Saúde da família: cuidado no domicílio
RELATO DE EXPERIÊNCIA
ENSINO
Saúde da família: cuidado no domicílio
Maria Rizoneide Negreiros de AraújoI; Luciana Carmem SampaioII; Maria Lígia
Mohallem CarneiroIII; Roseni Rosângela de SenaIV
IProfessora Adjunta (aposentada) do Depto. Enfermagem Materno Infantil e Saúde
Pública da Escola de Enfermagem da UFMG. Doutoranda em Enfermagem pela EEUSP
IIAluna do 3ª Período do Curso de Graduação da EE. UFMG. Bolsista de Iniciação
Científica do CNPq
IIIProfessora Assistente II do Depto. de Enfermagem Materno Infantil e Saúde
Pública da Escola de Enfermagem da UFMG. Doutoranda em Enfermagem pela EEUSP
IVProfessora Adjunta I do Depto. de Enfermagem Materno Infantil e Saúde Pública
da Escola de Enfermagem da UFMG. Doutora em Enfermagem pela EEUSP
INTRODUÇÃO
Os cuidados de saúde dispensados às pessoas nos domicílios não constituem uma
prática nova. Os programas de saúde pública sempre enfatizaram ações de
promoção e prevenção voltadas para grupos familiares em seus domicílios, quase
sempre vinculados à atuação em atendimento à demandas específicas. Antes do
surgimento dos grandes hospitais e da modalidade de assistência ambulatorial,
no final do século XVIII, na Europa, os cuidados domiciliares já eram
largamente empregados (Oliveira; Berger, 1996). Especificamente no campo da
enfermagem, Florence Nightingale ao se referir à saúde como um estilo de vida
afirmou, em 1863:"Cresce a convicção de que em todos os hospitais, por melhor
que seja a sua administração, perdem-se vidas que poderiam ser poupadas; e que,
via de regra, o pobre que recebesse boa assistência médica, cirúrgica e de
enfermagem se recuperaria melhor na choçã miserável em que vive do que no mais
refinado ambiente hospitalar" (ABEn, 1982).
Independente do contexto vivenciado por Florence Nightingale, dos viéses
histórico-ideológicos que permearam sua atuação, bem como as difierenças entre
o ecossistema do século XIX e o do tempo atual, o que hoje se advoga no campo
da saúde domiciliar já era preconizado, quando esta enfermeira deu início a
revolução científica na enfermagem mundial. Atualmente, em países como a
Inglaterra, 20% das intervenções de saúde são prestadas fora das instituições
de saúde (Oliveira; Berger, 1996).
No Brasil, a prestação de cuidados no domicílio não tem sido uma prática comum
nas instituições de saúde públicas e privadas. Entretanto no início do século,
a atividade prioritária no combate às grandes endemias que assolaram os grandes
centros, eram as visitas domiciliares (Barreira, 1992). A partir deste fato,
foi reconhecida a necessidade de formação de profissionais para este exercício.
No entanto, esta formação era direcionada à prestação do cuidado para o doente
ou para os fatores de risco de determinados agravos e não para a família como
grupo social (Oliveira; Berger, 1996).
Com a institucionalização do Sistema Único de Saúde - SUS, a partir da Lei
Federal nº 8080/90 (BRASIL, 1990), estratégias vêm sendo pensadas e
implementadas para a consolidação do seu modelo. Uma delas é a proposta do
Ministério da Saúde, em 1994: o Programa de Saúde da Família-PSF (FUNDAÇÃO
NACIONAL DE SAÚDE, 1994). O PSF, na forma como foi concebido, surge como
resposta às propostas de atenção primária de saúde que ocorreram na década de
setenta e ao movimento da Reforma Sanitária, que ocorreu na década de oitenta,
culminando com a implantação do SUS. Neste contexto, a construção de um novo
modelo assistencial embasado nas estratégias do PSF, propõe a organização das
práticas de saúde voltadas para a atenção à família. Um dos pressupostos das
estratégias do PSF elege a família e seu espaço social como o foco da atenção à
saúde (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1996). Assim, o domicílio é considerado o cenário
onde ocorrem as relações sociais geradoras de conflitos e de outros fatores de
risco de adoecer, sendo também o local privilegiado para o desenvolvimento de
ações de promoção e manutenção da saúde.
O Ministério da Saúde inclui dentre as atividades inerentes a atuação das
equipes de saúde da família, a visita domiciliar. Ao se referir a mesma, agrega
o componente internação domiciliar não como um substituto da internação
hospitalar tradicional, e sim, como um recurso empregado com o "intuito de
humanizar e garantir maior qualidade e conforto ao paciente" (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 1997, p.14). Em acréscimo, destaca que a internação domiciliar só é
indicada quando as condições clínicas e familiares do cliente forem favoráveis.
