Participação da apoptose na rejeição aguda do transplante intestinal em ratos
EXPERIMENTAL GASTROENTEROLOGYINTRODUÇÃO
O transplante de intestino delgado (TID) é a proposta lógica para tratar a
falência intestinal, porém existem sérias dificuldades ainda não superadas e
que não o tornam procedimento rotineiro(1, 23). Entre os obstáculos, destacam-
se a rejeição de difícil controle(21, 46), a necessidade de manter
imunossupressão agressiva, surtos infecciosos graves, a complexa técnica
cirúrgica, dificuldades na preservação do enxerto, desencadeamento de doenças
linfoproliferativas(40, 47), que limitam a indicação clássica usual do TID(21,
23).
O modelo experimental em ratos proporcionou estudos mais controlados na
avaliação da rejeição aguda e crônica(8, 11), das dificuldades ligadas à
preservação intestinal(12, 26), da compreensão da função do enxerto(37), da
doença do enxerto versus hospedeiro (DEVH)(14, 15), da indução de tolerância(2,
33) e do novo campo fascinante da medicina moderna, ' a engenharia tecidual '
que poderá revolucionar a forma de tratamento de diversas doenças, inclusive
permitindo a produção de tecido intestinal em laboratório(22, 24).
Por conta dos estudos experimentais, verificou-se que a forte tendência à
rejeição no TID é devido à grande concentração de tecido linfóide presente no
intestino transplantado(8, 11, 17). A rejeição causa perda da integridade da
barreira mucosa e favorece a translocação bacteriana e a sepse. A necessidade
do uso de intensa imunossupressão para controlar a rejeição provoca maior
tendência à infecção e ao desenvolvimento de tumores, além do risco de
toxicidade para vários órgãos. Essas complicações limitam a sobrevivência
prolongada após o TID e representam grande desafio à sua aplicação clínica(1,
9, 17, 23).
No Brasil, foram realizados, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina
da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), dois casos pioneiros de TID por
Okumura na década de 60(35). Nessa Faculdade realiza-se pesquisa experimental
de TID desde 1971, visando sua aplicação clínica(11, 15, 43). Recentemente,
realizou-se na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo o primeiro TID,
introduzindo entre nós o emprego de FK-560(7) para evitar a rejeição nesta
modalidade de transplante.
A morte celular determina a perda da estrutura celular e da sua função de forma
irreversível, sendo um fenômeno biológico constatado nos organismos vivos.
Ocorrem dois tipos de morte celular denominados apoptose(10) e necrose(3, 41).
A necrose celular é consequência da agressão do meio ambiente, que resulta em
alterações precoces da membrana plasmática e leva à acidose com alteração do
transporte de íons (potássio, magnésio, cálcio, sódio e cloro), por aumento da
permeabilidade da camada de fosfolipídes e ruptura física da membrana e
conseqüente perda da compartimentalização celular.
Em contraste, a apoptose compreende uma atividade bioquímica em resposta às
alterações locais do meio ambiente intracelular, desencadeadas pela
endonuclease nuclear, a qual divide o DNA em oligômeros(18). O processo da
apoptose é observado quando a morte celular é evento fisiológico programado
durante a embriogênese, metamorfose ou "turn over" celular normal. Entretanto,
tem se tornado evidente que a apoptose ocorre também por meio de estímulos
patológicos, como o que ocorre na vigência de infecões virais, hepatites, por
exemplo(5, 6). Morfologicamente a apoptose é caracterizada pela condensação
nuclear e citoplasmática seguida de perda da membrana nuclear, fragmentação da
cromatina nuclear e subseqüente formação de inúmeros fragmentos de condensado
nuclear e citoplasmático. Esses corpos apoptóticos são absorvidos pelas células
adjacentes, não ocorrendo infiltrado leucocitário, obrigatoriamente encontrado
nas reações inflamatórias.
