Avaliação dos potenciais evocados relacionados a eventos (ERP-P300) em
pacientes com cirrose hepática sem encefalopatia
ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE
Avaliação dos potenciais evocados relacionados a eventos (ERP-P300) em
pacientes com cirrose hepática sem encefalopatia
Evaluation of the event-related potential (ERP-P300) in patients with hepatic
cirrhosis without encephalopathy
Vinicius TeodoroI, II; Maurício Bragagnolo Jr.III; Lígia LucchesiII; Mário
KondoIII; Sérgio TufikII
IDepartamento de Gastroenterologia
IIDepartamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo - Escola
Paulista de Medicina, São Paulo, SP
Correspondência
INTRODUÇÃO
A cirrose hepática (CH) é um processo crônico e irreversível, resultado do
aumento difuso da atividade fibroblástica no fígado, em resposta a determinadas
agressões continuas ao órgão(19). A fibrose resulta da cicatrização que se
segue à destruição do hepatócito e com o colapso da trama de reticulina que o
sustenta, resultando na desorganização da arquitetura hepática. A alteração na
estrutura hepática faz compressão dos ramos terminais da veia porta, provocando
aumento da resistência local. O aumento da pressão local provoca o desvio do
fluxo sangüíneo venoso proveniente das veias mesentérica superior e esplênica,
rico em substâncias resultantes da digestão, que deixam de ser metabolizadas
pelo fígado e acabam circulando diretamente para o sistema nervoso central(32).
Os pacientes cirróticos podem apresentar um ou dois tipos de manifestações
clinicas: as relacionadas diretamente à necrose hepatocelular, causando perda
da função hepática e sinais ou sintomas das complicações da cirrose devido à
hipertensão portal. A evolução do paciente é assintomática e insidiosa, marcada
por sintomas inespecíficos (anorexia, perda de peso, fraqueza, osteoporose),
dificultando o diagnóstico precoce. As principais causas da cirrose hepática
são os agentes tóxico-químicos (álcool e drogas) e as infecções virais crônicas
(hepatites B e C)(1). Atualmente há aumento do número de pacientes com cirrose
decorrente de hepatite C, estimando-se em 200 milhões de portadores do vírus no
mundo(31). O diagnóstico de cirrose e sua incidência têm crescido em nosso
meio, tendo sido responsável por 40.000 internações hospitalares e mortalidade
de 7,79 por 100 mil habitantes em 2002(4).
As alterações neuropsiquiátricas, agudas ou crônicas, decorrentes da disfunção
hepática e/ou da hipertensão portal, podem ser sumarizadas como encefalopatia
hepática (EH)(6). As alterações cognitivas, comportamentais e motoras mais
comumente encontradas na EH manifesta, incluem desde distúrbios mínimos de
atenção, de memória, de sono(12) e motores (distúrbios extrapiramidais), até
quadros mais graves de comprometimento do sistema nervoso central com torpor,
delírio, confusão mental e coma(2, 8). O quadro inicial de EH, no qual não são
encontradas alterações ao exame clínico-neurológico, é denominado de
encefalopatia hepática mínima (EHM) ou latente(21). As atividades motoras e
intelectuais mais complexas, como conduzir veículos ou aprender novas tarefas
são afetadas desde estágios iniciais da cirrose(37), já indicando algum
prejuízo cognitivo. As dificuldades no reconhecimento destas alterações,
inicialmente sutis, levaram à elaboração de diversas baterias de testes(18, 30,
33)para seu correto diagnóstico. FERENCI e LOCKWOOD(10) em uma força tarefa,
sugeriram o uso de testes neuropsicológicos (teste de conexão numérica A e B,
Digit Symbol ou Digit Span) e, quando possível, associar testes
neurofisiológicos (ERP-P300 e EEG) para o diagnóstico da EHM.
Um dos meios mais efetivos para avaliar objetivamente as funções cognitivas é
medir a atividade eletrofisiológica do sistema nervoso central através dos ERP
(20), que constitui instrumento valioso para estudar a atividade neuronal
gerada durante o processamento de novas informações(26). O teste mais
freqüentemente usado para provocar o aparecimento do ERP é a tarefa auditiva
discriminatória utilizando o paradigma " oddball" , na qual é solicitado aos
testados detectar estímulos auditivos alvo e ocasionais, intercalados entre
estímulos auditivos padrões mais freqüentes(5). Mudanças na latência do
componente P3 ou P300 têm sido associadas com variáveis cognitivas como memória
(9), tomada de decisão(15) e expectativa(7).