O cuidado dispensado à saúde no domicílio propicia à equipe de saúde da
família, a inserção no cotidiano do cliente; identificando demandas e
potencialidades da família, em um clima deparceria terapêutica. Para isso
concorrem fatores como a humanização do cuidado, a ausência de riscos
iatrogênicos de origem hospitalar, o resgate das formas de cuidar calcadas nas
práticas tradicionalmente usadas pela população, embasadas na sua bagagem
cultural.
Em relação ao custo desta atividade, considera-se que, embora seus custos
possam, pela natureza da mesma, ser considerados onerosos, ela é um instrumento
fundamental na educação para a saúde da população, além de propiciar melhoria
da qualidade da atenção, oferecida com eqüidade. (Oliveira; Berger, 1996).
O contato com os profissionais enfermeiros e médicos integrantes das equipes de
saúde da família, que freqüentam o Curso de Especialização em Saúde da Família
ministrado pela Universidade Federal de Minas Gerais e pela Escola de Saúde de
Minas Gerais, nos tem provocado inquietações. Os relatos de experiências
discutidos no decorrer do curso, evidenciam que as demandas de internação
domiciliar, a natureza dessas demandas e as condutas adotadas pelas equipes,
carecem de respaldo, inclusive para diferenciá-la das visitas domiciliares e da
própria internação hospitalar.
Buscando aproximação com a realidade desses profissionais, assim como
contribuir para a construção de referenciais para uma "tão nova e tão antiga
prática", optamos pela realização deste estudo, partindo das seguintes questões
norteadoras:
- foram identificadas demandas de internação domiciliar no cotidiano de
trabalho?
- qual a natureza destas demandas?
- quais os fatores favoráveis apontados?
- quais os fatores desfavoráveis apontados?
Quais as principais condutas adotadas pelas equipes, nas situações que
consideraram como internação domiciliar?
Essas questões nos levaram a estabelecer os objetivos que se seguem.
OBJETIVOS
- Identificar as demandas de internação domiciliar dos profissionais
enfermeiros e médicos que integram equipes de saúde da família.
- Identificar os fatores favoráveis e desfavoráveis nas situações consideradas
pelos profissionais como passíveis de internação domiciliar.
Identificar as condutas adotadas pelos profissionais frente a situações
consideradas como internação domiciliar.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo observacional, transversal e descritivo. O instrumento de
coleta de dados utilizado foi um questionário com perguntas estruturadas
relativas às questões norteadoras previamente estabelecidas para este estudo.
Trabalhou-se com quarenta e um (41) profissionais enfermeiros e médicos de
dezesseis (16) municípios do Estado de Minas Gerais, matriculados no Curso de
Especialização em Saúde da Família, já mencionado.
TABELA_1
Dentre os respondentes, a maioria foi de médicos (56,1 %), sendo que 44% dos
respondentes estão inscritos no PSF em municípios da região metropolitana de
Belo Horizonte.
ANÁLISE DOS RESULTADOS
Quanto aos agravos passíveis de internação domiciliar (Tabela_2), na visão dos
profissionais que responderam ao questionário, as doenças crônico-degenerativas
foram as mais apontadas (31,7%), seguidas das neoplasias (15%) e da
desidratação (15%). Os cuidados pós-operatórios constituíram 3,3% e a situação
de puerpério imediato totalizou 1,7% das respostas. A comparação entre os
percentuais evidencia que a visão de internação domiciliar dos profissionais,
pode estar mais centrada nas situações que exigem tratamento de doenças, do que
na prevenção de iatrogenias decorrentes de situações que consideramos eletivas
(pós-operatório e puerpério mediato). Os dados agrupados em outros correspondem
a: alcoolismo, patologias do trato gênito-urinário, IRA, flebites e patologias
osteoarticulares (0,8% cada).
Analisando os dados obtidos na Tabela_3, os relatos à vantagem de manter o
cliente em seu próprio ambiente e da participação integrada dos familiares e
clientes nos cuidados de saúde, totalizaram 41,2% das respostas, seguidos da
diminuição do risco de infeção (13,9%) e dos custos do tratamento (10,3%).
Destaques em relação à humanização da atenção (2,2%), à diminuição do nível de
ansiedade (5,8%) e ao fortalecimento do vínculo cliente-família-equipe de saúde
(9,5%), constituíram 17,5% das respostas. Isto nos leva a inferir que a visão
dos profissionais tem aderência com os pressupostos da estratégia de atenção à
saúde voltada para a saúde (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1996;1997).