Em transplante de órgãos, a apoptose tem sido investigada em transplante
clínico e experimental de fígado(34), rim(36) e pancreas(25). Com a finalidade
de se aprimorar o diagnóstico precoce e específico, e também o prognóstico da
rejeição, decidiu-se pela busca experimental de outros métodos indicadores da
rejeição, uma vez que o estudo histológico das biopsias é insuficiente para
prover o almejado diagnóstico de certeza desta grave complicação.
Portanto, o objetivo do presente estudo experimental foi a avaliação da
apoptose em ratos submetidos a alotransplante intestinal.
MÉTODO
Animal de Experimentação
Empregou-se o modelo de transplante intestinal em ratos isogênicos das raças
Brown-Norway e Lewis, sendo 24 animais machos da raça Brown-Norway e 40 machos
da raça Lewis, com o peso entre 200 a 350 gramas, distribuídos aleatoriamente,
sem prévia seleção ou análise de qualquer parâmetro clínico-laboratorial para
quaisquer dos grupos estudados. Os animais Brown-Norway foram apenas doadores
do intestino delgado e os da raça Lewis, 8 doadores e 32 receptores. Os animais
foram anestesiadas com pentobarbital (65 mg/kg) e atropina (0,04 mg/kg) via
intraperitoneal, seguida de anestesia inalatória com halotano 2% associado a
oxigênio (2,5 L/min).
Os animais foram distribuídos em dois grupos, a saber:
Grupo Isotransplante (C)
É o grupo controle (C), constituído por oito animais receptores da raça Lewis
submetidos ao isotransplante. O mesmo animal foi submetido a duas biopsias e
posteriormente ao sacrifício nos seguintes momentos:
Momento C(3) ' Os oito animais receptores foram submetidos a biopsia intestinal
no terceiro dia pós-operatório (PO3).
Momento C(5) ' Os oito animais foram submetidos a biopsia intestinal no quinto
dia de pós-operatório (PO5).
Momento C(7) ' Os oito animais foram sacrificados no sétimo dia de pós-
operatório (PO7).
Grupo Alotransplante (Tx)
Constituído por 24 animais receptores da raça Lewis e 24 animais doadores da
raça Brown-Norway, distribuídos em três subgrupos descritos a seguir:
Subgrupo Tx(3) ' Oito animais receptores da raça Lewis submetidos ao
alotransplante e sacrificados no terceiro dia de pós-operatório (PO3).
Subgrupo Tx(5) ' Oito animais receptores da raça Lewis submetidos ao
alotransplante e sacrificados no quinto dia de pós-operatório (PO5).
Subgrupo Tx(7 ) ' Oito animais receptores da raça Lewis submetidos ao
alotransplante e sacrificados no sétimo dia de pós-operatório (PO7).
Procedimento cirúrgico
O transplante intestinal foi executado de forma heterotópica (Thiry-Vella),
segundo a técnica de LEE et al.(29), ZHONG et al.(48, 49) e MONCHICK e RUSSELL
(31). Não foi utilizada nenhuma forma de imunossupressão (Figura_1).
Apoptose
Realizou-se a reação de TUNEL (Terminal deoxynucleotidil transferase mediated
dUTP-biotin nick end labeling) utilizando-se o kit "In Situ Cell Death
Detection Kit, Cat. 1684817 ' Boehringer Mannheim" para estudo imunoistoquímico
de detecção e quantificação da apoptose, baseado na quebra das cadeias de DNA.
Os tecidos foram analisados através da microscopia óptica.
A avaliação da apoptose(18, 30) foi realizada por dois investigadores (UR,
ADWL) pelo índice apoptótico, pela leitura direta das lâminas preparadas pela
reação de TUNEL em áreas denominadas zona quente(10, 41, 47) (maior
probabilidade de se encontrar células alteradas devido à rejeição); no caso
foram as criptas e a lâmina própria das vilosidades intestinais. Foram
escolhidos 10 campos aleatórios na área considerada zona quente e feita a
leitura do número total das células apoptóticas(38, 39), somando-se o total de
células apoptóticas nos 10 campos analisados à microscopia óptica com aumento
de 400x. Houve exclusão da leitura nas áreas com evidência de necrose (Figuras
2, 3)
Análise estatística
Os dados foram confrontados com a curva de Gauss (curva normal) e classificados
em não-paramétricos (para P <0,05).
