Avaliação da qualidade de vida na incontinência anal: validação do questionário
FIQL (Fecal Incontinence Quality of Life)
EPIDEMIOLOGIA CLÍNICA CLINICAL EPIDEMIOLOGYINTRODUÇÃO
A perda do controle da evacuação determina incapacitação física e psicológica,
resultando em perda da auto-estima e progressiva reclusão social. Estudos com
crianças e indivíduos jovens demonstram que a incontinência anal resulta em
impacto negativo na saúde mental e nos aspectos psicossociais(8, 22).
A incontinência anal onera o seu portador seja pelo custo de protetores das
vestes, ou por demandar pessoal especializado, principalmente aos idosos
institucionalizados, que muitas vezes se encontram expostos à infecção urinária
e à dermatite perineal(6, 39).
A real prevalência da incontinência anal é desconhecida, já que freqüentemente
a abordagem do sintoma é dificultada em virtude do constrangimento(9, 25).
Embora esse distúrbio da evacuação possa acometer qualquer faixa etária, sua
incidência é maior no sexo feminino, provavelmente devido a complicações no
parto vaginal e a maior prevalência, neste grupo, da constipação intestinal com
esforço evacuatório crônico(14, 26, 41).
Qualquer que seja a etiologia ou o grupo acometido, o convívio social para
esses pacientes é penoso, resultando em importante impacto no bem-estar e em
sua qualidade de vida(38, 40). Entretanto, a percepção da gravidade desses
aspectos, resultantes da incontinência anal, é muito subjetiva e os testes
objetivos não revelam relação direta entre o grau de incontinência anal e o
comprometimento por ela acarretado.
Nos últimos anos, o resultado das intervenções médicas passou a ser avaliado,
também, por meio de variáveis subjetivas que incorporam a percepção do
indivíduo em relação ao seu bem-estar e expectativas de vida, especialmente nas
áreas de domínios físico, social, emocional e ocupacional(4, 12, 13). Com essa
finalidade, vários instrumentos ou questionários têm sido desenvolvidos para a
avaliação de doenças crônicas e especificamente na avaliação da incontinência
anal, recentemente, foi proposto o FIQL - "Fecal Incontinence Quality of Life"
(34), composto por 29 questões distribuídas em 4 domínios. Os domínios ou
escalas representam grupos de itens ou questões que abordam o mesmo aspecto
referente à qualidade de vida. Os domínios do FIQL e suas respectivas questões
são: 1. estilo de vida: composto por 10 itens, Q2 (a, b, c, d, e, g, h), Q3 (b,
l, m); 2. comportamento: composto por 9 itens, Q2 (f, i, j, k, m), Q3 (c, h, j,
n); 3. depressão: composto por 7 itens, Q1, Q3 (d, f, g, i, k), Q4; e 4.
constrangimento: composto por 3 itens Q2 (l), Q3 (a, e). A pontuação dos itens
do questionário varia de 1 a 4, com exceção das questões 1 e 4 (Figura_1).
Para que um questionário seja considerado adequado e validado ele deve ser:
confiável, reprodutível, sensível às alterações ou discriminações e ter
validade demonstrada. A constatação da falta de questionário validado para
avaliação da qualidade de vida na incontinência anal em nosso meio, motivou a
realização do processo de validação do instrumento FIQL no presente estudo.
PACIENTES E MÉTODOS
Por ter sido concebido em idioma inglês, o questionário foi submetido a
processo de tradução e adaptação cultural de acordo com recomendações
internacionais antes de se iniciar o processo de validação(16).
Tradução
O questionário FIQL original foi traduzido por dois professores da língua
inglesa para o português. As versões foram comparadas entre si por um grupo
multidisciplinar composto por dois médicos, uma enfermeira e duas psicólogas e,
através de um consenso, foi originada a primeira versão do questionário em
português. Essa versão foi traduzida para o inglês por dois professores de
inglês de nacionalidade americana. Desta vez o grupo multidisciplinar avaliou
todas as versões, originando-se a segunda versão do questionário em português,
que foi utilizada para o processo de adaptação cultural.
Adaptação Cultural
O questionário foi aplicado a um grupo de 20 pacientes com incontinência anal,
selecionados aleatoriamente no ambulatório de fisiologia do cólon reto e ânus
da Disciplina de Coloproctologia da Faculdade de Medicina da Universidade de
São Paulo, SP. A cada questão da segunda versão do questionário acrescentou-se
a opção "não aplicável" (N/A), a fim de se identificar quais questões seriam
culturalmente não-compatíveis, ou até mesmo não compreendidas por nossa
população. As questões que apresentaram mais de 15% de resposta "não aplicável"
foram selecionadas e novamente redigidas pelo grupo multidisciplinar,
procurando-se manter o mesmo conceito(5, 11).
