Residência em saúde da família: a preceptoria de enfermagem lapidando seu
objeto de trabalho
RELATO DE EXPERIÊNCIA
ENSINO
Residência em saúde da família: a preceptoria de enfermagem lapidando seu
objeto de trabalho
Eliany Nazaré OliveiraI; Maria do Socorro Carneiro LinharesII; Maristela Inês
OsawaIII; Anna Vicente SantiagoIV; Maria Alzenir C. PonteV; Maria Socorro de
Araújo DiasIV
IEnfermeira, Mestra em Enfermagem, Professora da Universidade Estadual Vale do
Acaraú -UVA
IIEnfermeira, Especialista em Saúde Pública, Técnica da Secretaria de Saúde e
Assistência Social de Sobral
IIIEnfermeira, Mestranda em Enfermagem pela UFC-CE, Professora da Universidade
Estadual Vale do Acaraú -UVA
IVEnfermeira, Técnica da Secretaria de Saúde e Assistência Social de Sobral
VEnfermeira, Especialista em Metodologia do Ensino Superior, Professora da
Universidade Estadual Vale do Acaraú -UVA
VIEnfermeira, Mestranda em Enfermagem pela UFC-CE, Professora da Universidade
Estadual Vale do Acaraú -UVA
INTRODUÇÃO
Em 1994, o Ministério da Saúde implantou o Programa de Saúde da Família - PSF,
com o intuito de reorientação do modelo brasileiro vigente. Em 1995, o Governo
do Estado do Ceará, através de sua Secretaria de Saúde, definiu o PSF como
sendo um programa estruturante por viabilizar a inversão do modelo de atenção à
saúde até então predominantemente centrado na doença, com enfoque individual.
Segundo dados da Secretaria da Saúde do Estado, até o final de dezembro de 1999
havia 730 equipes aprovadas pela Comissão Intergestores Bipartite do Ceará.
A partir da pesquisa desenvolvida porAndrade (1998) sobre o PSF no Ceará, foram
identificadas varias dificuldades no processo de trabalho das equipes que atuam
no PSF. Entre estas o despreparo dos profissionais para desenvolver atividades
na comunidade foi a mais significativa. Este fato demonstra as limitações nos
cursos de graduação de Enfermagem e Medicina na preparação dos profissionais.
ParaSerra (1999), do ponto de vista técnico, o maior desafio está na
capacitação dos atuais profissionais e na formação dos que hoje estão nas
escolas. Neste contexto, percebemos que a formação e a qualificação dos
profissionais constituem um desafio a ser enfrentado e vencido.
Portanto, faz-se necessário corrigir com urgência as deficiências de
conhecimentos, habilidades e prática dos membros das equipes de saúde da
família em termos da atenção primária de saúde, para que os resultados
esperados por esta inversão do modelo de atenção em saúde sejam alcançados,
repercutindo em real impacto na qualidade de vida e conseqüente adesão desta
proposta por parte da população.
Atualmente, o município de Sobral tem 31 equipes saúde da família, compostas
cada uma de um médico e um ou dois enfermeiros além de auxiliares de enfermagem
e agentes de saúde, totalizando cerca de 70 profissionais de nível superior,
cobrindo 100% da população do município.
Neste ano serão implantadas mais 9 equipes; a fim de atender a solicitação do
Ministério da Saúde que oficializou, em novembro de 1999, a redução do número
estimado de famílias para cada equipe, anteriormente de 4.500 pessoas
(aproximadamente 1000 famílias) para 3.500 pessoas, o que representa uma média
de 700 famílias para cada equipe.