Os dados foram analisados de duas formas: intragrupo (dentro de cada grupo de
estudos) e intergrupo (comparando os grupos em momentos diferentes).
Na análise intragrupo no grupo C foi realizado o teste de Friedmann com pós-
teste de Muller-Dunn (o mesmo animal em diferentes momentos) e no grupo Tx o
teste de Kruskall-Wallis com pós-teste de Muller-Dunn (animais diferentes em
momentos diferentes).
Na análise transversal intergrupo entre os grupos C e Tx foi utilizado o teste
de Mann-Whitney.
Os dados foram expressos em mediana e percentil 25 e 75.
RESULTADOS
Avaliação da Apoptose
No grupo C ' Na análise da apoptose intragrupo entre os três momentos do grupo
isotransplante (C(3), C(5) e C(7)), houve diferença estatística quanto ao
aumento do número de células em apoptose do momento C(3) para o C(5). O mesmo
não ocorreu do momento C(5) para C(7). A contagem das células apoptóticas
variou de 4 a 106 células (Gráfico_1).
No grupo Tx 'Na análise da apoptose intragrupo do grupo Tx entre os subgrupos
Tx(3), Tx(5) e Tx(7), houve diferença estatística do subgrupo Tx(3) para Tx(5),
ocorrendo aumento do número de células apoptóticas. Ocorreu, porém, o inverso
do subgrupo Tx(5) para Tx(7) com diferença estatística, acarretado pela queda
do número de células apoptóticas. E ao comparar o subgrupo Tx(3) com o Tx(7),
embora o número de células apoptóticas no processo da rejeição seja maior no
último subgrupo Tx(7), não houve diferença estatística entre ambas (Gráfico_2).
Avaliação Intergrupo entre os Grupos C e Tx ' Na análise da apoptose intergrupo
entre os momentos C(3), C(5) e C(7) e os subgrupos Tx(3), Tx(5) e Tx(7), de
forma pareada e transversal, observou-se que em todos os momentos os subgrupos
do Tx obtiveram maior número de células em apoptose em relação aos três
momentos do grupo C, com diferença estatística marcante, mais acentuada no
quinto dia pós-operatório (C(5) e Tx(5)) (Gráfico_3).
DISCUSSÃO
Observou-se o aumento de células em apoptose do subgrupo C(3) para C(5), embora
o grupo seja isento do fenômeno da rejeição. Estes dados contrariam os
resultados de FAYYAZI et al.(10), que comprovaram no grupo de animais que se
submeteram ao isotransplante a não ocorrência do aumento do número de células
em apoptose no decorrer do período pós-operatório (PO3 ao PO7), mantendo baixo
número de células apoptóticas devido ao fenômeno normal de "turn over" celular
dos enterócitos. Mas existem outras variáveis que puderam influir no mecanismo
da apoptose em tecido submetido ao isotransplante:
* o mecanismo de isquemia-reperfusão(27, 32, 41) se caracteriza pela lesão
da mucosa intestinal devido à depressão da atividade mitótica e
diminuição do seu metabolismo durante a isquemia fria na solução de
preservação a 4°C (tempo do enxerto submerso na solução de preservação).