Diversos estudos utilizaram o ERP-P300 para a avaliação dos distúrbios
cognitivos em pacientes com cirrose. WEISSENBORN et al.(38) e DAVIES et al.(8),
em 1990, publicaram os primeiros trabalhos utilizando o ERP-P300 com esta
finalidade. Entretanto, estudos posteriores(18, 33, 34)que também utilizaram o
ERP-P300 com o mesmo objetivo, obtiveram resultados diferentes, com número
elevado de cirróticos com EHM. De acordo com SAXENA et al.(33), há uma
variabilidade importante da incidência de EH e da EHM, atingindo até 84% dos
pacientes com cirrose, dependendo do método utilizado para seu diagnóstico.
A presença de distúrbios cognitivos na encefalopatia hepática tem efeito
negativo sobre a qualidade de vida e o prognóstico dos pacientes com cirrose
(24, 30). Entretanto, não se dispõe ainda de métodos diagnósticos ditos padrão-
ouro para diagnosticar essa síndrome, principalmente em seus estágios iniciais
(16).
O objetivo deste estudo foi verificar a utilidade do uso do ERP-P300, para
avaliar os distúrbios cognitivos presentes nos pacientes com cirrose hepática
sem encefalopatia e compara-los com um grupo controle. A utilização deste
instrumento em pacientes com encefalopatia hepática foi amplamente descrita na
literatura(18, 33, 34) e é eminentemente clínica, razão pela qual optou-se por
estudar somente pacientes sem sinais de alterações ao exame clínico-
neurológico.
MÉTODOS
O protocolo de pesquisa foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética da
Universidade Federal de São Paulo ' Escola Paulista de Medicina, São Paulo, SP.
Todos os pacientes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido,
concordando em participar da pesquisa.
No período de maio 2003 a maio de 2005 foram selecionados 50 pacientes (40
homens), de idade entre 31 e 65 anos (Tabela_1), diagnosticados com cirrose
hepática e sem sinais clínicos de encefalopatia hepática. Todos foram
provenientes do ambulatório de cirrose hepática, do Serviço de
Gastroenterologia do Hospital São Paulo, São Paulo, SP. O diagnóstico de
cirrose hepática foi feito através de exames clínicos, laboratoriais, ultra-
sonografia ou exame histopatológico, quando possível. Os critérios de exclusão
utilizados foram os seguintes: sangramento digestivo nos últimos 6 meses,
insuficiência renal (definida como creatinina sérica >2,0 mg/dL), diagnóstico
de carcinoma hepatocelular, uso de benzodiazepínicos nas últimas 2 semanas, uso
de álcool nos últimos 6 meses, idade inferior a 18 anos ou superior a 65 anos.
O grupo controle foi formado por 35 voluntários sadios com idade entre 20 e 65
anos selecionados entre os familiares saudáveis dos pacientes e obedecendo aos
mesmos critérios de exclusão pré-estabelecidos para o grupo cirrótico.
A avaliação inicial incluiu anamnese detalhada, avaliação da classe
socioeconômica através do critério ABA/ABIPEME (Associação Brasileira de
Anunciantes/Associação Brasileira de Institutos de Pesquisa de Mercado), exame
clínico geral, exame neurológico e psiquiátrico convencional, exames
laboratoriais e definição da etiologia da cirrose, quando possível. Os exames
laboratoriais realizados após jejum de 12 horas e também seus resultados
constam da Tabela_2. A classificação de Child-Pugh(29) foi utilizada como forma
de diferenciação da gravidade entre os grupos (Tabela_1).
O ERP-P300 foi realizado sempre pelo mesmo examinador, num mesmo ambiente, com
iluminação e temperatura padronizadas, sempre no mesmo horário (9 horas da
manhã), para evitar variação circadiana(25). Eletrodos ativos foram colocados
nas posições FZ, CZ e PZ, de acordo com o sistema internacional 10-20.
