação entre a DC e estes genes, tais como TCR(70), ou TAP1 e TAP2(17, 65), não caracterizaram associação ou, quando esta ocorreu, era secundária à associação primária com alelos de DR e DQ.

Outro potencial gene candidato é o CTLA-4 (gene associado ao linfócito T citotóxico) no cromossoma 2. Este codifica uma molécula de linfócito T, que fornece sinal negativo para ativação de célula T e que media apoptose da mesma.

Embora tenham sido encontradas associações positivas entre CTLA-4 e DC em estudos com populações francesas e escandinavas, resultados discordantes com pacientes da Itália e Tunísia sugerem diferenças na região CTLA-4 de uma população para outra tanto no aspecto de fator de risco, como na força de desequilíbrio de ligação(10, 12).

ALDERSLEY et al.(1) não evidenciaram associação entre o polimorfismo gênico da transglutaminase tecidual (tTG) e a DC.

Recentemente, as investigações sobre os genes não-HLA na susceptibilidade à DC têm ocorrido através de análises com famílias nucleares, envolvendo rastreamento de genoma. As evidências mais fortes de ligação com locus não-HLA e DC foram no cromossoma 6p23, distinto da região HLA(88), no cromossoma 15q26 (30) e nos cromossomas 5q e 11q(23, 56), em pacientes da Irlanda, Inglaterra, Itália e Escandinávia, respectivamente. Embora nesses estudos ocorra concordância de dados em relação a algumas reações mais fracas, as diferenças obtidas sugerem que o componente genético da DC é diferente nas diversas populações estudadas.

Verifica-se, entretanto, que apesar de estudos sucessivos de associação com polimorfismo genético e de rastreamento de genoma, utilizando-se pacientes e familiares de celíacos de diferentes grupos étnicos, exceto para a região HLA, não fator genético de risco com grande efeito na DC.

Imunopatogenia da doença celíaca Os conhecimentos da patogênese da DC tiveram grandes progressos nos últimos anos(73). Componentes humorais e celulares da resposta imunológica participam ativamente no processo de lesão da mucosa intestinal(20, 78).

É de particular relevância o infiltrado de células T na lâmina própria e no epitélio das vilosidades da mucosa intestinal de pacientes celíacos. Predominam os linfócitos intra-epiteliais citotóxicos (CD8+), com receptores TCR ab e sua contagem correlaciona-se com o grau de lesão da mucosa. Na lâmina própria inflamada predominam plasmócitos e linfócitos T CD4+ e CD8+, além de neutrófilos, mastócitos e eosinófilos. Evidências indicam que células T CD4+com receptores TCR ab, na lâmina própria, podem iniciar o processo de doença.

Embora não esteja totalmente esclarecida a participação das células TCR gd na patogênese da DC, estas estão aumentadas nos pacientes com doença ativa e em remissão, e nos familiares de primeiro grau(19, 36, 43, 77).

Em pacientes não-tratados, a presença de imunoglobulinas (IgA e IgM) na mucosa intestinal e de depósitos subepiteliais de complemento(27), assim como a secreção de citocinas pelos linfócitos intra-epiteliais, particularmente o interferon-g (IFN-g), induzindo maior expressão de moléculas HLA de classe II nas células epiteliais intestinais e nos macrófagos, vêm reforçar a participação da resposta imunológica na patogenia da DC(19, 28, 69).

Atualmente sabe-se que a gliadina inicia o dano na mucosa intestinal que envolve todo o processo imunológico em indivíduos geneticamente predipostos(16, 22). A constatação da existência de anticorpos (IgA) contra o endomísio como provável indicação de DC, sugeria que esses possuíam um ou mais antígenos alvos, com papel fundamental na patogenia da doença(67). DIETERICH et al.(16) identificaram a tTG como o principal auto-antígeno da DC. A tTG é uma enzima intracelular encontrada em diferentes tipos de células como fibroblastos, leucócitos, células endoteliais de vasos sangüíneos, células de músculo liso e de mucosas. Tem sido associada a várias doenças, incluindo distúrbios neuronais, câncer, infecção por HIV, doenças inflamatórias intestinais, diabetes mellitus, cirrose hepática, catarata e várias doenças autoimunes(55).

Na DC, a tTG tem sido detectada em todas as camadas da parede do intestino delgado, com predomínio de expressão na submucosa(34, 55,). Essa enzima catalisa a formação de pontes isopeptídicas entre resíduos de glutamina e lisina. Normalmente intracelular, a tTG é liberada das células durante a inflamação ou injúria e promove a ligação cruzada de certas proteínas da matriz extracelular, estabilizando, assim, o tecido conjuntivo(73).