E também pelo aumento de células inflamatórias no intestino reperfundido
por provável ativação da adesão de glicoproteínas a neutrófilos ou
células endoteliais que desencadeiam interações celulares, resultando no
processo da apoptose. O intestino delgado contém grande reservatório de
mediadores que são liberados após perfusão tecidual(32). Esses mediadores
incluem metabólitos reativos ao oxigênio, óxido nítrico, adesão dos
leucócitos, protease, citocinas. Os metabólitos são produzidos por várias
células, incluindo as células endoteliais, neutrófilos, macrófagos e
fibroblastos. Durante a reperfusão tecidual ocorre o estímulo,
desencadeando a liberação da cascata do processo inflamatório
inespecífico e específico que incluem os linfócitos T e B. Lembrando que
as lesões do enxerto intestinal, devido ao mecanismo isquemia-reperfusão,
apresentaram-se completamente regeneradas depois de 24 horas da perfusão
tecidual(32);
* a lavagem da luz intestinal é importante para a fase de isquemia fria e
quente, que é o tempo em que o enxerto intestinal permanece fora da
solução de preservação a 4°C, enquanto se realizam as anastomoses
vasculares do enxerto ao receptor, pois as enzimas digestivas: (protease
pancreática, sal biliar e endotoxinas) têm efeito na patogênese da lesão
da mucosa intestinal durante o tempo de isquemia(27);
* o "turn over" da célula da mucosa intestinal é mais rápida em relação a
órgãos sólidos e a apoptose é observada com maior freqüência nas
vilosidades intestinais de tecido normal controle(41);
* a pressão elevada durante a lavagem da luz intestinal e da perfusão
intestinal acarreta lesões no enxerto intestinal(28, 48, 49);
* a solução da Universidade de Wisconsin representa a solução de
preservação modelo em relação a outras soluções pelo menor risco de lesão
tecidual, mesmo em tempo prolongado de preservação(12, 13).
Houve aumento expressivo de células em apoptose do subgrupo Tx(3) para Tx(5), o
que corresponde ao relatado por vários autores(4, 10, 47). Esse mecanismo de
rejeição associada à apoptose é ainda controverso(10). A apoptose, neste caso,
representa a resposta epitelial às alterações causadas pelo fenômeno da
rejeição(4, 10). Isto pode corresponder à liberação das citocinas por células
imunocompetentes, envolvidas na rejeição. Sabe-se que os linfócitos T-
citotóxicos interagem com os antígenos de histocompatibilidade do enxerto
intestinal causando lesão da membrana celular e resultando na apoptose.
Ocorreu, porém, decréscimo expressivo do subgrupo Tx(5) para Tx(7),
diferentemente do encontrado por outros autores(10, 47). FAYAZZI et al.(10)
mostrou aumento gradativo de células em apoptose até o nono dia de pós-
operatório, depois ocorre o decréscimo do mesmo.
VENNARECCI et al.(47) observaram aumento do número de células em apoptose até o
15° PO e depois decréscimo progressivo. Esses autores propõem que o aumento do
número de células apoptóticas está correlacionado à rejeição leve (grau 1) e
moderada (grau 2). Nos casos de rejeição intensa (grau 3) e rejeição crônica,
observou-se baixo índice de células apoptóticas por provável necrose e fibrose
extensa da mucosa intestinal.
Neste estudo notou-se que no grupo Tx(7) a maioria se encontrava no estádio de
rejeição intensa (grau 3) associada à necrose extensa(3, 10), o que
provavelmente acarretou a queda do número de células em apoptose.
Estes dados não mostram exatamente controvérsia em relação aos autores citados,
mas sim, apenas que neste estudo a rejeição se instalou de modo mais intenso e
precoce.
Observou-se nítido aumento de células apoptóticas do grupo Tx em relação ao C
em todos os momentos, por provável fenômeno da rejeição que se traduz na
apoptose, em concordância com o observado por vários autores(6, 10, 32, 47).
Portanto, pode-se concluir, dentro das condições de realização desta pesquisa,
que a apoptose foi relevante como marcador na fase inicial da rejeição, ocorreu
a partir do terceiro dia de pós-operatório e manifestou-se principalmente nas
criptas da mucosa intestinal.