Há constatação da falta de uma preparação adequada dos profissionais de saúde
para atuarem na atenção primária. A idéia de criar uma Residência/
Especialização em Saúde da Família no Município partiu da necessidade de
capacitar os profissionais para implementar todas as ações previstas na
referida estratégia. A escolha pela realização de um curso de residência, deu-
se com base na necessidade de um forte componente de treinamento em serviço,
além de atividades teóricas. Impulsionadas pelo desejo de melhorar este quadro,
a Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA e a Secretaria de Saúde e
Assistência Social de Sobral, com apoio do Pólo de Capacitação, Formação e
Educação Permanente de Pessoal Estratégico para Saúde da Família no Ceará,
elaboraram o Projeto da Residência/Especialização em Saúde da Família.
A PROPOSTA DA RESIDÊNCIA
A proposta da residência é multiprofissional, e agrega enfermeiros e médicos,
há um programa básico, onde estão presentes componentes clínicos assistenciais,
bem como o instrumental básico para uma abordagem coletiva e para as questões
ligadas ao processo de gestão de uma unidade de saúde. Capacitar estes
profissionais para atuar na estratégia Saúde da Família adequando-os para o
novo modelo de atenção proposto é o objetivo geral do curso. O curso destina-se
a profissionais que atuem na atenção básica de saúde, especificamente no
Programa Saúde da Família- PSF.
A primeira etapa do curso compreende 460 (quatrocentas e sessenta) horas/aula
teóricas a serem cumpridas no primeiro ano para obtenção do título de
Especialista em Saúde da Família. Nesta fase, são desenvolvidos conteúdos
teóricos que fundamentam o Programa Saúde da Família, que podem variar de 20 a
60 horas, de acordo com a importância do tema, com o seguinte conteúdo
programático: I Saúde, Família e Comunidade, II Processo de Construção do SUS e
PSF, III Educação Popular em Saúde, IV Planificação e Avaliação em Saúde, V
Epidemiologia e Bio-Estatística -Medicina Baseada em Evidência, VI Organização
e Gerenciamento de Serviços, VII Vigilância à Saúde e Sistema de Informação em
Saúde, VIII Metodologia do Trabalho Científico, IX Famílias em Situações de
Risco, X Promoção da Saúde, XI Acompanhamento do Processo Monográfico.
Como parte do conteúdo teórico, são administradas aulas que fazem parte do
Ambulatório no Contexto da Saúde da Família, inserido no conteúdo programático.
São desenvolvidas através de módulos clínicos às sextas - feiras (14h às 17h).
As áreas previstas são as seguintes: Problemas da mulher, da criança, do
adolescente, proteção à saúde do adulto, problemas crônico - degenerativos,
problemas infecciosos, urgências e procedimentos cirúrgicos.
Atividades práticas serão realizadas, a partir de fevereiro de 2000, em
serviços e programas especializados que fazem parte da rede de assistência à
saúde do Município. Nestes setores, os residentes terão a oportunidade de
permanecer 16 horas mensais. Neste etapa, médicos e enfermeiros serão inseridos
nos serviços através do rodízio com acompanhamento de profissionais ligados à
rede de saúde local, vivenciando o cotidiano desses profissionais, abstraindo
conhecimentos para sua prática. Os serviços que irão compor as atividades
práticas são: Unidade Clínica, Unidade Cirúrgica, Serviço de Saúde Mental -
CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), Vigilância à Saúde, Ambulatório de DSTs/
AIDS, Ambulatório de Dermatologia Sanitária, Ambulatório de Neurologia, Serviço
de Prevenção do Câncer e Ambulatório de Clínica.
O treinamento em serviço acontece nas unidades de saúde da família onde o
profissional atua, dentro da perspectiva multiprofissional e interdisciplinar.
Os residentes são acompanhados por preceptores que dedicam quatro horas
semanais para essa atividade, quando são discutidas as dificuldades durante o
processo de trabalho, os casos mais graves são acompanhados pelo preceptor,
além da realização de trabalhos em parceria, residente - preceptor.