Outros 20 pacientes incontinentes foram selecionados, aos quais foi aplicada a
terceira versão do questionário, observando-se que desta vez nenhuma questão
apresentou resposta "não aplicável" acima de 15%, considerando-se a adaptação
cultural completa. Essa versão final do questionário foi utilizada no processo
de validação (Figura_1).
Validação
As propriedades de medida estudadas foram a reprodutibilidade e a validade.
Reprodutibilidade
A reprodutibilidade da versão final do FIQL foi testada por meio de três
entrevistas. Participaram desta fase 50 pacientes portadores de incontinência
anal de etiologias diversas, sem tratamento prévio do sintoma e que não
participaram da etapa de adaptação cultural.
A reprodutibilidade entre examinadores diferentes foi avaliada através de
entrevistas realizadas pelos examinadores A e B no mesmo dia, com o mesmo
paciente, com intervalo de 30 minutos entre uma e outra. O examinador A
reavaliou todos os pacientes, após período de 7 a 10 dias, com a finalidade de
se comparar os resultados obtidos pelo mesmo examinador em tempos diferentes. A
média obtida entre as três entrevistas foi utilizada na etapa de validade.
Validade
Foram testadas a validade de construção e discriminativa.
Para a avaliação da validade de construção, os pacientes incontinentes
responderam também ao índice de incontinência anal(22) e ao questionário
genérico conhecido como Short-Form 36(45), validado em nosso meio por CICONELLI
(7). Os resultados obtidos foram correlacionados com os do FIQL.
A validade discriminativa foi avaliada aplicando-se o FIQL em 30 pacientes com
constipação intestinal e 30 indivíduos voluntários hígidos. Nesta etapa, a
questão nº 2 "devido à sua incontinência anal", foi modificada para "devido à
sua constipação", para os pacientes constipados, e "de acordo com o seu estado
de saúde", para os voluntários hígidos. Os respectivos resultados foram
comparados aos obtidos com a média final da reprodutibilidade.
Análise Estatística
Foram utilizados o coeficiente de correlação intraclasse, análise de variância
(ANOVA), o coeficiente de Pearson e teste t de Student. O índice de
significância estabelecido foi 0,05.
RESULTADOS
Adaptação Cultural
Durante o processo de adaptação cultural, três questões pertencentes ao domínio
1 ' estilo de vida ' necessitaram ser modificadas: ao item 2b acrescentou-se a
palavra "parentes" visto que devido ao constrangimento, 40% dos pacientes
visitavam apenas seus parentes. O item 2g, inicialmente traduzido como "é
importante eu planejar o que eu vou fazer de acordo com o meu funcionamento
intestinal", mostrou-se incompreensível a 60% dos entrevistados, sendo
modificado para "dependo do funcionamento do meu intestino para planejar o que
vou fazer durante o dia". O item 3l foi modificado para "evito viajar de carro
ou ônibus", já que 100% da população entrevistada não viajava de avião ou de
trem.
Outras modificações foram: as alternativas "concordo plenamente", "concordo
parcialmente", "discordo parcialmente" e "discordo plenamente" foram
substituídas pelas alternativas "muitas vezes", "algumas vezes", "poucas vezes"
e "nenhuma vez", respectivamente. A frase "indique em que até extensão o
problema incomoda" foi modificada para "indique até quanto o problema o
incomoda".
O tempo médio de aplicação do questionário foi de 13 (10 a 15) minutos.
Validação
Características sócio-demográficas 'A população de pacientes incontinentes foi
em sua maioria, constituída pelo sexo feminino 37 (74%). Quanto à ocupação 10
(20%) paciente estavam desempregados, dos quais 6 (12%), atribuíram à
incontinência a causa do desemprego. Quanto ao nível de escolaridade 44 (88%)
eram alfabetizados (Tabela_1).
O tempo médio obtido de duração da incontinência anal foi de 10,2 anos.
A média de idade foi 52,8 anos, sendo a idade mínima de 15 e a máxima de 75
anos.
Reprodutibilidade 'Os resultados obtidos para a reprodutibilidade intra- e
interexaminadores mostraram concordância significativa em todos os domínios do
questionário e estão demonstrados nas Tabelas_2 e 3.
Validade
Validade construtiva ' Observou-se correlação inversa entre os valores totais
do FIQL e o índice de incontinência anal, isto é, pacientes com incontinência
anal mais grave (índices mais elevados), apresentaram piores índices de
qualidade de vida (valores mais baixos) (P <0,001) (Gráfico_1). Em 11 (22%)
casos, no entanto, não se observou correlação entre os valores de FIQL e os do
índice de incontinência anal.