Eletrodos de referência foram colocados em A1 e A2, ligados entre si. O
eletrodo terra foi posicionado em FPZ. Foram também colocados eletrodos acima
da sobrancelha direita e no canto externo do olho esquerdo para controle do
eletro-oculograma. O paradigma utilizado foi o " oddball" . Os estímulos
auditivos foram apresentados bilateralmente através de fones de ouvido com tons
de 70 dB e dois tons foram apresentados de forma aleatória: estímulo raro, de
1500 Hz (com 20% de probabilidade de aparecimento) e estímulo freqüente, de 800
Hz (com 80% de probabilidade de aparecimento). O intervalo entre os estímulos
foi fixado em 2 segundos. Foi pedido ao testado que apertasse um botão todas as
vezes que escutasse um som raro, com a mão dominante, tão rapidamente quanto
possível. Foram obtidas médias de 30 registros de estímulos raros, livres de
artefatos. Todos os procedimentos foram repetidos, para permitir a replicação
das ondas obtidas e facilitar a identificação dos componentes.
Para comparação das médias das latências, optou-se por dividir os grupos
conforme faixa etária, devido à conhecida influência da idade sobre a latência
do P300(11, 25). Dividiu-se o grupo doente (D), em D1 (n = 15) com idade de 25
a 45 anos, e D2 (n = 35) com idade entre 46 a 65 anos. Da mesma forma, foi
dividido o grupo controle (C), em C1 (n = 19) e C2 (n = 16). Para a construção
do banco de dados e cálculos estatísticos, foi utilizado o programa Statistica
da Stat Soft 1995-2001. As variáveis foram expressas como média ± desvio padrão
e todos os grupos estudados apresentavam distribuição com curva normal pelo
teste de Kolmogorov e Sminorv. Para a comparação das variáveis entre o grupo
estudado e o grupo controle foi utilizado o teste t de Student para amostras
independentes ou análise de variância. Para o estudo de correlações entre as
variáveis foi utilizado o teste de correlação de Spearman. O nível de
significância de 0,05 foi utilizado em todos os testes.
RESULTADOS
Os pacientes com CH no presente estudo obtiveram a média da latência do ERP-
P300 estatisticamente superior às médias obtidas no grupo controle (Figura_1).
A latência média do grupo D1 foi de 349,69 ms versus grupo C1 com 328,10 ms e
com valores de t = 2,29 com P = 0,03. A latência do grupo mais idoso (D2) foi
de 372,41 ms versus C2 de 344,62 ms e de t = 2,56 com P = 0,01 (Tabela_3).
Para verificar se o uso crônico de álcool em uma parte da presente amostra de
pacientes com cirrose teria influência nos resultados do ERP-P300, o grupo de
cirróticos foi subdividido em dois subgrupos: o primeiro foi formado por
pacientes com história prévia de uso abusivo de álcool e o segundo, por
pacientes sem história prévia de uso abusivo de álcool. Após a divisão
utilizou-se o teste t de Student para a comparação das médias das latências do
ERP-P300 entre os dois subgrupos e não foi observada diferença estatisticamente
significante entre eles (P = 0,67). Da mesma forma, a gravidade da disfunção
hepática, avaliada pela classificação Child-Pugh não interferiu
significantemente nos valores médios da latência da onda ERP-P300 no grupo
avaliado (P = 0,38). Também não foi encontrada correlação significativa entre
amônia e a latência do ERP-P300 no grupo de pacientes com cirrose (r = 0,26).
DISCUSSÃO
Desde a primeira descrição da onda P300 por SUTTON et al.(35), em 1965, muito
se tem aprendido sobre o significado deste componente. A utilização do ERP-P300
como método de avaliação e rastreio dos prejuízos na função cognitiva, vem a
cada dia aumentando seu campo de aplicação. A geração da onda P300 do ERP é
complexa e, provavelmente, envolve diferentes centros e circuitos neuronais.
Inicialmente foi sugerido por HALGREN et al.(13)e McCARTHY et al.(22)que a
geração da onda P300 seria em áreas hipocampais do lobo têmporo-medial,
entretanto estudos subseqüentes demonstraram que a formação hipocampal apenas
influenciaria indiretamente a geração do potencial P300(23). Atualmente a
junção têmporo-parietal(17) vem sendo reconhecida como região principal para a
geração desse potencial. Resumidamente, o estimulo neural inicia-se em áreas
fronto-córtico-subcorticais(28) e, possivelmente, se irradia para o outro
hemisfério via corpo caloso(28), chegando às áreas associativas hipocampais
subcorticais centrais e parietais do lobo temporal, representando o período de
resposta do córtex de associação ao estimulo proveniente do córtex primário
(36). O gerador ou geradores específicos ainda permanecem incertos.