Enzimas do lúmen intestinal digerem o glúten em peptídios que são expostos à tTG da mucosa. Esta modifica especificamente os peptídios do glúten através da desaminação de certos resíduos de glutamina, convertendo-os em moléculas de ácido glutâmico, carregadas negativamente. Esses resíduos, devido a sua carga negativa, ligam-se com maior eficiência às moléculas HLA-DQ2 ou HLA-DQ8 das células apresentadoras de antígenos (APC), e induzem intensa resposta proliferativa de clones de linfócitos T CD4+ gliadina-específicos(43, 55, 73).

Os linfócitos B podem ser preferencialmente estimulados porque também atuam como APC, expondo os peptídios de gliadina desaminados aos linfócitos T específicos(73).

Tanto os peptídios derivados da gliadina, como variantes da gliadina desaminados pela tTG ou complexos gliadina-tTG, são exibidos por APC através de moléculas HLA-DQ2 ou DQ8. A mucosa intestinal de pacientes com DC apresenta uma população de células T CD4+ que reconhecem, através do receptor TCR, tais complexos de peptídios ligados ao HLA, emitindo resposta do tipo Th1 e/ou do tipo Th2, com conseqüente secreção de citocinas(78). As citocinas da resposta Th1 (primariamente TNFa) induzem os fibroblastos intestinais à liberação das metaloproteinases da matriz (MMP-1 e MMP-3), que degradam o colágeno fibrilar (MMP-1), glicoproteínas da matriz extracelular e proteoglicanos (MMP-3). Em adição, a MMP-3 pode superativar a MMP-1, ambas exercendo papel central no processo de atrofia das vilosidades e hiperplasia das criptas. A resposta do tipo Th2 promove maturação e expansão de plasmócitos que produzem, então, anticorpos da classe IgA contra gliadina, tTG e contra complexos gliadina-tTG (72, 73).

De acordo com SCHUPPAN(73), a exposição precoce do sistema imunológico imaturo de crianças à gliadina é co-fator proeminente para o início da manifestação clínica da doença, provavelmente desviando o sistema imunológico em direção a uma resposta tipo Th1.

Os anticorpos específicos anti-tTG contribuem na patogênese da doença ao comprometerem a diferenciação do epitélio das vilosidades intestinais. Estudos in vitro mostram que esses anticorpos, ao se ligarem à tTG, inibem sua atuação na ativação do TGF-b (fator de transformação do crescimento b), fundamental para a diferenciação dos enterócitos(72).

Diferentes evidências têm demonstrado a importante participação do sistema complemento na lesão celíaca(27). De acordo com FERGUSON et al.(20), o dano gerado pela ativação do complemento, através dos complexos imunes, co-existe com a resposta imune celular em pacientes celíacos não-tratados e pode representar o principal fator responsável pelas alterações na lâmina própria, pela redução na altura dos enterócitos e pela desorganização das microvilosidades intestinais. Os antígenos envolvidos nestes complexos imunes incluem o glúten, outros alimentos e os auto-antígenos.

Os estudos de UNSWORTH et al.(85), reforçam as evidências da participação do complemento na patogenia da DC, ao demonstrarem que extratos do glúten do trigo e suas subfrações são potentes ativadores da via alternativa do sistema complemento. Esse fato corrobora as evidências do rápido aumento na permeabilidade da mucosa intestinal após exposição ao glúten e o intenso afluxo de diferentes células inflamatórias na lâmina própria(19), e será melhor caracterizado no item a seguir.

O sistema complemento na doença celíaca Diversos estudos têm demonstrado que a ativação do sistema complemento, em resposta ao glúten alimentar na mucosa intestinal, pode representar importante papel na imunopatogenia da DC(21, 27, 54, 85).

Em pacientes celíacos não-tratados, tem-se observado redução significativa nos níveis séricos dos componentes C3 e C4(5, 81), assim como de BF(46), além da presença de produtos de ativação de C3 e de BF, sugerindo a ativação da via alternativa(9, 81). Tais aspectos freqüentemente não são observados em pacientes sob dieta isenta de glúten.

Estudo de BRINCH et al.(7), avaliando o metabolismo de C3 em pacientes celíacos, sugere que o complemento é continuamente ativado na maioria dos pacientes não-tratados, possivelmente devido à formação de complexos imunes (CI) na mucosa intestinal.

