Nutrição enteral precoce em transplante hepático
EDITORIAL
Nutrição enteral precoce em transplante hepático
Early enteral nutrition after liver transplantation
O transplante hepático mudou substancialmente o prognóstico de inúmeros
pacientes adultos e pediátricos com doença hepática terminal. Os candidatos a
transplante hepático freqüentemente apresentam profundas alterações do
metabolismo dos macro e micronutrientes. Independentemente da etiologia da
hepatopatia, a desnutrição protéico-calórica pode ser detectada em cerca de 20%
dos pacientes com doença hepática compensada e em 80% daqueles com cirrose
descompensada. O fígado é o maior órgão do metabolismo orgânico e integra
inúmeros processos metabólicos complexos, incluindo carboidratos, proteínas e
lipídios. Estas alterações no metabolismo dos macronutrientes foi objeto de
publicação recente, onde elas foram analisadas em detalhe(4). Além disso, o
fígado exerce papel fundamental de depósito e ativação de vitaminas e
detoxicação e excreção de produtos tóxicos do metabolismo, como a amônia(2). A
presença de desnutrição protéico-calórica é associada a maior incidência de
complicações pós-operatórias, maior tempo de internação e, conseqüentemente,
maiores custos do procedimento.
A despeito das constatações acima, o tratamento nutricional adequado dos
pacientes portadores de doença hepática terminal, candidatos a transplante,
permanece controverso. Alguns dos fatores que dificultam o consenso incluem: a)
as limitações dos métodos de avaliação do estado nutricional desses pacientes,
b) o caráter emergencial do procedimento quando o doador é cadavérico, e c) os
poucos estudos randomizados disponíveis na literatura que avaliaram o uso de
nutrição enteral ou parenteral após transplante hepático.
Com relação à avaliação nutricional dos hepatopatas, os métodos antropométricos
são inadequados porque a retenção de fluidos influencia o peso corporal e a
determinação das pregas cutâneas. Estes mesmos fatores tornam a análise da
impedância bioelétrica (bioimpedância) igualmente inadequada para avaliar a
composição corpórea, pois a retenção líquida, particularmente ascite e edema,
altera a condutividade elétrica. Os parâmetros bioquímicos também não são
confiáveis. A doença hepática terminal resulta em redução da síntese de
albumina, independentemente do estado nutricional. A resposta imunológica
também se encontra alterada, sendo comuns a linfopenia e resposta inadequada
aos testes cutâneos de sensibilidade retardada. Face às limitações dos métodos
objetivos normalmente utilizados, alguns autores sugeriram a utilização da
avaliação global subjetiva (AGS) como método preferencial para a avaliação
nutricional dos hepatopatas. Este método se baseia na história nutricional,
alterações recentes do peso corpóreo e achados do exame físico e classifica os
pacientes em bem nutridos, desnutridos moderados ou em risco de desnutrição e
gravemente desnutridos. HASSE et al.(8) demonstraram especificidade de 96%
quando o teste da AGS foi aplicado em hepatopatas, porém o teste foi menos
sensível em um grupo de portadores de doença hepática alcoólica.
Outro aspecto característico do transplante hepático de doador cadavérico é o
seu caráter emergencial. Este aspecto é relevante porque dificulta o preparo
nutricional antes do transplante. Não surpreende, portanto, a escassez de
estudos prospectivos avaliando a eficácia do preparo nutricional antes do
transplante. O aumento do número de transplantes realizados a partir de
doadores vivos poderá mudar este panorama, uma vez que esses são realizados em
condição eletiva ou semi-eletiva. Até o momento não foram publicados estudos
prospectivos e randomizados avaliando a eficácia do suporte nutricional
perioperatório nesses pacientes. Entretanto o incremento substancial de
transplantes hepáticos inter-vivos deverá mudar este panorama. Pode-se antever
a possibilidade de realização de estudos prospectivos controlados avaliando a
terapia nutricional pré-transplante nos candidatos a transplante de doador
vivo.
