Transtornos esofágicos
Transtornos esofágicos
Peter J. KahrilasI; André J. P. M. SmoutII
IDivision of Gastroenterology, Department of Medicine, Feinberg School of
Medicine, Northwestern University, Chicago, Illinois, USA
IIDepartment of Gastroenterology and Hepatology, Academic Medical Center,
Amsterdam, The Netherlands
Correspondência
SINTOMAS ESOFÁGICOS
Apesar dos avanços em testes de diagnóstico para as doenças gastrointestinais
(GI), uma cuidadosa história clínica continua a ser fundamental para a
avaliação de um paciente com sintomas gastrointestinais superiores. A maioria
dos pacientes que apresentam transtornos esofágicos terá uma doença
relativamente leve e não fatal e, em muitos casos, uma história cuidadosamente
obtida levará a um tratamento rápido e preciso.
Como alternativa, também é importante identificar os pacientes portadores de
uma maior probabilidade de doença subjacente grave para que possam ser
investigados e geridos de forma rápida. Como parte da história, os médicos
devem inquirir sobre hábitos alimentares do paciente, bem como consumo de fumo
e álcool. Alguns indivíduos podem experimentar sintomas apenas quando comem
excessivamente, particularmente se feito tão tarde da noite, antes de ir para a
cama.
Os principais sintomas esofágicos são quatro, cada um deles associado a um
distúrbio funcional de esôfago, sendo: azia, dor no peito, disfagia e globus.
Azia (pirose)
Este é o sintoma de origem esofágica encontrado com maior frequência. Azia é
caracterizada por um desconforto ou sensação de queimação atrás do esterno que
irradia para o epigástrio e pescoço(1). É um sintoma intermitente, mais
comumente experimentado dentro de 60 min após refeição, durante o exercício ou
enquanto estiver deitado ou reclinado. O desconforto é aliviado com água ou
antiácido, mas com freqüência interfere nas atividades habituais. Dada a
elevada prevalência do refluxo gastroesofágico (RGE), seu valor preditivo como
diagnóstico é alto quando a azia é o sintoma dominante ou exclusivo. A
associação é tão forte que, em tais casos, a terapia empírica para DRGE tornou-
se uma estratégia aceita na presença deste sintoma(2). No entanto, o termo
"azia" é frequente e indevidamente usado e/ou referido como outros termos, tais
como "indigestão" ou "regurgitação", obrigando o médico a esclarecer o
significado pretendido.
Dor torácica
Este é um sintoma de esôfago surpreendentemente comum com características muito
semelhantes à dor cardíaca, sendo esta discriminação muito difícil em alguns
casos. Dado o potencial de morbidade e mortalidade associadas com a dor
cardíaca, convém sempre ter atenção para esta opção antes da esofágica(3). Dor
esofágica geralmente é descrita como uma sensação de pressão no meio do peito,
irradiando-se para a mandíbula, costas ou braços. A etiologia exata da dor
esofágica é desconhecida, mas é demasiado simplista interpretá-la como
indicativa de espasmo esofágico ou outra manifestação de uma anormalidade
contrátil.
Raramente tais indivíduos objetivamente têm espasmo e nenhuma correlação pode
ser estabelecida entre pequenas alterações da contratilidade esofágica e
eventos de dor. Mas, provavelmente, as semelhanças com a dor cardíaca resultam
do fato de que os dois órgãos compartilham um plexo de nervos e as terminações
nervosas da parede esofágica terem pouca capacidade discriminativa entre os
estímulos(4).
Distensão esofágica ou mesmo estimulação química (por exemplo, com ácido) será
frequentemente percebida como dor torácica(5,6). Na verdade, a DRGE é sua causa
mais comum que a dismotilidade esofágica(3).
Disfagia
Este sintoma é relatado em algum grau em mais de 30% dos indivíduos com DRGE.
Pode ser causado por estenose péptica, anel de Schatzki, disfunção
peristáltica, ou simplesmente pela inflamação da mucosa associada à esofagite.