DINÂMICA DE ENSINO: LAPIDANDO O OBJETO DE TRABALHO DA ENFERMAGEM
Como a principal atividade da residência está centrada no treinamento em
serviço, de agora em diante, nos deteremos na descrição desta experiência que
se concretiza principalmente através da preceptoria. Os residentes da área de
enfermagem são supervisionados por enfermeiros, vale salientar que, como o
Programa Saúde da Família se baseia numa lógica interdisciplinar, há momentos
da supervisão que são realizados por outras áreas. Cada residente deve ter no
mínimo uma visita semanal de quatro horas em seu local de treinamento. Estas
visitas têm o intuito de acompanhar o processo de trabalho do profissional,
quando serão discutidas e avaliadas as condutas dos residentes. São priorizados
a organização do serviço, manejo de casos complexos, atividades dos programas,
atividades comunitárias de promoção e educação em saúde.
Nossa experiência como preceptoras da enfermagem vem sendo construída com base
nos problemas práticos que emergem no dia-a-dia das equipes e do trabalho de
cada enfermeiros nas unidades do PSF. A implantação da residência põe-se como
um desafio, pois sua característica interdisciplinar é algo que até o momento
não foi desenvolvido no sistema de ensino do Brasil.
Nos quatros meses de atividades de preceptoria, já podemos descrever alguns
caminhos e a dinâmica de ensino que temos trilhado. Podemos dividir essas
experiências em 5 áreas: atividades coletivas de promoção à saúde, organização
do serviço, mobilização e participação comunitária, atividades de pesquisa e
desenvolvimento da enfermagem clínica.
A preceptoria de enfermagem dirigida para a pesquisa iniciou com o" Estudo das
condições de Saúde, Educação e Vida das crianças de 5 a 9 anos da zona urbana
do Município de Sobral" e tem o objetivo de atender, até abril deste ano, 4000
crianças. A pesquisa promove cursos e palestras a fim de capacitar os
residentes para coletar dados fidedignos. O acompanhamento do preceptor de
enfermagem da residência em saúde da família se dá no desenvolvimento da
pesquisa durante a consulta de enfermagem, quando são investigados: nutrição,
desenvolvimento estatu-ponderal, acuidade visual, níveis de pressão arterial,
prevalência de anemia e de enteroparasitoses, como também, índices de violência
e de acidentes.
Este estudo é um levantamento inédito no Brasil, pois a população estudada
pouco comparece nos serviços de saúde. Os resultados dessa pesquisa
constituirão um enorme banco de dados que poderá ser utilizado pelos residentes
na elaboração de suas monografias de fim de curso de especialização.
A preceptoria de enfermagem tem buscado conteúdos para a prática do processo de
trabalho e a reflexão dos alunos na organização dos serviços no âmbito local,
de modo que atendam a dimensão do modelo proposto para o Programa Saúde da
Família.
Nesse sentido, atuamos na organização do serviços através de:
- planejamento das ações intervencionistas com base nos fatos epidemiológicos
da área;
- organização do fluxo do usuários na Unidade, com observância ao motivos que
os levaram a procurar o serviço;
- supervisão e acompanhamento das atividades do pessoal auxiliar, inclusive com
elaboração de programas de educação em serviço e readequação de papéis de
acordo com as habilidades de cada um na realização de tarefas;
- gerenciamento da unidade no que diz respeito a previsão do material e
equipamento necessários ao desenvolvimento das atividades da equipe.
Nesta experiência, uma das dificuldades que tem sido levantada pelos
enfermeiros é de otimizar o tempo, de modo a permitir a execução de atividades
que lhes foram atribuídas. É esperado que o enfermeiro seja capaz de dividir
seu tempo em atividades assistências em um período e as da organização de
serviços no outro. Dentro da atuação interdisciplinar das equipes do Programa
Saúde da Família, o desenvolvimento do processo de gerenciamento é o que faz
diferenciar o trabalho do enfermeiro do restante da equipe.