A presença de CI circulantes em pacientes celíacos não-tratados tem sido observada por diferentes autores(5, 40, 54). De acordo com os estudos de MOHAMMED et al.(54), tais complexos, detectados em 100% dos pacientes com DC e com dermatite herpetiforme, representam conseqüência do dano tecidual e não uma causa primária. Os níveis diminuídos de C3 e C4 sugerem a ativação da via clássica e alternativa nessas doenças. Trabalho de LAVO et al.(40) demonstrou valores elevados de CI circulantes contendo C3, IgG e IgA nos pacientes com DC e dermatite herpetiforme, quando comparados com os controles.

Depósitos de complemento, IgM e IgA extracelular, na zona de membrana basal e na lâmina própria da mucosa jejunal, foram demonstrados em vários estudos, comparando pacientes tratados e não-tratados, embora tenham sido evidenciadas algumas discordâncias entre os autores com relação à classe de imunoglobulina envolvida(5, 27, 39, 74). SCOTT et al.(74) detectaram predominantemente IgA extracelular e C3 na zona de membrana basal e na lâmina própria da mucosa de pacientes celíacos não-tratados. Esses autores sugeriam, na ocasião, que reação local ao glúten ou a produtos desse, envolvendo IgA e complemento poderia, pelo menos parcialmente, ser responsável pelo dano progressivo da mucosa nos pacientes não-tratados, bem como pelo dano agudo conseqüente ao reteste em pacientes tratados. A detecção de IgM e IgG na zona de membrana basal e lâmina própria, observada por outros autores, sugere mecanismos similares, com ativação do complemento(5, 27, 39). A presença de IgG representaria resposta secundária aos auto-antígenos, subseqüente ao dano agudo causado pelo glúten, contribuindo na continuidade da lesão da mucosa, por ativação da via clássica do complemento.

Esses achados sugerem que, além da resposta imunológica celular, a DC pode representar modelo intestinal de doença por CI, na qual um antígeno derivado do glúten, passando através da mucosa, reage com anticorpos formados localmente no intestino, ativando o complemento e promovendo reação inflamatória local. Essa hipótese é compatível com o rápido aumento da permeabilidade da mucosa intestinal e com o intenso afluxo de diferentes células inflamatórias na lâmina própria, observada em pacientes celíacos não-tratados ou reexpostos ao glúten.

Corroborando esses fatos, estudos imunoistoquímicos de biopsias de intestino delgado de pacientes celíacos recém diagnosticados e não-tratados ou parcialmente tratados, mostram também depósitos subepiteliais do complexo terminal do complemento (MAC ou C5b-9), com intensidade de reação diretamente proporcional aos níveis de anticorpos séricos contra o glúten (IgG e IgM), ao número de células da mucosa produtoras de IgG e ao grau de atrofia das vilosidades. Depósitos similares não foram observados em pacientes tratados com sucesso e no grupo-controle. No reteste com glúten, observou-se aumento dos depósitos de C5b-9 subepiteliais, além de deposição de C3b, sugerindo ativação recente do complemento(27). Previamente, GALLAGHER et al.(21) também detectaram quantidade aumentada de C3 na lâmina própria de biopsias de pacientes não- tratados e depósitos de C5b-9 apenas nas glândulas de Brünner, na submucosa intestinal.

Em pacientes com mucosa normal após dieta isenta de glúten, foram observadas anormalidades histopatológicas 4 a 8 horas após a reintrodução do glúten(5), com aumento de IgA e IgM extracelular na lâmina própria e nas células epiteliais, além de depósitos de C3 em algumas biopsias(39). Além disso, outros autores detectaram também diminuição significativa nos níveis séricos de C1 e BF após 4 horas da administração do glúten em crianças celíacas tratadas(6).

A ocorrência da DC em pacientes com hipogamaglobulinemia(87) sugere relevante papel para uma via de ativação do complemento além da clássica, no processo da doença. Os achados preliminares de MASSEY et al.(49), de que frações do glúten ativam a via alternativa do complemento quando adicionados ao soro humano normal, foram subseqüentemente confirmados por UNSWORTH et al.(85). Esses autores demonstraram que subfrações do glúten do trigo são ativadores tão potentes da via alternativa, quanto partículas de zymosan. Os resultados obtidos foram os mesmos tanto quando se usou soro humano normal, soro de pacientes com DC, com dermatite herpetiforme ou com hipogamaglobulinemia, como fontes de complemento. Em estudos anteriores, UNSWORTH et al.(84), mostraram que as proteínas do trigo (gliadinas) ligam-se seletivamente à reticulina (endomísio) em biopsias humanas. Os autores propõem, baseados em achados recentes, que os peptídios de glúten, uma vez ligados à reticulina intestinal, ativam o complemento, causando lesão tecidual local com auto-sensibilização da reticulina e seqüencial reação mediada por células T(85). A ativação do complemento por este mecanismo seria rápida e representa explicação plausível para a resposta clínica imediata observada 3 horas após a reintrodução do glúten (reteste) em pacientes celíacos tratados, inclusive no aspecto de infusão na mucosa retal(37, 48).