Neste número dos ARQUIVOS de GASTROENTEROLOGIA, ÁLVARES-da-SILVA et al.(1)
relatam sua experiência com a nutrição enteral precoce em pacientes submetidos
a transplante hepático cadavérico. Os autores avaliaram prospectivamente 35
pacientes consecutivos nos quais foi colocada sonda nasoenteral ao término do
procedimento cirúrgico, posicionada pelo cirurgião no duodeno. No pós-
operatório imediato foi administrada solução contendo glutamina diluída em
água. Nutrição enteral foi iniciada em até 12 horas após o transplante, com
volumes progressivamente maiores de uma dieta polimérica líquida completa. Os
autores referem que a tolerância à nutrição enteral foi bastante adequada. A
partir do segundo ou terceiro dia de pós-operatório foi liberada dieta oral,
que foi evoluída nos dias subseqüentes. Os autores referem evolução pós-
operatória satisfatória, porém 28,6% dos pacientes apresentaram infecção
respiratória e em dois casos houve broncopneumonia com aspecto aspirativo.
Algumas considerações referentes a esse estudo parecem pertinentes.
Inicialmente, o método utilizado para a avaliação do estado nutricional foi
selecionado adequadamente pois, como mencionados anteriormente, a avaliação
global subjetiva tem sido o método preferencial de avaliação nutricional desses
pacientes (4). Segundo este método de avaliação, 77% dos pacientes estavam
desnutridos, o que está de acordo com a literatura internacional(2). Os autores
também utilizaram o método de dinamometria mediante a força do aperto de mão.
Por este método dinâmico todos os pacientes foram considerados desnutridos,
ressaltando a alta prevalência da desnutrição em candidatos a transplante
hepático.
Para a terapia nutricional foi utilizada a nutrição enteral precoce por sonda
nasoenteral. Este é o método preferencial porque utiliza precocemente o
intestino, preservando a fisiologia intestinal. Tem sido demonstrado que a
nutrição enteral precoce reduz as complicações infecciosas e metabólicas,
mantém o trofismo do trato gastrointestinal, previne translocação bacteriana e
tem menor custo quando comparada com a nutrição parenteral(9). No pós-
operatório imediato, os autores infundiram solução contendo glutamina. Não
comentam este aspecto na Discussão. Trata-se de proposta interessante, tendo em
vista as inúmeras funções da glutamina no organismo, em particular por melhorar
o trofismo intestinal e por estimular imunologicamente o indivíduo. Em estudos
experimentais no nosso laboratório demonstramos os benefícios da adição de
glutamina na cicatrização de anastomoses intestinais(5), bem como na redução da
ocorrência de translocação bacteriana(10).
A ocorrência de infecção pulmonar em 28,6% dos pacientes é elevada, porém
comparável a outras séries e deve-se, provavelmente, à combinação de diversos
fatores: cirurgia de grande porte do andar superior do abdome, desnutrição
prévia e imunossupressão. Pelo desenho do estudo em questão é impossível saber
se essa incidência seria ainda maior sem o uso da nutrição enteral precoce, uma
vez que o estudo não foi controlado. Por outro lado, a ocorrência de pneumonia
aspirativa em dois casos é grave, já que esta complicação pode ser fatal. O
posicionamento da sonda no duodeno (pós-pilórica) reduz, mas não evita, a
ocorrência desta grave complicação(3). Vale a pena ressaltar que, algumas
vezes, a sonda pode deslocar-se do duodeno e retornar ao estômago, favorecendo
a ocorrência de aspiração(7). Por esta razão é fundamental certificar-se
rotineiramente da posição da sonda.
O tempo de nutrição enteral exclusiva foi em média de apenas 2,3 dias. Na nossa
opinião os potenciais benefícios advindos desta conduta foram provavelmente
decorrentes da utilização precoce do intestino, mantendo a fisiologia
intestinal, e não pelo suprimento adicional de nutrientes, uma vez que os
pacientes receberam dieta oral já a partir do terceiro ou quarto dia de pós-
operatório. Esta questão somente poderá ser elucidada mediante estudos
prospectivos e controlados, nos quais o grupo controle seria mantido em jejum
até o início da dieta por via oral.
Esperamos que esse trabalho seja um estímulo para que esta e outras equipes de
transplante hepático realizem tais estudos de forma prospectiva e randomizada.
Por fim, vale a pena ressaltar que a prática cada vez mais freqüente em nosso
meio do transplante hepático intervivos poderá suscitar a realização de estudos
sobre os efeitos da suplementação pré-transplante de nutrientes, o que poderia
resultar em benefícios ainda maiores neste subgrupo de pacientes, como
demonstrado em outros grupos de pacientes submetidos a cirurgia
gastrointestinal de grande porte(6).
Antonio Carlos L. CAMPOS
Jorge Eduardo F. MATIAS
Júlio Cezar U. COELHO