Quanto às ações coletivas de promoção à saúde, a preceptoria tem estimulado e
acompanhado atividades de intervenção envolvendo grupos. Temos como exemplo
grupos de idosos, de adolescentes, de mulheres em idade fértil, entre outros.
Nestes espaços, procuramos enfocar a manutenção da saúde partindo do conceito
de saúde não apenas como ausência de doença, resgatando assim as diretrizes da
proposta do Programa Saúde da Família.
A preceptoria nas área da enfermagem clínica e cirúrgica começõu com um
diagnóstico das dificuldades encontradas pelos residentes em seu local de
trabalho, em seguida houve a elaboração de um plano de ação teórico - prático
que será desenvolvido no Laboratório de Enfermagem do Curso de Enfermagem da
UVA, em um hospital de grande porte do Município e nas unidades básicas de
saúde.
Nas ações de mobilização e participação popular comunitária, tivemos o
desenvolvimento das oficinas de territorialização, que foram divididas em:
diagnóstico da área, análise de situação e elaboração de um plano de ação. A
comunidade, juntamente com a equipe do Programa Saúde da Família, construiu uma
proposta de intervenção para os problemas encontrados. A preceptoria participou
orientando o planejamento e execução das oficinas. Atividades como estas
colocam as equipes do PSF no caminho da do resgate da cidadania e transformam a
comunidade em sujeitos políticos e sociais, pois, segundoBarros (1994,p.30)
"sujeito é o ser que atua, que age, que partcipa das decisões que o afetam, que
luta para determinar quais são os seus direitos e exige o que for necessário
para que possa usufruí-los."
BARREIRAS E AVANÇOS
As dificuldades dizem respeito ao programa interdisciplinar. Geralmente a
formação dos profissionais da área da saúde é permeada de deficiências nos
aspectos que envolvem a interdisciplinaridade. SegundoVeiga Neto (1999), a
formação universitária do enfermeiro é calcada numcurriculummultidisciplinar
representado por um amontoado de saberes não articulados, o que conduz a uma
fragmentação do conhecimento produzindo uma dissociação da teoria em relação à
pratica. O Programa Saúde da Família tem em sua essência o intercâmbio
harmônico entre profissionais e setores e necessita de uma abordagem holística.
Para isto, deve haver a complementaridade das ações entre cuidadores e
serviços. Para o Ministério da Saúde a mudança do modelo tradicional exige a
integração entre os vários níveis de atenção e os instrumentos para isto é o
trabalho interdisciplinar.Veiga Neto(1999) define interdisciplinaridade como a
relação entre saberes criando um saber integrado, uma superdisciplina.
Uma das barreiras encontradas é o perfil dos egressos, pois muitos não
apresentam habilidades e competências para desempenhar suas funções
especificas. Muitas deficiências são resultado de um inadequado curso de
graduação. Essa constatação também foi feita porSerra (1999,p.5) em uma
entrevista, quando falou: "do ponto de vista técnico o maior desafio está na
capacitação dos atuais profissionais e na formação dos futuros. O Ministério da
Saúde tem apoiado a formação de pólos de capacitação. A mudança tem que vir dos
dois lados: o apoio à formação profissional em nível de graduação, às pesquisas
e à constituição de programas de capacitação em serviço, num diálogo permanente
entre as universidades e o setor público de prestação de serviços."
A implantação da Residência em Saúde da Família constitui um avanço. Reunir um
programa multiprofissional e interdisciplinar com o intuito de formar
profissionais qualificados para um novo modelo é um grande desafio. A
supervisão de profissionais de outras áreas tem trazido resultados positivos.
Temos encontrado apoio da Psicologia, Fisioterapia, Odontologia, Serviço
Social, Educação Física, Terapia Ocupacional, entre outros. Desta forma,
acreditamos que a Enfermagem, ao inserir-se neste projeto, está contribuindo
para enriquecer sua prática, permitindo a lapidação de seu objeto de trabalho
dentro desta nova proposta que é o PSF.