Corroboram esses dados os níveis significativamente diminuídos de BF, encontrados por MANNION et al.(46) nos pacientes, em relação a controles sadios, reforçando o papel da ativação da via alternativa na lesão da mucosa intestinal. Segundo esses autores, os níveis diminuídos de C3, C4 e BF encontrados podem indicar ativação progressiva do complemento em pacientes celíacos.

A associação da DC com o alelo nulo C4A*Q0(68), a maior freqüência do haplótipo HLA-B8, DR3, BF*S, C4A*Q0, C4B*1(2, 46) e níveis significativamente diminuídos de C4(46) vêm sugerir, ainda, prejuízo na remoção dos complexos imunes nos pacientes celíacos não-tratados, reforçando o papel do complemento na patogenia da DC(40, 54).

CONSIDERAÇÕES FINAIS Os recentes avanços nos aspectos genéticos e na imunopatogenia da DC têm levado à significativas mudanças na compreensão da mesma em termos de expressão da doença e definição de pacientes de risco, diagnóstico e triagem.

Dado o papel inquestionável da gliadina em conduzir à inflamação e autoimunidade na DC, essa serve como modelo de doença com características autoimunes, para a qual o gatilho (gliadina), a associação genética (HLA-DQ2 ou HLA-DQ8) e a resposta humoral autoimune específica (auto-anticorpos anti-tTG) são conhecidos(73).

Vários aspectos anteriormente colocados corroboram a característica poligênica da DC e destacam a diversidade de marcadores encontrados nas populações oriundas de diferentes áreas geográficas, bem como a variabilidade no efeito dos mesmos, algumas vezes conferindo maior resistência à doença ou até mesmo uma forma menos grave.

ALPER et al.(2) ao caracterizarem os dois haplótipos de maior associação com a DC em pacientes caucasóides, sugeriram que o HLA-DR3 ou DR7 por si não eram genes de susceptibilidade à DC e sim marcadores para tais genes em haplótipos estendidos. Quinze anos depois, LOPEZ-VAZQUEZ et al.(42) ainda afirmam que outros genes, em adição aos haplótipos de classe II codificados por DQA1*0501/ DQB1*0201 e presentes no haplótipo HLA-B8, DR3, DQ2 e/ou HLA-DR7/DQ2, podem contribuir na predisposição genética à DC e explicar as associações observadas nas diferentes populações.

Possivelmente, somente através de estudos colaborativos internacionais será possível caracterizar, de maneira ampla, se dentre os dois haplótipos de maior associação com a DC, aqueles compostos pelo HLA-B8, DR-3, DQ2, BF*S em adição ao alelo 3 (D6S2223) e MICA-A5.1, independente da população estudada, estariam efetivamente associados às formas não-típicas da doença (assintomáticas, monossintomáticas), e aqueles compostos pelo HLA-B44, DR7, DQ2, BF*F às formas típicas ou clássicas da DC. Caberia, ainda, esclarecer o papel da homozigose (HLA-B8, DR3, BF S) e da heterozigose (HLA DR3-DR7, DR5-DR7, BF SF) como fatores determinantes ou não para o desenvolvimento de uma ou outra forma de expressão da doença, respectivamente. Essa seria, possivelmente, a maior contribuição dos avanços da análise genética para os pacientes celíacos e familiares.

Pacientes com formas clássicas da DC, de maneira geral, não constituem dificuldade diagnóstica. Com os conhecimentos atuais, entretanto, é possível observar que dificilmente se chegará a um marcador único que confirme, para o clínico, se um paciente ou familiar com uma biopsia grau II ou apenas aumento dos linfócitos intra-epiteliais, vai desenvolver DC ou não. Em doença de caráter complexo como a DC, o clínico necessita adequar-se às estratégias de detecção que a doença exige para definir um indivíduo ou família de maior risco. Verifica-se que o conjunto de marcadores é que vai direcionar o diagnóstico ou prognóstico da doença. Os genes de susceptibilidade/resistência na população certamente vão contribuir nesta estratégia. A história familiar, a presença de DC ou outras doenças autoimunes na família, os antígenos HLA, os outros genes envolvidos na população, os dados histológicos, sorológicos e a clínica do paciente, no conjunto, vão sugerir a instituição ou não de dieta isenta de glúten.


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