A disfagia também ocorre na ausência de qualquer anormalidade identificável,
caso em que é provável ser resultado de sensibilidade anormal ao movimento de
bolus durante o peristaltismo. Disfagia esofágica é frequentemente descrita
como uma sensação de comida "abrir" o caminho para baixo ou até mesmo da parada
do alimento no tórax por um período prolongado. Distinções importantes são
entre disfagia de alimento exclusivamente sólido ao invés de líquidos e
sólidos, se é episódica ou disfagia constante e progressiva, ou disfagia não
progressiva. A disfagia para líquidos, como também para os alimentos sólidos,
sugere uma anormalidade motora do esôfago, como a acalásia(7). Por outro lado,
a disfagia a alimentos sólidos exclusivamente é sugestiva de uma anormalidade
estrutural como estenose, anel de Schatzki ou tumor e sempre deve ser
investigada. Se a disfagia é apenas episódica, sugere um comprometimento leve
do lúmen esofágico. Estes indivíduos podem relatar sintomas discrepantes: ou
percebem que não há impedimento ao trânsito de alimentos ou que estão
completamente obstruídos a tal ponto de até mesmo os líquidos voltarem.
Disfagia progressiva para comida sólida é um achado preocupante, especialmente
quando em associação à perda de peso, sendo esta a apresentação clássica do
câncer de esôfago. A percepção do paciente quanto ao local de parada do
alimento no esôfago é grosseiramente imprecisa.
Cerca de 30% das obstruções esofágicas distais são percebidas como disfagia
cervical, com frequência induzindo a solicitar uma avaliação de distúrbio de
deglutição orofaríngea. Em tais casos, o esôfago pode geralmente ser
identificado como o culpado devido à ausência de sintomas concomitantes,
geralmente associados à disfagia orofaríngea, tais como aspiração, regurgitação
nasofaríngea, tosse, sialorreia ou óbvio comprometimento neuromuscular.
Sensação de Globus
Este sintoma, rotulado como alternativa "globus hystericus", é a percepção de
um nódulo ou plenitude na garganta sentidos independentemente da deglutição(8).
Na verdade, embora tais pacientes sejam frequentemente encaminhados para uma
avaliação da disfagia, a sensação de globus muitas vezes é aliviada pela
deglutição. Como está implícito pelo seu outro nome (globus hystericus), a
sensação de globus muitas vezes ocorre no cenário de distúrbios de ansiedade ou
em obsessivos-compulsivos(9). A experiência clínica ensina que tal sintoma é
atribuível à DRGE em uma fração substancial de pacientes, embora essa
experiência amplamente não seja refletida na literatura científica(10).
PIROSE RECORRENTE
Anamnese
Advogada de 34 anos de idade é encaminhada ao gastroenterologista pelo seu
médico de atenção primária em razão de sintomas de refluxo "resistente à
terapia". Tem sofrido por cerca de 5 anos com episódios diários de pirose que
responderam parcialmente ao tratamento com o inibidor de bomba de prótons
(IBP), prescrito pelo seu médico de atenção primária. Endoscopia do trato
gastrointestinal superior (EGD) realizada 3 anos antes não revelou sinais
macroscópicos de esofagite, bem como de hérnia de hiato.
Quando o gastroenterologista obtém a história, fica claro que os episódios de
dor retroesternal em queimação (Caixa 1, Figura_1) experimentados pela
paciente, duram de 10 minutos a algumas horas, não apresentam relação temporal
clara com as refeições e não são dependentes da postura. A paciente não sofre
de regurgitação nem de outros tipos de dor no peito. Não há disfagia,
odinofagia nem outros sinais clínicos de alarme (Caixa 2). O uso de omeprazol
40 mg diariamente (Caixa 3) parece melhorar um pouco os sintomas, mas o
resultado é descrito como insatisfatório, mesmo com uma dose de 40 mg duas
vezes ao dia (Caixa 4). A paciente solicita tratamento cirúrgico.
O gastroenterologista decide repetir a endoscopia do trato GI superior (Caixa
6), após o período de 2 semanas sem IBP. Na endoscopia não são observadas
anormalidades macroscópicas (Caixa 7). Não são obtidas biópsias. São, então,
realizadas pHmetria e impedanciometria esofágicas de 24 horas (Caixa 9) após a
paciente interromper o omeprazol por 7 dias. A exposição esofágica ao ácido
(Caixa 10) encontra-se na faixa normal (tempo com pH<4: ereto 3,2%, supino 0%,
total 2,3%). Durante o registro de 24 horas a paciente apresenta seis episódios
do sintoma. Nenhum destes episódios é associado temporalmente ao início de um
episódio de refluxo, seja ácido ou não-ácido, resultando em uma probabilidade
de associação de sintoma (PAS) de 0% (Caixa 12). Antes da colocação do cateter
de pH/impedância, foi realizado estudo manométrico para medir a distância do
esfíncter esofágico inferior (EEI) para a narina (Caixa 13). Durante este exame
foi observada peristalse esofágica normal bem como pressão e relaxamento normal
do EEI em repouso (Caixa 14). Conclui-se pelo diagnóstico de pirose funcional
(Caixa 16).