Na análise da correlação entre os dois questionários de qualidade de vida '
específico (FIQL) e genérico (SF-36) ' observou-se correlação significativa
entre todos os domínios do FIQL e do SF-36 (coeficiente 0,754 a 0,556; P
<0,01), exceto o domínio dor (coeficiente = 0,103; P = NS) (Tabela_4).
Validade discriminativa 'Verificou-se que a qualidade de vida no portador de
incontinência anal está comprometida em todos os domínios estudados do FIQL:
estilo de vida: 2,4, comportamento: 2,0, depressão: 2,5, constrangimento:1,9 e
total: 8,4, quando comparado com os indivíduos voluntários hígidos (3,9, 3,9,
4,1, 4,0 e 15,9), e pacientes com constipação intestinal (3,7, 3,8, 3,6, 3,8 e
14,9), respectivamente (P <0,05) (Gráfico_2).
DISCUSSÃO
Existe na literatura uma escassez de métodos objetivos e específicos de medida
para a abordagem do impacto na qualidade de vida nos pacientes com
incontinência anal. Idealmente, a avaliação da qualidade de vida deve ser feita
através de métodos quantitativos e reprodutíveis. Sobretudo, a seleção de um
instrumento deve ser feita considerando-se a sua proposta, a clareza de seus
componentes, a definição da população-alvo e a doença para a qual essas medidas
foram desenvolvidas. Além disso, o instrumento deve ser de fácil aplicação, de
fácil compreensão e ter tempo de administração apropriado(2, 43).
Apesar de se encontrarem na literatura outros instrumentos específicos na
incontinência anal, tais como o "Fecal Incontinence Questionnaire"(33) e "The
Fecal Incontinence Severity Index"(35), o FIQL foi utilizado no presente estudo
por se tratar de instrumento específico de linguagem simples, com tempo de
aplicação viável, tendo recebido crescente aceitação na literatura(24, 26, 27,
29, 36). A maioria dos instrumentos utilizados para avaliação da qualidade de
vida, incluindo o FIQL, foi originalmente proposta no idioma inglês.
Atualmente, é consenso que um instrumento de avaliação de qualidade de vida
deva, após processo de tradução e adaptação cultural cuidadoso, ter suas
propriedades de medida testadas num contexto cultural específico, já que cada
grupo social tem suas próprias crenças, atitudes, costumes, comportamento e
hábitos(32, 42).
A importância da tradução e adaptação fez-se notar neste estudo, pelas mudanças
necessárias para o melhor entendimento do questionário pelo entrevistado, como
exemplo as alternativas "concordo plenamente," "concordo parcialmente,"
"discordo parcialmente" e "discordo plenamente" foram substituídas pelas
alternativas "muitas vezes", "algumas vezes," " poucas vezes" e "nenhuma vez,"
respectivamente, pois julgou-se que haveria dificuldade no discernimento entre
"concordo parcialmente" e "discordo parcialmente". Quanto à reavaliação do peso
dos índices, não houve necessidade de mudanças, uma vez que houve boa aceitação
pela população estudada da pontuação preestabelecida para os itens do
questionário.
A confiabilidade de um questionário deve ser avaliada através das propriedades
de medida do instrumento, reprodutibilidade e validade(3, 44). O bom
instrumento de avaliação produz resultados iguais ou semelhantes, em duas ou
mais aplicações no mesmo paciente, desde que seu estado clínico não tenha sido
alterado(20).
Durante a aplicação do FIQL, a reprodutibilidade intra-examinador e
interexaminador variou de 0,929 a 0,957 e de 0,944 a 0,969, respectivamente,
demonstrado correlação estatisticamente significativa para todos os domínios:
estilo de vida, comportamento, depressão e constrangimento (P <0,001).
A validade é a propriedade do instrumento em medir, da melhor forma possível, o
fenômeno de interesse. Ressalta-se que os questionários de qualidade de vida,
embora estudem a percepção da saúde do ponto de vista do paciente nos aspectos
social, físico, emocional e psicológico, podem se correlacionar bem com medidas
tradicionais utilizadas na avaliação do paciente(31).
Na análise da correlação entre os dois questionários de qualidade de vida,
observou-se que todos os domínios do questionário específico FIQL e os do
questionário genérico, exceto o domínio dor (coeficiente = 0,103; P = NS),
apresentaram boa correlação estatística entre si, pois o coeficiente variou de
0,754 a 0,556 (P <0,01). É provável que a falta de correlação do domínio dor
deva-se à ausência desse sintoma no doente portador de incontinência anal.