Pelas informações contidas na Tabela_4, observa-se que a falta de equipamentos
e de condições para a realização de cuidados pela equipe, destacou-se como o
fator mais limitante da internação domiciliar (31,2%). A falta de infra-
estrutura e apoio logístico, tais como:
sistema de referência, disponibilidade de recursos diagnósticos complementares
e de transporte, foi outro fator relevante como dificultados na realização de
internação domiciliar (20%).
A necessidade de capacitação dos profissionais para realizarem internação
domiciliar ficou evidente com a freqüência de 15% de respostas indicativas da
falta dessa capacitação.
A consideração da não permanência da equipe junto à família e ao cliente
durante a noite e nos finais de semana como fator desfavorável (13,9%),
evidencia a incompreensão dos profissionais, não só no que diz respeito às
difierenças entre internação domiciliar e internação domiciliar (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 1997), como também do processo de trabalho inerente à equipe de saúde da
família, que prevê maior acessibilidade população-equipe de saúde.
A Tabela_5, na qual os respondentes apontaram as condutas adotadas nas
situações que vivenciaram no seu cotidiano e consideraram como de internação
domiciliar, aponta para o que consideramos como pertencentes à quatro
agrupamentos de condutas:
- referentes à orientações diretas à família, não delegáveis, que dizem
respeito a orientações gerais e dietéticas, correspondendo à 21,7%;
- referentes à execução direta pela equipe, de procedimentos não delegáveis à
família (25,3%) que incluem visita diária pela equipe (16,9%), prescrições
(6,0%), controle de sinais vitais (2,4%). Em relação a essa última, cabe
ressaltar que, embora a atividade possa ser orientada em sua execução pelo
cliente ou família, não prescinde da aferição pela equipe de saúde;
- referentes à execução de procedimentos consideradosa priori como de baixa
complexidade (27,7%): cuidados no leito (12,0%), hidratação e medicação via
oral (6,0%), mudanças de decúbito (4,9%), tratamento de escaras (2,4%) e
curativos (2,4%).
-referentes à procedimentos que exigem maior incorporação tecnológica (25,3%):
coleta de material para exame (8,4%), venoclise (6,0%), medicação parenteral
(4,9%), cateterismo vesical (2,4%). Oxigenoterapia, enteroclisma e gavage
corresponderam a 3,6% do total de respostas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A internação domiciliar ainda se constitui em um desafio para as equipes do
Programa de Saúde da Família no Estado de Minas Gerais. O modelo de saúde
vigente, em processo de transformação, carece de profundas revisões
paradigmáticas, de modo que a doença deixe de ser o principal alvo da atenção,
cedendo lugar à promoção da saúde e à prevenção de agravos.
A realização deste estudo, evidenciando que a visão dos profissionais
enfermeiros e médicos privilegiou a internação domiciliar para portadores de
doenças crônicas, coloca este procedimento como uma alternativa de
desconcentração de serviços de saúde. Na possibilidade de dispensar aos
clientes portadores de doenças crônicas, a mesma qualidade da atenção
propiciada nos hospitais no que se refere ao atendimento das suas demandas, a
internação domiciliar é considerada uma alternativa que favorece esta
desconcentração. Entretanto há que se avaliar serem estas doenças crônicas de
baixa gravidade, não necessitando de intervenções para reversão do quadro
clínico, como por exemplo os clientes em fase terminal, os portadores de AIDS
(Vaz, 1994).
Outra vantagem que o estudo mostrou foi a possibilidade de criação de um clima
de parceria terapêutica na internação domiciliar. O cliente mantido no lar, a
participação dos familiares e do próprio cliente nos cuidados, é acrescida pela
diminuição de agravos iatrogênicos e a redução de custos no atendimento.
A falta de equipamentos adequados à internação domiciliar e outras desvantagens
apontadas pelo grupo estudado (ausência dos profissionais nos finais de semana,
falta de apoio logístico, entre outras) nos leva a considerar que:
- a internação domiciliar como estratégia de desconcentração dos serviços de
saúde, de humanização da atenção e de co-participação no cuidado do cliente,
carece de criação de protocolos que norteem o trabalho dos profissionais;
- o eixo destes protocolos, não restritos à abordagem clínica do cliente em
internação domiciliar, devem contemplar ações que considerem a família como
espaço social privilegiado para o desenvolvimento de ações de proteção e
promoção da saúde.