DOR TORÁCICA RECORRENTE COM SUSPEITA DE ORIGEM ESOFÁGICA
Anamnese
Professora aposentada de 72 anos de idade consulta um gastroenterologista,
encaminhada pelo cardiologista. Nos últimos 2 anos experimentou vários
episódios de dor retroesternal grave, que se irradia para a mandíbula e para o
braço esquerdo; algumas vezes também há irradiação da dor para a linha média
das costas (Caixa 1, Figura_2). Antes do início da dor torácica a paciente
raramente apresentou problemas de saúde. O seu apêndice foi removido aos 22
anos de idade e submeteu-se a uma histerectomia aos 52 anos, em razão de
fibromas. Não apresenta história familiar relevante de doença gastrointestinal.
A dor no peito ocorre com uma incidência média de dois episódios por semana,
com grandes variações na frequência da ocorrência; é descrita como uma sensação
opressiva. O início da dor não está claramente relacionado com a ingestão de
refeição e não há disfagia entre ou durante os episódios. Não há pirose,
regurgitação nem odinofagia típicos. O início da dor não está claramente
relacionado ao exercício ou à postura corporal. O exame físico dos pulmões e da
parede torácica é normal (Caixa 2). Em três ocasiões a paciente foi internada
na unidade coronariana de um grande hospital geral. Não foi encontrada
evidência de isquemia miocárdica nem de infarto em nenhuma das ocasiões. A
radiografia do tórax é normal. A angiografia coronariana revelou artérias
coronárias normais e o teste de esforço foi normal (Caixas 5 e 6). Antes do
encaminhamento ao gastroenterologista, foi feita tentativa terapêutica com
omeprazol 40 mg 2 vezes ao dia (Caixa 8). Após 6 semanas deste tratamento, a
paciente relatou que a dor no peito continuava ocorrendo (Caixa 9).
O gastroenterologista solicita endoscopia do trato GI superior (Caixa 11) em
que é observada junção escamo-colunar normal, posicionada 1 cm proximal à
impressão diafragmática (Caixa 12). Neste estágio, o médico decide solicitar
exames adicionais: manometria esofágica (Caixa 18), seguida por pHmetria de 24
horas, sem uso de inibidor de bomba de próton (Caixa 14). Estes apresentam
peristalse normal, função do EEI normal (Caixa 19) e exposição fisiológica ao
ácido (tempo com pH < 4:3,2%) (Caixa 15). Durante o estudo de 24 h não
ocorreram episódios de dor no peito. Portanto, não pode ser estabelecida a
probabilidade de associação de sintoma (Caixa 17). Conclui-se por diagnóstico
de dor torácica funcional com origem esofágica presumida (Caixa 21).
DISFAGIA
Anamnese
Motorista de ônibus de 44 anos de idade é encaminhado ao gastroenterologista
pelo seu médico de atenção primária em função de disfagia para alimentos
sólidos e líquidos (Caixa 1, Figura_3). Os sintomas começaram há cerca de 1
ano. Inicialmente eram intermitentes e leves, mas nas últimas semanas a
percepção do bolo alimentar trancar ao nível médio-torácico é percebida em
quase todas as refeições. Não apresenta dor no peito nem odinofagia, nem há
características de disfagia orofaríngea e o exame físico para causas não
esofágicas da disfagia é negativo (Caixa 2). Seu peso corporal tem permanecido
constante em 92 kg. O paciente experimenta pirose 1 vez por semana em média.
Breve tentativa terapêutica com um antagonista do receptor H2 iniciada pelo seu
médico de atenção primária, eliminou a pirose, mas não melhorou a disfagia. Sua
história médica, por outro lado, é normal e o paciente não relata uso de nenhum
medicamento. Não há história familiar de doença gastrointestinal.