WEISSENBORN et al.(38) utilizaram diversos testes neurofisiológicos (EEG, ERP-
P300 e potencial visual evocado) em 66 pacientes com cirrose hepática de
diversas causas, excluindo as provocadas por álcool ou tóxicas e encontraram
prolongamento da latência do ERP-P300 em 90% dos pacientes nos estágios
iniciais de EH, sendo 19% dos pacientes sem sinais clínicos de EH. Esse estudo
demonstrou a sensibilidade do ERP-P300 para o diagnóstico da EH, principalmente
em seus estágios iniciais. O trabalho de DAVIES et al.(8), que utilizaram
potenciais ERP-P300, EEG e teste de conexão numérica-A em 33 cirróticos de
diversas causas, também descreveram latência aumentada do ERP-P300 no grupo com
cirrose e com sinais clínicos de EH. Nesse trabalho não foi encontrada
diferença significante entre o grupo com cirrose sem sinais clínicos de EH e o
grupo controle, diferentemente do que foi encontrado por WEISSENBORN et al.
(38). Em estudo recente, HOLLERBACH et al.(14) investigaram 45 pacientes com
cirrose, mas sem história prévia de uso abusivo de álcool, e encontraram atraso
na latência da onda P300 em 35% deles, dos quais 44% não apresentaram sinais
clínicos de EH.
Os diversos estudos apresentados valorizam o resultado do ERP-P300, entretanto
a variação nos critérios de inclusão e exclusão utilizados, bem como do modelo
do experimento, levou ao número alto na variação das percentagens de pacientes
cirróticos sem sintomas clínicos de EH, mas com alteração no ERP-P300, como
descrito por SAXENA et al.(34) que, ao avaliarem diversos estudos em
cirróticos, observaram variação de 30% até 84% na prevalência de EHM nesse
grupo. Conclui-se que essa variação dependeria principalmente do método
utilizado para o diagnóstico da EH, dos diferentes critérios de inclusão e
exclusão e independeria da causa da cirrose(34). A utilização de testes
padronizados ajudaria a diminuir essa variação. No grupo estudado, a causa da
cirrose não influenciou os resultados do ERP-P300, como demonstrado em outros
estudos(8, 27). Também devem ser considerados fatores de variabilidade como
temperatura, nível de luz e ritmo circadiano(25).
Sumarizando, a utilização de diversas baterias de testes neurofisiológicos e
neuropsicológicos para o diagnóstico dos distúrbios cognitivos nos pacientes
com cirrose, resulta em importante variação na sua incidência. O uso apenas de
testes neuropsicológicos, como preconizados por WEISSENBORN et al.(38), usando
apenas lápis e papel, é interessante, mas são testes que necessitam de devida
normatização, muitos deles influenciados pela baixa escolaridade(3) e dependem
de correção para a idade. A possibilidade de se utilizar um teste simples e
independente de fatores de variação importantes, facilitaria o diagnóstico da
EHM e diminuiria a variação encontrada na sua incidência. O ERP-P300
devidamente utilizado fornece informações importantes sobre a função cognitiva
do paciente e a sua latência é uma medida do tempo de processamento de
informações que, no grupo cirrótico, apresentou retardo significativo quando
comparado ao grupo controle. Este retardo poderia estar ligado a um déficit de
memória de curto prazo, atenção e concentração(9, 25). É, também, um
instrumento de utilização simples e não influenciado diretamente pelo nível de
escolaridade(36). De acordo com diversos estudos bem conduzidos, a origem da
cirrose (alcoólica versus outras) parece não interferir na comparação das
médias da latência do ERP-P300 entre os grupos(8, 27).
CONCLUSÃO
Os achados do presente estudo demonstram a utilidade do ERP-P300 para o
rastreio e diagnóstico de EHM nos pacientes com cirrose hepática. Além disso, a
realização do ERP-P300 é simples, depende de fatores controláveis de variação e
tem fácil reprodutibilidade.