Com os resultados obtidos com a aplicação dos dois questionários, observou-se
que o maior impacto ocorre nos aspectos psíquicos e funcionais da qualidade de
vida do indivíduo. Resultados semelhantes são relatados por KOLOSKI et al.(23)
ao estudarem o impacto dos distúrbios gastrointestinais na qualidade de vida em
4.500 pacientes, dos quais 157 eram acometidos de incontinência anal.
JOHANSON e LAFFERTY(21), em 1996, mostraram em estudo sobre qualidade de vida
na incontinência anal, que 11% dos seus pacientes reduziram suas atividades no
trabalho, devido ao sintoma. Observou-se no presente estudo, que 6% da
população atribuiu o desemprego à incontinência anal, seja pelo baixo
rendimento relatado, justificado pela necessidade de interromper o trabalho
para trocar a proteção das vestes várias vezes, seja pela dificuldade do
convívio social.
HUPPE et al.(19), em estudo sobre aspectos psicossociais da incontinência anal,
observaram que os aspectos mais comprometidos foram a sexualidade e o
desempenho do indivíduo no emprego. Na presente série verificou-se que 58% dos
pacientes suspenderam sua atividade sexual, enquanto 14% somente diminuíram a
freqüência dessa atividade, o que determinou a baixa pontuação nos domínios
comportamento e depressão.
Nesta casuística, 68% dos doentes portadores de incontinência anal passaram a
apresentar depressão após o início dos sintomas, entre os quais, seis evoluíram
em idéias suicidas e um necessitou de internação psiquiátrica. Ressalte-se que
os pacientes referiram espontaneamente ter idéias suicidas ao serem
questionados sobre a presença de desânimo, tristeza ou nervosismo no último
mês. Este fato poderia sugerir a necessidade da inclusão de questões que
abordem também este aspecto, tais como as encontradas nas escalas de avaliação
da depressão de BECK e STEER(1) e HAMILTON(18).
Ainda que em sua maioria os pacientes tivessem apresentado resultados do índice
de incontinência anal correspondentes ao índice de qualidade de vida, em 22%
dos casos isso não ocorreu. Entre esses, observou-se em cinco casos (10%)
apenas discreto impacto na sua qualidade de vida, apesar do alto valor no
índice de incontinência anal. Por outro lado, seis pacientes (12%) com
incontinência anal moderada ou leve apresentaram grande repercussão na
qualidade de vida, especialmente nos domínios depressão e constrangimento.
Ressalte-se que esses pacientes negavam qualquer alteração psíquica durante o
período em que não apresentavam o sintoma. Essas discrepâncias podem estar
relacionadas a fatores sócio-culturais inerentes ao indivíduo e reforçam a
importância de associar-se o estudo da qualidade de vida às medidas
convencionais, para assim demonstrar a percepção do paciente.
Embora no presente estudo a deterioração da qualidade de vida tenha sido
significativamente maior nos pacientes com incontinência anal, observou-se que
a qualidade de vida também se encontra afetada nos pacientes com constipação
intestinal quando comparada à dos indivíduos voluntários hígidos. Alguns
autores, porém, utilizando os instrumentos GIQL ' "Gastrintestinal Quality of
Life" e IBDQ' "Inflammatory Bowel Disease Questionnaire", não encontraram
diferenças significativas, tanto na comparação da qualidade de vida de
incontinentes anais com constipados intestinais, como na comparação com os
indivíduos voluntários hígidos(21, 30, 37). Esses resultados podem ser
explicados pelo fato dos questionários acima citados não serem específicos,
provavelmente, pouco adequados para o estudo do sintoma abordado(10, 15, 17).
O constrangimento foi notado em 74% dos portadores de incontinência anal. Esse
dado sugere que muitas vezes o paciente não evita o convívio social somente
pela depressão, mas também pelo constrangimento.
A acurácia das propriedades de medida, bem como da sua tradução e adaptação
cultural, tornam o questionário um parâmetro adicional importante na avaliação
de resultados da qualidade de vida do paciente portador de incontinência anal.
A informação que traduz a relação do paciente com sua doença é importante para
a postura do médico perante a doença e o doente. Desta forma, ao invés de
avaliar apenas os parâmetros clínicos e laboratoriais, obtém-se avaliação mais
completa do paciente, o que permite melhor planejamento terapêutico e avaliação
a longo prazo.
Portanto, a tradução e a validação do FIQL, instrumento específico de avaliação
de qualidade de vida na incontinência anal, será de futura utilidade em ensaios
clínicos, para comparação entre dados de diferentes casuísticas e na avaliação
da resposta terapêutica.