Realizou-se endoscopia do trato GI superior (Caixa 4), excluindo-se esofagite
macroscópica ou qualquer lesão orgânica que causasse obstrução esofágica (Caixa
5) e o exame microscópico das biópsias obtidas do esôfago distal, assim como do
proximal, mostra que não há nenhuma evidência de esofagite eosinofílica ou de
outra anormalidade histológica. A deglutição de bário com estimulação com bolo
de marshmallow (Caixa 6) não revela lesão estrutural nem comprometimento do
trânsito através do esôfago (Caixa 7). Em função da presença de sintomas leves
de refluxo (Caixa 9), inicia-se uma tentativa com IBP omeprazol 40 mg duas
vezes ao dia (Caixa 10). Isto não resulta em melhora da disfagia do paciente
(Caixa 11).
O gastroenterologista então solicita um estudo manométrico do esôfago (Caixa
13), que mostra peristalse esofágica normal, pressão normal do EEI (esfíncter
esofágico inferior) e relaxamento normal do EEI após a deglutição (Caixa 14). O
monitoramento concomitante da impedância confirma o trânsito completo do bolo
em 9 de 10 deglutições, achados que estão dentro da faixa normal. O paciente
nega novamente qualquer sintoma cervical (Caixa 16). Conclui-se pelo
diagnóstico de disfagia funcional (Caixa 20).
SENSAÇÃO DE BOLO NA GARGANTA
Anamnese
Empresária de um pequeno negócio, de 30 anos de idade, consulta seu médico de
atenção primária (MAP) em razão de sensação de bolo na garganta (Quadro 1,
Figura_4). Ela tem apresentado este sintoma de forma intermitente por cerca de
1 ano, mas a intensidade tem aumentado nas últimas semanas. Não há nenhum
evento desencadeador óbvio. Sua deglutição é normal e sem dor. Não há disfagia
(Quadro 4) nem odinofagia e ela não apresenta rouquidão nem qualquer outra
alteração em sua voz (Quadro 6). O sintoma melhora ao se alimentar. Mesmo assim
a paciente tem a impressão de que alguma coisa está parada na sua garganta.
Raramente tem pirose e não perdeu peso. Exceto por isto, a paciente está sadia.
Não fuma e ingere álcool com moderação (Quadro 6). Com exceção de
anticoncepcional oral, ela não faz uso de nenhum medicamento.
O MAP examina o pescoço, a garganta e a cavidade oral da paciente e não
encontra anormalidades (Caixa 2). Não há massas palpáveis, nem linfonodos ou
tireoide aumentados. Tem-se a impressão de que a paciente está experimentando
alguma ansiedade e verifica se a sensação de bolo está temporalmente
relacionada ao estresse, mas a paciente nega esta associação. Convencido de que
está lidando com um distúrbio funcional, o MAP explica à paciente que não há
nada seriamente errado e tenta tranquilizá-la.
Entretanto, 2 semanas mais tarde a paciente consulta novamente o médico em
função da continuidade da sensação de bolo. É então, encaminhada a um
otorrinolaringologista, pois revendo sua história, tivera exposição substancial
a fumo passivo e estava bastante preocupada com isto (Caixa 7). O especialista
não encontrou nenhuma anormalidade no exame que incluiu a nasolaringoscopia
(Caixa 8). Por existir uma associação entre o globus e o achado endoscópico de
mucosa gástrica ectópica no esôfago proximal e o câncer esofágico, a paciente é
encaminhada para endoscopia (Caixa 10). Não foram encontradas anormalidades
(Caixa 11). Iniciou-se tentativa de tratamento de 6 semanas com IBP em função
da presença de alguma pirose (Caixa 14). Isto não resultou em melhora da
sensação de bolo (Caixa 15). A paciente é novamente tranquilizada sobre a
natureza benigna da sua condição e é feito um diagnóstico de globus(Caixa 17).
CONFLITO DE INTERESSE
Garantia do artigo: Rome Foundation.
Contribuições específicas dos autores:Peter J. Kahrilas: conceito e desenho,
análise e interpretação dos dados, rascunho do artigo.
André J. P. M. Smout: coautoria.
Apoio financeiro:Financiado com a subvenção da Rome Foundation.
Potenciais conflitos de interesse: Nenhum.